“Estes enfartes do miocárdio que poderiam ser tratados, alguns provavelmente não chegam ao hospital e as pessoas morrem em casa, e outros acabarão por aparecer em fases mais tardias, em que a evolução para insuficiência cardíaca já poderá ser inevitável”, disse Victor Gil.

Segundo o cardiologista, esta situação terá contribuído para o excesso de mortes observadas desde o início da pandemia de covid-19 em março.

Dados do Instituto Nacional de Estatística divulgados a 30 de outubro referem que, desde março, morreram em Portugal 72.519 pessoas, mais 7.396 do que a média do período homólogo dos cinco anos anteriores, sendo a covid-19 responsável por 2.198 óbitos (27,5% do total).

Fazendo uma comparação dos últimos três anos, a SPC observou que “há uma diminuição de um quarto do número de intervenções em fase aguda de enfarte”, desde o início da pandemia.

Anualmente morrem em Portugal cerca de 33.000 pessoas devido a doenças cardiovasculares, que continuam a ser a principal causa de morte no país, representando cerca de um terço de todos os óbitos.

Os cardiologistas estão “muito preocupados” desde que começaram a constatar que, em consequência das recomendações que faziam aos doentes para estarem confinados, começou a haver nas situações agudas “uma grande diminuição de urgências e, particularmente, de enfartes do miocárdio”, que mata, em média, 12 pessoas por dia em Portugal.

“O enfarte de miocárdio é uma situação passível de ser tratada se a pessoa pedir socorro cedo”, mas se isso não acontecer pode ocorrer arritmias graves, que podem conduzir a uma morte súbita.

Portanto, observou, “sete mil e tal mortos não é uma coisa que aconteça por acaso” e “dois terços são mortes não covid. Estamos a falar de muitas situações em que as pessoas acabam por morrer por circunstâncias várias”.

Victor Gil lembrou que os doentes crónicos “não são todos iguais”: “uma coisa é uma pessoa que tem um lipoma ou uma hérnia que enfim, tira hoje, amanhã, ou daqui a três meses, outra coisa é uma pessoa que tem uma estenose aórtica grave”, que tem “uma janela de oportunidade para ser tratada” e que se isso não acontecer morre ou entra em descompensação aguda com “risco de mortalidade elevadíssimo”.

O mesmo se passa em relação a doenças das coronárias em que pode ter passado a fase aguda, mas ainda haver necessidade de intervenções, e isso são atividades programadas, mas não são como tirar um quisto da pele.

“Há situações verdadeiramente muito graves, mas também há muitas situações em que as pessoas estão apenas muito nervosas e nos contactam por tudo e por nada e que estão a dificultar um bocadinho a nossa disponibilidade para as situações mais grave e aqui também deixo um grande apelo à serenidade dos próprios doentes”, sublinhou.

Alertou ainda para os atrasos nos tratamentos devido ao confinamento, advertindo que os doentes mais críticos que estão há algum tempo sem acompanhamento e quando voltarem estarão “numa fase pior de evolução da sua doença, com consequências piores”.

“Se não houver um acompanhamento adequado perde-se os diagnósticos, nós estamos a falar de vidas reais. Compreendo que estamos todos dominados pela covid - e é uma situação dramática -, mas de facto cancelar a atividade deve ser o último, dos últimos recursos”, defendeu.

Na sua opinião, deviam ter sido antecipados cenários que se sabia que iam acontecer para tentar encontrar alternativas para não suspender a atividade, admitindo, contudo, que “em cima da crise às vezes inventar soluções é difícil” e que “a última coisa que se faz numa crise é entrar em pânico”.

“A suspensão da atividade em termos de agudos é dramática, mas isso ainda não está a acontecer, as vias verdes estão abertas, o INEM tem-se desdobrado para estar em todas”, são “super-homens e super mulheres como são os colegas dos cuidados primários e da saúde pública”, enalteceu.

Para Victor Gil, o “esforço tremendo” que os médicos de família e de saúde pública estão a fazer no seguimento dos contactos se calhar já não faz sentido nesta fase.

“As pessoas têm de realocar recursos de acordo com a fase em que estão”, disse, defendendo que “os diretores de serviço devem ter um papel essencial na decisão e na seleção das prioridades”.