Sem meias palavras, diz que “existe um muro à volta no ministério que impede o contacto com a Ordem”. E acrescenta: “com a ministra que temos não sei se existe uma questão de ideologia ou uma questão de paralisia e de incapacidade de concretizar. A verdade é que Marta Temido, a não ser alguma atividade que demonstrou durante a pandemia, nada tem feito”. Carlos Cortes defende a criação de incentivos que cativem especialistas para zonas carenciadas; o ficheiro clínico único e uma maior intervenção dos colégios de especialidade. Preocupa-o a possibilidade de os atuais 1,3 milhões de utentes sem médico de família virem a crescer para 2,5 milhões com a passagem à reforma de centenas de médicos de família prevista para os próximos tempos.

Nos bastidores da saúde ouve-se que é um possível candidato a bastonário da Ordem dos Médicos, mas ainda não apresentou oficialmente a sua candidatura. Gostaria de falar sobre o que está a ser dito?

Gosto muito de separar os momentos e de os definir muito bem. Este momento é “prematuro”, pelo menos para mim, para estar a pensar numa candidatura para uma eleição que só irá decorrer daqui a oito meses. Penso que nem nas eleições presidenciais se começa a falar com tanta antecedência de potenciais candidatos. Do meu ponto de vista, não é o momento para estar a anunciar candidaturas. Sou patologista clínico e, portanto, tenho uma intensa atividade em várias áreas que me obriga a dedicar-me a minha profissão. Sou ainda dirigente da Ordem dos Médicos, o que faço com imenso gosto e sentido de responsabilidade. Portanto, este é momento para assumir essas responsabilidades.

A Ordem dos Médicos vai definir o período eleitoral e a campanha será o espaço adequado para falar sobre a minha candidatura e para falar sobre os vários projetos que colocarei.

Tenho ideias muito concretas para a Ordem dos Médicos, as reformas que são necessárias para o sistema de saúde em Portugal e sobre a forma como a classe médica tem que ser tratada pela tutela.

Tem um conhecimento bastante apurado de como é que funciona a Ordem dos Médicos, estando atualmente responsável pela Secção Regional do Centro. Quais são para si as principais carências dentro da ordem que deveriam resolvidas?

A ordem tem vindo a adaptar-se à evolução sociológica do país e às novas exigências (com a evolução da ciência e das novas tecnologias). Gosto de dizer que assumo o legado dos bastonários com quem trabalhei. De facto, tornaram a ordem mais interventiva, denunciando várias situações que não deveriam estar a acontecer no país, mas também utilizando a instituição para tentar que a qualidade da saúde melhore junto da tutela.

A OM precisa, do meu ponto de vista, de melhorar alguns aspetos a nível de funcionamento interno. A joia desta casa são os colégios de especialidade que têm uma importância muito grande para a ordem e para o país, pois têm o conhecimento técnico da Medicina em Portugal. Os colégios precisam de ser apoiados pela ordem. A OM tem que manter o seu papel de provedora dos doentes, de defensora da dignidade da profissão médica, mas também tem que ser capaz de apontar aquelas que são as dificuldades do país…

Como classifica a comunicação entre a ordem e a tutela?

A tutela tem pouca comunicação com a Ordem dos Médicos.

Reuniram uma única vez…

Não posso falar num número preciso de reuniões, mas não são apenas as reuniões que importam. São seguramente na ordem das centenas, os documentos que eu próprio envio todos os anos para o Ministério da Saúde, para as ARS, para os conselhos de administração e para as direções das AcSS.

Mas respostas…

Existe um muro à volta no ministério que impede o contacto… É lamentável que isso aconteça porque não há ninguém melhor do que os médicos para poderem reportar ao ministério aquilo que está a acontecer diariamente no terreno. A ordem tem dado esse contributo incansavelmente e, apesar de muitas vezes do outro lado não encontrarmos um interlocutor atento, temos insistido permanentemente em ajudar o ministério a melhorar a saúde em Portugal.

Como explica que isso aconteça?

Terá que colocar essa questão à ministra da Saúde. Confesso que não encontro nenhuma razão para que tal aconteça. Marta Temido tinha à mão uma ajuda preciosa para o bem dos doentes e do Serviço Nacional de Saúde e nunca se dignou a receber a ordem. A OM mostrou, pelo contrário, que queria contribuir.

Quero aqui destacar a intervenção do bastonário, do gabinete de crise e das secções regionais durante a pandemia. Foi uma intervenção muito corajosa, mesmo em alturas em que pouco se sabia. A ministra nunca poderá dizer que não teve a colaboração da ordem, ou que teve os médicos silenciosos.

São muitos os problemas que se arrastam há anos, nomeadamente a falta de médicos de família. Isto acontece pela falta de incentivos?

Estou muito preocupado com aquilo que está a acontecer na saúde. Não se estão a tomar decisões… Há um “deixar andar”; uma estranha apatia por parte do ministério da Saúde. É algo incompreensível se pensarmos que temos cerca de 1,3 milhões de utentes sem médico de família.

E vamos ter 2,5 milhões se se reformarem todos os médicos das vagas de 74 a 77…

Sim, há muitos médicos de família acima dos sessenta anos que continuam a assegurar ficheiros de utentes. E sim, a minha preocupação não é para esses 1,3 milhões de utentes sem médico de família que existem atualmente, é para muito mais do que isso. Esse valor poderá duplicar caso o ministério da Saúde não tomar medidas.

Que medidas são essas?

São várias. Em primeiro lugar, é necessário garantir mais capacidade de formação dos médicos de família nos centros de saúde. O país não precisa de diplomados em Medicina, mas de especialistas em várias áreas, nomeadamente em MGF. Há milhares de médicos que ficam fora dos concursos de entrada para especialidades médicas.

Qual a razão disso acontecer? Há falta de centros com idoneidade formativa?

A ordem envia, todos os anos, relatórios de visitas de idoneidade ao ministério da Saúde onde aponta, de forma muito precisa, quais são as dificuldades dos estabelecimentos de saúde. Resolvidas estas dificuldades poderia ser possível mais formação, mantendo os padrões de qualidade e de exigência.

Dos relatórios que são enviados, sabe quantas respostas tempos por parte do ministério? Nenhuma.

São “grandes problemas” os que apontam?

E muitos casos são pequenos problemas, de fácil resolução, mas que permitiriam garantir a formação de mais médicos de família.

Por outro lado, temos o problema das vagas e da forma como os concursos são feitos em Portugal. Não existe nenhum critério na abertura dessas vagas. Não sabemos como é que o ministério decide abrir as vagas para a contratação de médicos. Chegamos a ter situações absolutamente ridículas em que abre um determinado número de vagas precisamente nos locais onde não estavam a ser formados internos… O que acontece muitas vezes é que nos locais, onde os médicos internos já estavam instalados e a receber formação, não são abertas vagas para contratação.

Temos ainda o problema de fixação dos médicos. Aquilo que temos vindo a assistir é um pouco uma paródia de incentivos, que não são incentivos nenhuns e que só servem para a tutela poder dizer que “os médicos têm incentivos e acabam por não os querer”.

Mas existem incentivos, basta olhar para as unidades de modelo B…

De facto, essas USF de modelo B são muito atrativas. Mas não estou a falar desses incentivos mas dos incentivos que são dados aos médicos quando vão para áreas carenciadas. Do meu ponto de vista esses incentivos são mal enquadrados. Considero que têm que ser oferecido aos médicos projetos nos seus locais de trabalho. Hoje, estes projetos não existem. As pessoas quando olham para o SNS, não olham para um sistema a construir-se, mas para um sistema a decompor-se e, portanto, é natural que não seja atrativo.

Por outro lado, é preciso olhar para a questão da saúde numa perspetiva de coesão territorial. É preciso criar condições para motivar as populações a descolarem-se para as zonas mais periféricas. E isso não acontece. O médico não se desloca para uma outra área só porque vai ganhar mais, tem que haver toda uma estrutura que o possa acolher.

E com a descentralização, essas necessidades não poderiam ser supridas?

Tem que haver vários intervenientes, e não só o ministério da saúde, a juntarem-se para criar as devidas condições para tornar determinadas áreas mais atrativas para os profissionais de saúde. Não serve de nada só desenvolvermos Lisboa e o Porto e esquecermos outras áreas do país. Os incentivos têm que ser integrados com outros ministérios.

Como olha para a fuga de médicos para o setor privado?

É um fenómeno que não é muito recente e que revela que o setor privado está a conseguir cativar médicos de família. Neste momento, a iniciativa privada está a apostar em maior diferenciação. De facto, os cuidados de saúde primários são muito importantes para o país. A minha visão para a Saúde não é uma visão centrada no tratamento das doenças, mas sim na de prevenção de doenças. Penso que, para o futuro, a aposta da saúde tem que ser precisamente essa. Temos que apostar na promoção da saúde, na literacia e na prevenção das doenças. É aqui que a própria ordem se tem que se posicionar: manter a saúde das pessoas. São os médicos de família que têm esse papel.

Existe um forte fator ideológico que impede que exista, de facto, um sistema nacional de saúde. Qual a sua opinião sobre esta realidade?

Sou médico do Serviço Nacional de Saúde por opção. Acho que tenho de dar um contributo ao país, mas isso não quer dizer que não tenha um enorme respeito pelo setor privado e social. No entanto, considero que o SNS tem que ter a capacidade de dar resposta à população portuguesa.

Enquanto dirigente da OM, e pondo de lado, as questões ideológicas, confesso que não quero saber se é público ou se é privado. Quero é que haja qualidade na prestação dos cuidados de saúde. Se há uma capacidade já instalada então tem que ser aproveitada.

O Estado sabe que existe essa capacidade instalada, mas não a utiliza…

Com a ministra que temos não sei se existe uma questão de ideologia ou uma questão de paralisia e de incapacidade de concretizar. A verdade é que Marta Temido, a não ser alguma atividade que demonstrou durante a pandemia, nada tem feito. Todos os problemas estão já identificados… Falta apenas uma coisa, o que começa a ser cansativo até para os portugueses, e que é a falta de intervenção. Eu próprio já estou cansado de ouvir falar sobre os problemas. Acho que o país tem que pedir ao ministério uma verdadeira ação.

Processo clínico único é um deles… Tarda a ver a luz do dia

Como é que é possível que, nesta fase de desenvolvimento tecnológico na área da informática, não exista um processo único? Dizem que o doente está no centro do sistema, mas não é bem assim… O doente anda à volta do sistema. Há muita coisa a fazer nesse âmbito.

Como é que se explica que isso ainda não tenha avançado?

Também não sei. Talvez o ministério possa explicar porque é que em vez de se concentrar em fazer um processo único para um doente, cria uma multiplicidade de programas informáticos. Estive a contá-los há um par de anos e verifiquei que são mais de trinta ou quarenta. Está tudo completamente desintegrado e muitas vezes até a funcionar mal. A criação de um processo único seria um passo importante para criar, à volta do doente, uma equipa de intervenção.

Temos hospitais em que parece que as administrações conseguem resolver os contratempos. Considera que as dificuldades que existem em alguns hospitais é um problema dos conselhos de administração?

Eu gosto muito de ir ao terreno e até ao dia de hoje não encontrei nenhum local que me dissesse que não têm problemas. Conheço, sim, hospitais que me dizem que não têm, mas que eu sei que têm. Há conselhos de administração que gostam de esconder as dificuldades, esmagando os seus profissionais internamente e colocando uma pressão enorme para que façam um trabalho que não deveria ser feito só por aqueles profissionais.

As lideranças são muito importantes e, neste momento, temos más lideranças a começar pelo topo da pirâmide. Temos lideranças medíocres que não conseguem resolver os problemas. Temos lideranças muito más nos hospitais. Acho que é profundamente errado aquilo que a ministra tem feito e que tem sido substituir, à frente das instituições de saúde, médicos por gestores. Isso dá maus resultados. Os médicos são os mais indicados para dirigir hospitais.

Cada vez vais é reiterado que são necessárias mais escolas médicas. É de facto necessário?

É uma mentira que está a ser veiculada para a população portuguesa: a de que se há falta de médicos então tem que haver mais faculdades. É uma grande mentira. Tal como já disse, não precisamos de mais diplomados, mas sim de médicos diferenciados. Os portugueses precisam de mais médicos especialistas. Criar mais faculdades de Medicina não resolve o problema.

Como se explica então essa intenção tantas vezes manifestada?

Os governos têm pretendido nos últimos anos desvalorizar a profissão médica.

Já a OM têm tido um papel essencial de proteger e defender a qualidade da formação médica. Se temos especialistas com este nível de exigência no país é pela intervenção da Ordem. O grande problema do país não está nas faculdades, mas sim nos hospitais e centros de saúde.

Não há idoneidades formativas suficientes?

Não há neste momento condições para as absorver. O ministério da Saúde deveria fazer um maior esforço para melhorar a formação médica.

Como se melhoram as condições atuais?

Valorizando as carreiras médicas e permitindo uma maior diferenciação dos profissionais de saúde; atribuindo maior responsabilidade de liderança aos próprios médicos e reforçando a capacidade de reposta.

Toda a gente está consciente que o burnout é algo que atinge fortemente a classe médica, o que é que a Ordem propõe para apoiar os médicos?

Era importante que o ministério evitasse que isso acontecesse, mas obviamente que o burnout acontece e a OM tem acompanhado este problema. Fizemos um estudo para perceber as várias componentes de burnout e chegámos à conclusão de que a principal causa é a exaustão dos médicos. O nível de trabalho dos profissionais de saúde é muito superior àquilo que era há uns anos. Os médicos sentem-se frustrados por não terem as condições adequadas para poderem tratar os seus doentes.

Depois de identificarmos os problemas, criámos um gabinete de apoio ao médico para onde os colegas são encaminhados e acompanhados por especialistas.

Uma nota final.

Assumo o legado dos meus antecessores que têm feito um trabalho notável. No entanto, há uma vontade muito grande de aprofundar o trabalho meritório que tem sido desenvolvido. Quando entramos nestes períodos há uma tendência para esquecer aspetos como: a criação de um fundo de apoio à formação, o reforço do fundo de solidariedade para os médicos e o desenvolvimento de uma série de iniciativas de aproximação e participação dos médicos na sua ordem.

Entrevista de HealthNews, pode aceder à revista completa aqui