A catástrofe do Rio Grande do Sul, no Brasil, em maio de 2024, ainda por resolver e apurar o verdadeiro número de vítimas, terá consequências e impacto para a saúde pública por muito tempo. A primeira grande medida é sem dúvida, salvar o maior número possível de pessoas, muitas de afogamento, e transportá-las para lugares seguros, para em seguida tratar as situações imediatas que colocam a vida em risco como os traumatismos, as fraturas, os choques elétricos e a hipotermia. Contudo, para que se possa fazer uma melhor prevenção, devem ser aplicados os conhecimentos já adquiridos noutras catástrofes semelhantes, pois ajudam a encontrar estratégias para as várias doenças infeciosas que virão e a forma da as mitigar o mais precocemente possível.

As inundações são as catástrofes naturais mais frequentes, e o contacto dos seres humanos vítimas desde evento com a água, é inevitável. No processo de procura de proteção e segurança, as pessoas tocam ou ingerem inadvertidamente pequenas quantidades de água, que contém matéria orgânica contaminada, humana ou animal, e que vem dos esgotos, das lixeiras ou das valas.

Estudos feitos a partir de eventos semelhantes noutros locais do planeta, permitiram encontrar um padrão nas dinâmicas e no aparecimento das primeiras doenças infeciosas, conhecimento esse, fundamental para o tipo de intervenção e o timing da mesma. Os primeiros problemas a surgir podem ser na pele, devido a pequenas lesões feitas com os objetos e detritos que são arrastados pelas águas e que são uma porta de entrada para agentes patogénicos como o Staphylococcus aureus e o Streptococcus pyogenes, que podem apenas causar abcessos ou uma bacteriémica que atinge vários órgãos. A seguir podem vir as pneumonias por aspiração, quando existe um contacto acidental com a água das enchentes e as infeções respiratórias virais, devido ao aglomerado de pessoas em locais de abrigo e a inevitável proximidade entre elas. As gastroenterites que provocam diarreias, são a principal causa de morte em eventos com inundações, sendo estas agravadas pela má higiene, rutura nos sistemas de esgotos e dificuldades no abastecimento de água potável. Devido à permanência de um número elevado de pessoas nos mesmos recintos de abrigo e às difíceis condições de higiene, são também previsíveis, a disseminação de parasitas, que levam a situações de escabiose (sarna) e pediculose capitis (piolhos).

Neste sentido, cabe às autoridades sanitárias e proteção civil, intervir precocemente em cada uma destas situações: 1. facultar antibióticos para uma prescrição atempada; 2. reforçar e promover a vacinação para prevenir as doenças respiratórias, como a gripe, o vírus sincicial respiratório e a COVID-19; 3. fomentar o uso de máscaras nos abrigos; 4. reforçar o acesso a água potável e a medicamentos que aliviam os sintomas das diarreias; 5. aumentar o stock de medicamentos antiparasitários, para a escabiose e a pediculose; 6. promover educação para a saúde às populações afetadas, no sentido de desenvolverem comportamentos seguros do ponto de vista da higiene individual, como a correta e frequente lavagem das mãos, beber apenas água engarrafada ou fervida ou desinfetada com um químico adequado e não consumir alimentos que estiveram em contacto com as águas da inundação.

Uma a duas semanas depois do pico das inundações, é previsível que surjam patologias como: a leptospirose, devido às leptospiras, bactéria presente na urina dos animais, essencialmente dos ratos, e que passam a circular livremente nas águas; o tétano, em zonas de baixa cobertura vacinal e a hepatite A, ou outros vírus de transmissão fecal-oral, devido à contaminação das águas. Podem também surgir casos de cólera, embora esta patologias tenda a ser mais frequente, noutras partes do mundo, e menos no Brasil atualmente.

Também nestas situações, cabe às autoridades públicas: 1. facultar e promover antecipadamente o tratamento profilático para a leptospirose, mesmo antes do aparecimento de sintomas, principalmente em pessoas que estiveram em risco, como os profissionais e os voluntários de apoio ao resgate e salvamento, ou a pessoas vitimas das inundações que tiveram muito contacto com as águas contaminadas; 2. advertir as populações para o uso de equipamentos de proteção individual, como botas de borracha e luvas resistentes, quando limparem as superfícies com lama, por forma a diminuir ou eliminar o contacto com as águas contaminadas; e, 3. reforçar e promover a vacinação para o tétano e hepatite A.

Numa terceira vaga de patologias depois das inundações, estão descritas as doenças provocadas por vetores, como a dengue. Estando o Rio Grande do Sul, a ter temperaturas mais baixas e por isso menos favoráveis para o Aedes aegypti, o mosquito transmissor da dengue, não podemos negligenciar o facto de que várias zonas do Brasil, estarem a registar surtos preocupantes de dengue. Nestas situações, as autoridades devem: 1. fomentar ou distribuir redes mosquiteiras e repetentes; e, 2. reforçar a importância da vacinação para a dengue.

Para além destes aspetos, em catástrofes com inundações, estão bem identificados os grupos de maior vulnerabilidade como, as crianças muito pequenas e as pessoas idosas, que necessitam de uma atenção especial para que atempadamente se possa prevenir situações extremas de desidratação; as pessoas com doenças crónicas que necessitam de medicação diária; e, posteriormente, à fase aguda da catástrofe, a prevenção e o acompanhamento das pessoas que apresentam problemas de saúde mental, como depressões e stress pós-traumático.

Investir em saúde pública, reavaliar os planeamentos urbanos, mapear populações de risco, capacitar as populações para eventos extremos, estabelecer mecanismos eficazes de comunicação entre os intervenientes decisores, operacionais e populações, monitorizar os centros de apoio e promover a telemedicina, são estratégias de intervenção em saúde pública que permitem reduzir a morbilidade e a mortalidade em catástrofes naturais por inundações.

Referências
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