HealthNews (HN) – A Unidade Local de Saúde de Santa Maria é a representante portuguesa num projeto inovador para a apneia obstrutiva do sono. Em que consiste a doença e o projeto?
Paula Pinto (PP) – A síndrome de apneia obstrutiva do sono tem uma prevalência bastante elevada na população: um em cada dois homens tem apneia do sono e uma em cada 4 mulheres tem apneia do sono moderada a grave, e esta patologia tem consequências muito graves. A síndrome de apneia do sono é uma situação caracterizada por paragens respiratórias que se repetem várias vezes ao longo da noite e que originam diminuição dos níveis de oxigénio no sangue e despertares. Por outras palavras, deixamos de respirar quando estamos a dormir. Como consequência da baixa oxigenação dos órgãos podem advir complicações cardiovasculares e cerebrovasculares muito importantes, por exemplo enfarte, AVC, arritmias, podendo até chegar a levar à morte. Estando consecutivamente a parar a respiração, para que a pessoa não morra, temos uma compensação do organismo que faz com que estejamos sempre a despertar, então o sono não é nada reparador. Isso vai trazer-nos alterações cognitivas, nomeadamente sonolência diurna excessiva, alterações da memória, da concentração, da atenção e vamos ter maior risco de acidentes de viação, acidentes de trabalho e, consequentemente, um mau rendimento no trabalho. É uma péssima qualidade de vida para a pessoa e para quem a rodeia. O ruído que a pessoa faz ao ressonar à noite, por exemplo, não deixa o/a companheiro/a dormir; o companheiro tem medo que o doente morra de noite porque para de respirar.
Como a síndrome de apneia obstrutiva do sono representa um risco muito grande para a saúde e tem uma prevalência muito significativa, há que diagnosticar rapidamente estes doentes e tratá-los. Até agora, tudo está organizado de uma forma hospitalocêntrica, ou seja, as pessoas são referenciadas pelo médico de família para irem aos hospitais que têm a consulta de sono. Imagine a lista de espera a nível global – isto é um problema mundial, com imensas referenciações para a consulta. Como a lista de espera é enorme, os doentes podem não ser diagnosticados e tratados em tempo útil, e isso pode ser altamente perigoso. E nós queremos uma medicina preventiva e não atuar só depois de já terem ocorrido as complicações. Na Unidade de Sono e Ventilação não Invasiva do Serviço de Pneumologia da Unidade Local de Saúde de Santa Maria estamos a desenvolver um projeto em que conseguimos melhorar a resposta aos doentes com síndrome de apneia obstrutiva do sono. Este é um projeto ibérico, entre Portugal e Espanha, que se denomina projeto Innobics-SAHS e que é financiado pelo EIT Health e pela União Europeia. Visa fazer uma integração de cuidados entre os cuidados de saúde primários e o hospital: o médico de família que quer referenciar o doente, em vez de o referenciar para o nosso hospital, vai dirigi-lo à técnica do sono que está no centro de saúde, mas que pertence à nossa Unidade de Sono, e que tem toda a formação nesta área.
O doente preenche logo nesse dia um questionário que dá uma pontuação que, consoante o valor, nos diz se há probabilidade de ter apneia do sono. Se houver probabilidade, a técnica coloca ao doente um equipamento para realizar um estudo do sono portátil, que o doente leva para casa. No dia seguinte, o doente vem entregar o equipamento e fazemos a interpretação do exame.
Após termos o resultado do estudo do sono, um médico pneumologista da equipa da Unidade de Sono telefona ao doente, comunicando-lhe o resultado do mesmo e, caso se confirme que tem apneia obstrutiva do sono, informa-o sobre a doença e qual o melhor tratamento. Se tiver indicação para tratamento CPAP (ventilador que funciona através de uma máscara que se aplica no nariz durante a noite e que fornece ar a uma pressão contínua, impedindo que as vias respiratórias fechem, não ocorrendo assim as paragens da respiração), é feito o ensino sobre o mesmo e são explicados os benefícios do seu uso. Posteriormente, o doente recebe uma informação clínica sobre os resultados do estudo do sono e respetivo tratamento para entregar ao médico de família. O doente fica também logo com uma consulta agendada para regressar passado um mês à técnica do sono no centro de saúde para avaliarmos a resposta do doente, e através do equipamento conseguimos também ver se as apneias já estão corrigidas. O projeto permitiu já rastrear cerca de 600 utentes de três centros de saúde de Lisboa e diminuir entre 50 a 60% o número de doentes que seriam referenciados para a Consulta de Sono da Unidade Local de Saúde de Santa Maria. O objetivo é alcançar a meta dos 1500 utentes rastreados no final deste ano.
Este projeto permite, assim, uma integração dos cuidados hospitalares com os cuidados de saúde primários, sempre num contexto de proximidade com o doente.
HN – Os técnicos estão no centro de saúde com horário completo?
PP – Sim. As técnicas do sono pertencem à Unidade de Sono do Hospital e trabalham neste projeto no centro de saúde de manhã e de tarde, sempre com o apoio da nossa equipa médica da Unidade Hospitalar.
Este projeto é financiado porque temos que ter os equipamentos para a realização dos estudos do sono e temos que assegurar o pagamento das técnicas. Conseguimos ter assim vários equipamentos, permitindo avaliar muitos doentes.
HN – Quem são os doentes graves que têm de ser acompanhados nos hospitais?
PP – Nem todos os doentes podem ser tratados no centro de saúde. Este projeto está muito bem desenhado, contemplando os doentes que tenham uma pontuação num questionário que indique uma elevada probabilidade de ter apneia do sono. São doentes com apresentações típicas, obesos, que ressonam muito e que não tenham outras doenças mais complexas, que na realidade constituem a maior percentagem de doentes que seriam referenciados para o hospital. Por exemplo, se tiveram outros distúrbios do sono, nomeadamente insónia, narcolepsia, síndrome de pernas inquietas, insuficiência respiratória ou cardíaca, não poderão ser incluídos neste projeto, pois exigem outro tipo de acompanhamento mais diferenciado e terão que ser referenciados para o hospital. Por outro lado, um doente pode ter inicialmente uma síndrome de apneia do sono simples e o doente não se adaptar ao tratamento com CPAP, ou este não estar a corrigir totalmente as apneias, e nesse caso o doente terá que ser referenciado posteriormente para o hospital. Por isso é que é fundamental ter sempre um médico hospitalar neste projeto a apoiar as técnicas do sono.
HN – Quais são os maiores desafios do projeto?
PP – Desenhar e montar este projeto foi complexo e desafiante: definir os critérios de inclusão e exclusão dos doentes, criar as plataformas informáticas, estabelecer a interligação entre os cuidados de saúde primários e hospitalares, dar formação e treinar os profissionais de saúde envolvidos e, o mais inovador e desafiante, a criação de uma Unidade de Sono Virtual que consiste na estrutura de médicos pneumologistas que dão todo o apoio às técnicas de sono que trabalham nos centros de saúde.
Por outro lado, é fundamental que o projeto seja financiado, porque é necessário adquirir vários equipamentos para a realização de estudos de sono e assegurar o pagamento das técnicas de sono.
Este é um projeto que traz uma solução inovadora e sustentável para uma abordagem diagnóstica e terapêutica mais atempada da apneia do sono, no âmbito dos cuidados de saúde primários, contribuindo assim para uma redução das alterações neurocognitivas e das comorbilidades cardiovasculares associadas à apneia do sono não tratada. Este projeto permite reduzir as referenciações para o hospital, refletindo uma melhoria da capacidade de diagnóstico dos cuidados primários.
HN – Qual será o envolvimento do médico de família?
PP – Na realidade, esta Unidade Local de Saúde veio oficializar o que nós já fazíamos anteriormente no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte. Sempre tivemos um contacto privilegiado com os médicos de Medicina Geral e Familiar dos nossos centros de saúde, do ACES Lisboa Norte. Eles pertencem agora à Unidade Local de Saúde de Santa Maria, mas sempre tivemos formação conjunta e os doentes eram também já referenciados para o nosso hospital. Assim, quando lhes apresentei o projeto, este foi logo muito bem acolhido e fizemos várias formações sobre apneia do sono para reforçar algumas particularidades e estabelecer melhor a integração de cuidados.
HN – É possível implementar o projeto em todo o país?
PP – Trata-se de uma solução inovadora que pode ser extensível a todo o nosso país. E é o que se quer fazer também em Espanha, estando já a ser replicado para toda a Catalunha.
Acho que é um projeto que é fazível e que seria fundamental a sua globalização, uma vez que a apneia do sono não tratada pode ter consequências graves para o indivíduo e para a sociedade. A apneia do sono pode retirar anos de vida e anos de qualidade ao doente e, ao mesmo tempo, em termos de SNS, é um consumo de recursos de saúde excessivo, de gastos evitáveis.
Relativamente aos técnicos que estão nos centros de saúde, podem fazer estudos do sono e seguir os casos de apneia do sono simples, e podem fazer também eletrocardiogramas, espirometrias, porque eles são técnicos de cardiopneumologia, tendo competência nestas várias áreas. O fundamental é ter sempre Unidades de Sono Hospitalares para darem todo o apoio clínico necessário aos técnicos que estão no centro de saúde. Penso que esta nova organização em Unidades Locais de Saúde pode ainda facilitar mais este tipo de solução inovadora na integração dos cuidados hospitalares com os cuidados de saúde primários.
Estamos muito contentes por a Unidade de Sono da Unidade Local de Saúde de Santa Maria ter sido escolhida para integrar este projeto com Espanha. Por outro lado, o facto de o projeto ser financiado pela EIT Health e pela União Europeia reflete a qualidade do mesmo, uma vez que são entidades avaliadoras de grande exigência, priveligiando os projetos que tragam soluções inovadoras e benéficas para os doentes e para a sociedade e que, concomitantemente, possam contribuir para sistemas de saúde mais sustentáveis.
HN – Para terminar, regressemos ao início da ligação entre Espanha e Portugal.
PP – Nós temos desde sempre um contato muito próximo com os pneumologistas espanhóis. Eles conhecem-nos, partilhamos mesas em muitos congressos internacionais, temos publicações conjuntas e integramos muitos estudos multicêntricos. O facto de conhecerem bem o nosso trabalho contribuiu certamente para a escolha da nossa Unidade de Sono para integrar o projeto.
Com este projeto, estamos a contribuir para um sono de qualidade para todos para uma melhor saúde global, que é o mote do Dia Mundial do Sono este ano.
Entrevista de Rita Antunes
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