Durante um mês, a Lusa acompanhou Paulo Durão, Lília Perfeito e Claudia Bank, investigadores do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), em Oeiras, no processo de testar os efeitos de um composto químico similar a um medicamento para o cancro numa levedura da cerveja e numa bactéria intestinal.

Deste trabalho podem sair pistas sobre o uso do fármaco na quimioterapia contra células cancerígenas com mínimo impacto nas células saudáveis.

A bactéria ‘Escherichia coli’ (E. coli) como a levedura ‘Schizosaccharomyces pombe’ (S. pombe), os organismos-modelo utilizados nesta experiência, são seres vivos simples, com uma só célula.

No decurso da experiência, as culturas de células da levedura cresceram quando expostas ao composto químico, ainda que a um ritmo progressivamente mais lento, conforme aumentavam as dosagens, enquanto as da bactéria não cresceram e apresentaram mutações, alterações no seu material genético, com doses intermédias da droga e decorrido mais tempo.

Bactérias que surpreendem

Conclusão dos investigadores: se as bactérias como a E. coli parecem mais suscetíveis ao composto, podendo ganhar-lhe resistência com o aparecimento de mutações genéticas, poderá ser útil examinar os micro-organismos presentes em doentes com cancro que estão a ser tratados com quimioterapia.

Tudo começa pelo princípio, e esta experiência, como todas as experiências científicas, inicia-se com o planeamento.

Claudia Bank, Lília Perfeito e Paulo Durão dividem tarefas, sentados junto a uma bancada com prateleiras repletas de frascos de diversos tamanhos com líquidos incolores, amarelos e castanhos. Nesta fase, ressalva Claudia Bank, que lidera o grupo de investigação de Dinâmica Evolutiva, "existem várias possibilidades, qualquer coisa pode acontecer, é indefinido".

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A cientista, alemã, tem a incumbência de fazer cálculos, equações e gráficos que permitam antever em que sentido se vai direcionar a resposta à droga de milhões de células da E. coli e da S. pombe. "As bactérias tendem a surpreender-nos com os resultados", adverte Paulo Durão, a realizar o seu segundo pós-doutoramento, desta vez, e depois de ter passado pela Alemanha, no grupo de trabalho de Biologia Evolutiva, coordenado pela cientista Isabel Gordo, perita no estudo da E. coli.

Paulo Durão vai perceber mais adiante que tem razão: a E. coli desenvolve pouca resistência ao químico na dose mais alta, ao contrário do que faria supor o historial da resistência das bactérias a certos antibióticos.

A ideia é ver se é possível "minimizar o efeito da droga e o aparecimento da resistência", assinala Lília Perfeito, investigadora-principal do grupo de Evolução e Estrutura Genómica.

No laboratório, como na cozinha, seguem-se receitas, neste caso para preparar as placas de Petri, alimentar as células e contá-las. Os ingredientes são vários: água destilada ou desmineralizada, glicose, aminoácidos, sais, vitaminas, minerais ou ágar, uma espécie de gelatina.

Os frascos que contêm as soluções líquidas com os ingredientes foram esterilizados numa 'panela de pressão' com água a 120 graus, tarefa que no IGC, está a cargo de funcionárias que todos os dias entregam às equipas de investigação os recipientes prontos a serem utilizados.

Os microrganismos são congelados a 80 graus negativos antes de serem manipulados pela primeira vez. Pelos corredores do IGC passam cientistas com caixinhas de esferovite. Têm gelo lá dentro para conservar o material de trabalho retirado do congelador.

Há quem use auscultadores para ouvir música enquanto trabalha, mas a banda sonora que mais se ouve nos laboratórios de biologia é o som produzido por bolinhas de vidro quando as placas de Petri são agitadas, fazendo lembrar o som emitido por um ‘xequeré’ (instrumento musical africano feito com uma pequena cabaça seca).

As esferas, que são também esterilizadas para poderem ser reutilizadas, são colocadas nas placas para dispersar as células embebidas numa solução aquosa, para que depois possam ser melhor identificadas.

Lília Perfeito e Paulo Durão numeram com uma caneta de feltro azul as colónias de células, com e sem droga, que injetaram nas placas de Petri com uma pipeta, sem luvas calçadas, porque tanto a bactéria como a levedura são inofensivas, mas com a chama do bico de Bunsen acesa, para evitar a contaminação do material em estudo. "Não queremos bactérias que não são convidadas", ironiza Paulo.

À vista desarmada, as colónias de células são gotas esbranquiçadas. Apesar dos cuidados, ao fim de uma semana surge um fungo numa das placas. "Um erro técnico", reconhece Paulo. "Às vezes, temos convidados inesperados", afirma, com humor.

Semana após semana, há gestos que se repetem: colocar as culturas de células da E. coli e da S. pombe nas placas de Petri, selar as placas com fita, conservá-las a 32 graus numa estufa com a aparência de um minifrigorífico, esperar uns dias para ver se as células crescem, e, se sim, como aconteceu com a levedura, raspar as gotas que entretanto secaram, verter o material celular para uns tubinhos de plástico e calcular a biomassa das células registando a sua densidade ótica com um espectrofotómetro, depois de agitar as células numa solução líquida para as manter estáveis.

É o lado menos cativante, para Paulo Durão, de uma experiência científica, mas que é necessário para validá-la. "O resultado tem de ser estatisticamente significativo", justifica. Trabalho de paciência? O cientista responde que sim, acenando com a cabeça.

Num gabinete fora do alcance de Lília e Paulo, e sentada em frente a um computador, Claudia Bank conta que, na véspera, esteve oito a dez horas a construir um modelo de uma célula a crescer e com uma mutação genética. Na verdade, o que se vê, à medida que a investigadora vai discorrendo as imagens no ecrã, são uma espécie de desenhos gráficos, cuja configuração se vai aprimorando. Como se, assume a própria, de uma obra de arte se tratasse.