HealthNews (HN)- O estudo “Trabalho emocional dos enfermeiros no cuidado à pessoa com COVID-19: contributos para o desenvolvimento da práxis de Enfermagem” começou quando e com que objetivos?
Paula Diogo (PD)- Este nosso estudo decorreu durante a primeira vaga. A primeira vaga da Covid em Portugal começou no início de março de 2020, e nós iniciámos o nosso estudo em maio.
Este estudo foi desenvolvido no âmbito do grupo de investigação “Emoções em Saúde”, da Escola Superior de Enfermagem de Lisboa (ESEL), que criei em 2010 e coordeno desde então.
Quando iniciámos esta investigação, sabíamos que os enfermeiros estavam expostos a uma situação extrema e prolongada e a uma experiência emocional intensa e perturbadora, e que desempenhavam um trabalho emocional exigente, mas desconhecíamos as estratégias de gestão emocional adotadas e se essas estavam ou não a ser eficazes. Portanto, na perspetiva das investigadoras – eu sou autora principal do estudo, mas existem mais quatro coautoras (Odete Lemos e Sousa, Joana Rodrigues, Márcia Santos e Tânia Almeida) –, era importante compreender quais as estratégias de gestão emocional e a sua eficácia.
O trabalho emocional é, essencialmente, a capacidade de gerir eficazmente as emoções, para manter a proximidade e disponibilidade numa relação de cuidados com o cliente, e para proporcionar um cuidado humano e emocionalmente sensível, mas evitando a exaustão emocional e o burnout dos enfermeiros. As estratégias mobilizadas pelos 19 enfermeiros participantes poderiam ser importantes para outros enfermeiros – pensávamos nós – e uma ajuda a encontrar sentido para a experiência de ser enfermeiro no cenário da pandemia de Covid-19, que era desconhecido na altura, e mesmo com interesse para a transformação positiva de um cenário tão complexo e profundamente emocional. Procurávamos mesmo os contributos para o desenvolvimento da práxis de enfermagem. Daí que o paradigma desta investigação seja construtivista.
HN- Pode falar um pouco mais da metodologia escolhida para alcançar esses objetivos?
PD- A metodologia que usámos é uma abordagem qualitativa, e obtivemos dados de relatos da experiência de 19 enfermeiros, através de 18 narrativas escritas (redação das experiências pelos próprios enfermeiros) e dois grupos focais. Ou seja, estes 19 enfermeiros foram divididos em dois grupos para, através de reuniões Zoom, partilharem e discutirem as suas experiências. Desta análise foi possível desocultar: os seus desafios emocionais diários; a emocionalidade e a reatividade na interação de cuidados; a estratégia de trabalho emocional e a experiência de transformação e desenvolvimento.
HN- Quais os principais achados do estudo?
PD- Em primeiro lugar, os desafios emocionais diários experienciados pelos enfermeiros. Além do medo do desconhecido e, depois, do sentimento de alerta pela espera dos primeiros casos de Covid, o desafio foi o uso dos EPI (equipamentos de proteção individual). Depois, a possibilidade de contágio na equipa e no seio da família, a transformação dos serviços, o cansaço acumulado e a exaustão física dos enfermeiros foram outros grandes desafios. Isto tudo fez com que os enfermeiros vivessem uma elevada carga emocional, e alguns uma exaustão emocional. Os enfermeiros referiram que foram muitos desafios simultâneos, que concorreram para uma experiência de carga emocional intensa e repleta de sentimentos diferentes, fora do habitual.
Outros achados dizem respeito à emocionalidade e à própria reatividade nos cuidados à pessoa com Covid-19. As emoções experienciadas pelos enfermeiros da linha da frente foram marcadamente de medo: medo de antecipação, associado à ansiedade e insegurança; medo de ficar infetado; medo de contagiar a família e pessoas queridas; e, ainda, medo de não saber intervir ou de cometer erros, porque a situação era desconhecida na primeira vaga. Além disso, os enfermeiros referem sentimentos de perigo, isolamento e despersonalização. Despersonalização porque estavam mascarados com o equipamento de proteção individual. A pessoa que estava a ser cuidada não via o enfermeiro. Por outro lado, um misto de emoções negativas: ansiedade, inquietação, apreensão, angústia, impotência, tristeza, revolta, frustração e stress intenso. Revelaram, também, uma consciência da experiência emocional intensa e perturbadora, o que é em si uma preocupação a nível da sua saúde mental.
À emocionalidade descrita estão inerentes respostas emocionais dos enfermeiros na interação de cuidados, como, por exemplo, reatividade negativa, que se traduzia em ficar paralisado, no desentendimento e afastamento da equipa, a negação e a passagem de turno com um tom negativo e pesado. Igualmente numa fase inicial da pandemia, adotaram o distanciamento relacional e físico, sentindo vontade de sair do quarto ou da enfermaria logo que possível. Os enfermeiros também falam das alterações fisiológicas, como alterações do padrão de sono, lombalgias, dores de cabeça, falta de apetite e febre, e da reatividade dos clientes de cuidados, ou seja, as respostas emocionais das pessoas com suspeita ou diagnóstico de Covid-19 e suas famílias. Algumas pessoas revelavam uma reatividade negativa exacerbada de medo, agressividade, ansiedade, irritação, choro e olhar assustado, além da omissão do facto de estarem infetadas, ou manifestação de medo intenso de serem contagiadas. Outras pessoas reagiam de forma muito passiva, com compreensão e colaboração, suportando a situação de forma estoica. Muitas pessoas manifestavam a falta do olhar, do sorriso, do rosto e da presença humana, porque os enfermeiros estavam a usar fatos que os cobriam completamente, e muitas vezes pediam para ver a cara e o sorriso dos enfermeiros e referiam ter dificuldade em distinguir os profissionais. Foi aí que os enfermeiros começaram o pôr o nome no seu equipamento.
Relativamente às estratégias de trabalho emocional, com centralidade na pessoa cuidada e na pessoa enfermeiro – outra categoria dos achados –, gostaria de salientar que o cuidado humano afetivo, de proximidade e disponibilidade, numa base de confiança e empatia, no qual os enfermeiros promovem a gestão das emoções dos clientes, é fundamental para estes se sentirem cuidados e ficarem mais fortalecidos emocionalmente. Mas, para tal, os enfermeiros também necessitam de fazer a sua gestão emocional. Creio que este aspeto ficou mais evidente nesta pandemia, e esta consciencialização do trabalho emocional em enfermagem é necessária em todos os contextos de cuidados. Os enfermeiros encontraram suporte emocional no seio da equipa e fontes de segurança como colegas de referência e com mais experiência ou equipas com experiência de pandemias noutros países – fatores facilitadores do desempenho do trabalho emocional em enfermagem, juntamente com o reconhecimento da sociedade, que foi muito veiculado pelos media e pelas redes sociais.
E agora começo a falar dos aspetos mais positivos, e ainda bem. No contexto de cuidados à pessoa com Covid-19, o trabalho emocional caracterizou-se por: construir uma relação de confiança e proximidade; empatia e sensibilidade para a experiência das emoções; promover a tranquilidade através de conversas e explicações; promover o conforto emocional e o toque terapêutico; proporcionar condições para o cliente colocar questões e partilhar sentimentos; e interações que dão relevo aos pequenos gestos, à voz, ao olhar, recorrendo à tecnologia, música, dança, boa disposição e brincadeira.
O trabalho emocional com centralidade no enfermeiro, isto é, a gestão emocional dos enfermeiros que visa promover o seu bem-estar emocional e prevenir o burnout, com repercussões positivas no cuidado humano e emocionalmente sensível, foi caracterizado por estratégias positivas e adaptativas em contexto de cuidados, tais como: partilhar experiências e emoções em equipa; reforçar a esperança e a motivação para cuidar; usufruir de momentos de pausa nos cuidados; usar o humor para gerar emoções positivas na equipa e na relação com os clientes; incrementar e partilhar informação e conhecimentos sobre a pandemia e aderir a grupos do Whatsapp. Além disso, os enfermeiros procuraram transformar positivamente as emoções em momentos de maior fragilidade, através das seguintes estratégias: valorizar os casos de sucesso; ter consciência de que cuidar transforma a situação; desviar o foco de atenção para coisas positivas; refletir sobre a realidade com outros olhos e num porto seguro; ver poucas notícias sobre a pandemia; reduzir o acesso aos grupos do WhatsApp e pedir ajuda aquando da perceção do seu limite.
Também mobilizaram estratégias de alívio e relaxamento fora do contexto de cuidados. Por exemplo, respirações profundas, ouvir música e dançar, apanhar sol, chorar para desanuviar, beber uma cerveja com amigos, falar noutros assuntos e, também, fazer bolos ou yoga. Por último, o apoio da família e dos amigos foi descrito como fundamental, além da ocupação dos tempos livres a ler, ver filmes ou séries, escrever, caminhar ao ar livre e praticar desporto.
Os últimos achados que nós obtivemos revelam que o desempenho do trabalho emocional dos enfermeiros em contexto de pandemia de Covid-19 é fundamental para o confronto eficaz dos desafios, para lidar de forma adaptativa com as emoções perturbadoras, minimizar as respostas emocionais negativas e transformar a experiência de cuidados em aprendizagem e desenvolvimento. Tornou-se evidente, neste estudo, uma experiência de crescimento e transformação, a consciência de uma realidade desafiante, mas transformadora e de crescimento, e a resiliência individual e de equipa.
HN- Como é que o estudo dos fenómenos emocionais em enfermagem tem sido abordado e qual o seu impacto?
PD- A Enfermagem, enquanto área científica e no que respeita ao seu corpo de conhecimentos próprio, que está a ser desenvolvido há dois séculos, tem em conta uma abordagem holística e integrativa, e, decorrente disso, possui uma visão multidimensional do cliente de cuidados. Por isso, a Enfermagem abarca múltiplas complexidades da condição humana. A intervenção dos enfermeiros reflete-se em múltiplas dimensões, como, por exemplo, a relacional, a técnica, a ética, a estética, a cultural, a espiritual e a emocional, sendo que as intervenções de enfermagem contribuem para que a pessoa mantenha o seu equilíbrio físico e emocional.
Foi a partir de 1990, com o desenvolvimento da conceção do trabalho emocional em Enfermagem, a par da importância concedida ao estudo das emoções por outras disciplinas do conhecimento, que esta dimensão emocional se tornou mais relevante para os enfermeiros, não só a nível da formação, mas também na prática clínica, pois os enfermeiros e a sociedade em geral passaram a valorizar mais a literacia e a educação emocional, tendo em conta o crescente reconhecimento da implicação das emoções no bem-estar e na saúde das pessoas.
A valorização dos fenómenos emocionais nos cuidados de saúde, nomeadamente nos cuidados de enfermagem, tem impacto na humanização das intervenções, na qualidade da relação enfermeiro-cliente e no incremento do cuidado humano essencial e emocionalmente sensível. As pessoas precisam do cuidado humanizado e holístico no confronto com os processos de saúde-doença ao longo do ciclo vital.
A par dos estudos de Pam Smith sobre o trabalho emocional, que remontam ao final de 1990, o estudo do trabalho emocional está bastante desenvolvido pelos cinco continentes. Também tem sido bastante desenvolvido em Portugal, nomeadamente no que diz respeito ao trabalho emocional em enfermagem pediátrica. Eu tenho incrementado muitos estudos dentro desta temática, até porque tenho uma tese de doutoramento neste âmbito.
HN- Quais as implicações da vossa investigação?
PD- Tal como tenho defendido através do estudo sobre as emoções em enfermagem, que venho a desenvolver há duas décadas, o processo de trabalho emocional em enfermagem pode contribuir para promover a transformação de fenómenos emotivos perturbadores em estados restaurativos e adaptativos, promovendo o bem-estar do cliente, prevenindo a exaustão emocional dos enfermeiros e alcançando resultados positivos e significativos para os sujeitos em interação – neste caso, a pessoa com Covid e o enfermeiro que cuida desta pessoa –, o que contribui para as boas práticas de enfermagem e em saúde. Assim, o trabalho emocional não pode depender da aprendizagem individual e da experiência do dia a dia dos enfermeiros, mas sim deve ser treinado desde a formação inicial dos enfermeiros e incrementado enquanto competência emocional.
Além disso, com este estudo, constatámos que os enfermeiros podem necessitar de suporte emocional estruturado e sustentado, apesar das estratégias adaptativas que mobilizaram. As estratégias institucionais de suporte, de grupo e em serviço e estratégias individuais de autocuidado são muito necessárias. Estas estratégias desempenharam um papel importante na manutenção da saúde mental destes enfermeiros; não obstante, e face aos achados, recomenda-se a aposta em programas de suporte à saúde mental dos enfermeiros, nomeadamente a criação de um website ou programas na intranet das instituições de saúde, que visem analisar a experiência emocional e a sua gestão. Aos enfermeiros gestores recomenda-se uma particular atenção na gestão dos recursos humanos, equipamentos e materiais adequados e suficientes, assim como a formação das equipas na gestão das emoções e estratégias de comunicação, visando a promoção da tal competência emocional.
HN- Perspetiva-se dar continuidade a este trabalho?
PD- Sim. Desde a primeira vaga até à atualidade, os enfermeiros experienciam um acumular de desgaste, a experiência evoluiu ao longo do tempo e a diversidade de contextos de cuidados de enfermagem tem gerado experiências com especificidades diferentes, pelo que dar continuidade à investigação é muito necessário. Nós gostaríamos mesmo de fazê-lo, porque há de haver aqui muito crescimento e desenvolvimento dos enfermeiros e das suas estratégias, e há relatos de muitos enfermeiros que tiveram problemas depressivos e outros devido ao cansaço e desgaste. Os enfermeiros, neste momento, estão com muitas horas extraordinárias acumuladas. Ainda é muito difícil para os enfermeiros.
HN- Os enfermeiros vão sair da pandemia de Covid-19 mais fortes ou mais debilitados?
PD- Eu sou uma pessoa muito positiva e acredito, numa lógica construtivista, que estamos sempre num processo contínuo de construção e desenvolvimento. Acho que os enfermeiros já estão mais resilientes e mais capacitados, porque adquiriram, com esta experiência extremamente difícil e profundamente emocional, estratégias que os ajudaram, e vão ajudá-los a superar outras situações futuras. Como eu disse, é um processo contínuo de aprendizagem, mas creio que vão ficar muito mais resilientes. Claro que há sempre aquelas pessoas mais fragilizadas e que não suportaram tão bem, mas vejo que há muitos enfermeiros mais resilientes, muito mais capacitados e com esperança de que vamos conseguir superar esta situação. As situações de maior exigência e que nos expõem a mais sofrimento e a mais desafios, habitualmente, transformam-nos positivamente. É a tal aprendizagem pela experiência. Estou muito positiva em relação a isso.
HN- O que é a sociedade em geral ainda vai a tempo de fazer para apoiar os enfermeiros na luta contra a Covid-19?
PD- Uma coisa muito importante e que os enfermeiros também referem muito é que as equipas de enfermagem deviam ser reforçadas, porque isso era uma forma de conseguir que os enfermeiros tivessem mais tempo de pausa para recuperarem, para descansaram, para sentirem que conseguem distanciar-se um pouco do serviço, para usufruírem de outros momentos de relaxamento. Há concursos a abrir, só que normalmente os concursos públicos demoram muitos meses, às vezes anos até serem concluídos, portanto as pessoas estão ali a suportar turno após turno. As equipas precisam de ser suportadas de outra maneira, não só tendo mais elementos, mas também as próprias instituições fornecerem mecanismos para dar suporte emocional aos enfermeiros. É importante existirem grupos dentro das próprias instituições para os enfermeiros partilharem as suas experiências, sendo que eles não gostam que sejam os técnicos de saúde da própria instituição a organizar estes grupos.
A nível mais local, nos próprios serviços, as chefias podem proporcionar estratégias como sessões de relaxamento ou de meditação, ou o uso da música durante os turnos. Ou seja, atividades que se possam desenvolver com as equipas no interior dos próprios serviços, além da formação. Claro que a formação proporcionada pelas instituições é fundamental, e em muitas foi proporcionado, mas os enfermeiros continuam a dizer que deveria haver mais. As instituições podem trabalhar essas questões em colaboração com as escolas de enfermagem, para que os professores também possam dar o seu contributo. A informação é muito importante para gerir a emoção. A gestão da emoção e a gestão da informação potenciam-se uma à outra.
Depois, cabe a cada um de nós cumprir as regras, para minimizarmos o contágio. Ao minimizarmos a disseminação do vírus, também estamos a ajudar os técnicos de saúde e os serviços de saúde. É uma questão de respeito e humanidade.
Entrevista de Rita Antunes
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