Numa primeira análise importa referir que esta revisão serviu apenas para aprofundar o fosso entre os médicos e os restantes grupos profissionais, valorizando a atividade médica em detrimento dos enfermeiros e secretários clínicos.
A legislação que determina a organização e funcionamento das Unidades de Saúde Familiar (USF) sempre foi um diploma próprio, que reconhecia a importância destas Unidades Funcionais (UF) e dos Cuidados de Saúde Primários (CSP) no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Verifica-se neste momento, um desrespeito pela organização do SNS e simultaneamente dos restantes profissionais das USF que não são da carreira médica, ao transformar o Decreto-lei (DL) das USF num ANEXO da carreira médica.
Adicionalmente a reivindicação de que qualquer profissional licenciado deve poder coordenar uma USF desde que seja votado em Conselho Geral, continua a ser ignorado pela administração, apesar de ter sido levantada desde o primeiro momento e não existir em termos práticos ou legais qualquer motivo para o acesso à coordenação estar reservada exclusivamente à classe médica.
Esta alteração legislativa substitui as atividades específicas e os incentivos financeiros por um suplemento associado ao Índice de Desempenho da Equipa (IDE), sendo que este deve espelhar a sensibilidade aos cuidados da equipa multiprofissional. Sem prejuízo do cálculo do IDE por UF, para efeitos retributivos ou incentivo ao desempenho, este IDE deve:
1º ser calculado por grupo profissional utilizando métricas sensíveis às suas práticas;
2º ter uma base de cálculo individual e por profissional.
Numa análise mais aprofundada do IDE e do cálculo dos suplementos importa referir que ao contrário do que acontece com os médicos há uma perda real dos incentivos associados ao desempenho dos enfermeiros e uma impossibilidade prática de atingir o valor máximo total dos suplementos (€1360).
No que toca aos indicadores e à sua sensibilidade aos cuidados de enfermagem a tabela 1 esclarece claramente.
Area | Indicador | Exclusivos | Partilhados |
Acesso… | Utilização de consultas médicas. | ||
Utilização de consultas de enfermagem. | |||
Renovação do receituário crónico em 3 dias úteis. | |||
Utilização de consultas de planeamento familiar. | |||
Domicílios de enfermagem. | |||
Gestão da Saúde… | Consulta de vigilância da gravidez no 1.º trimestre. | ||
Realização de consulta em utentes com obesidade. | |||
Rastreio do cancro colo do útero. | |||
Rastreio do cancro do cólon e reto. | |||
Realização de consulta em utentes com alcoolismo. | |||
Plano Nacional de Vacinação e consulta de vigilância aos 7 anos. | |||
Plano Nacional de Vacinação e consulta de vigilância aos 14 anos. | |||
Proporção utentes com vacina tétano. | |||
Vigilância saúde infantil 1.º ano de vida. | |||
Realização de consultas de enfermagem durante a gravidez e puerpério. | |||
Vigilância saúde infantil 2.º ano de vida. | |||
Ecografia morfológica na gravidez. | |||
Exames laboratoriais no 1.º trimestre gravidez. | |||
Exames laboratoriais no 2.º trimestre gravidez. | |||
Exames laboratoriais no 3.º trimestre gravidez. | |||
Recém-nascidos cuja mãe tem registo gravidez. | |||
Fumadores com intervenções breves ou muito breves. | |||
Pessoas com abstinência tabágica. | |||
Utentes sem prescrição prolongada de ansiolíticos, sedativos e hipnóticos ajustada à pop. Padrão. | |||
Utentes com vacina gripe. | |||
Gestão da Doença… | Utentes com hipertensão com pressão arterial controlada. | ||
Utentes com hipertensão com registo de risco cardiovascular. | |||
Utentes com diabetes com registo de Gestão de Regime Terapêutico. | |||
Utentes com diabetes com consulta de enfermagem de vigilância. | |||
Utentes diabetes com última HbA1c controlada. | |||
Utentes com doença pulmonar crónica obstrutiva com espirometria. | |||
Utentes com diabetes com avaliação do risco de úlcera de pé. | |||
Utentes com diabetes tipo 2 e indicação para insulinoterapia, a fazer terapêutica adequada. | |||
Novos utentes com diabete tipo 2 em terapêutica com metformina em monoterapia. | |||
Utentes com diabetes com pressão arterial controlada. | |||
Utentes com diabetes com valores controlados de Colesterol LDL. | |||
Utentes adultos com evidência de asma ou DPOC ou bronquite crónica, com o diagnóstico registado. | |||
Utentes com DPOC com consulta de vigilância. | |||
Utentes com asma, com consulta vigilância. | |||
Qualificação da prescrição… | Prescrição de medicamentos por utente padrão. | ||
Prescrição de MCDT por utente padrão. | |||
Integração de Cuidados… | Internamentos evitáveis. | ||
Resolutividade da unidade funcional para a doença aguda. |
Tabela 1 – Indicadores do IDE sensíveis aos cuidados de enfermagem
Pintados a verde os indicadores exclusivos da atividade clínica dos enfermeiros – 7
Pintados a azul os indicadores partilhados na atividade clínica dos enfermeiros e dos médicos – 22
Indicadores da atividade exclusiva dos médicos – 13
Há um indicador, que por opção governamental não pode avaliar a atividade da USF porque é partilhado com empresas privadas, o indicador da vacinação da gripe.
Temos 35 indicadores sensíveis aos cuidados médicos e 29 sensíveis aos cuidados de enfermagem. Não contanto com a vacinação da gripe implica que os enfermeiros são exclusivamente ou partilhadamente responsáveis por 69% dos indicadores e os médicos por 83%.
Mas isso não é refletido naquilo que são os incentivos ao desempenho clínico tal como se pode observar na tabela 2.
Valor máximo de compensação do IDE por GP | € | % do total | ||
Enfermeiros | 460 | 13,27% | ||
Médicos | 2860 | 82,49% | ||
Secretários | 147 | 4,24% | ||
TOTAL | 3467 | 100% |
Tabela 2 – Distribuição dos incentivos ao desempenho pelos diversos grupos profissionais
Os médicos que são responsáveis exclusivamente ou partilhadamente por 83% dos desempenho clinico e recebem (e bem!!!) 82%, enquanto que os enfermeiros apesar de serem responsáveis exclusivamente ou partilhadamente por 69% do desempenho clinico recebem apenas 13% do total de incentivos ao desempenho.
A desigualdade de reconhecimento e tratamento é berrante.
Mais berrante se torna o estabelecimento de contratos com entidades privadas para a prestação de cuidados da carteira básica de serviços das USF ignorando as competências dos enfermeiros de família, nomeadamente as competências comuns (Skill Mix) e aquelas que podem ser delegadas nestes pela classe médica com base em normas universais da DGS, tal como sucede com um dos maiores programas de saúde e aquele que tem mais sucesso em Portugal: o Plano Nacional de Vacinação (PNV).
Analisando os limites estabelecidos para o pagamento do IDE a situação é ainda mais berrante como é exemplo a tabela 3.
Resultado do IDE em % | Valor máximo a receber mensalmente | Valor máximo Atual (AE e IF) | ||||
Enfermeiros | Médicos | Secretários | Enfermeiros | Médicos | Secretários | |
10 | -460 | -2860 | -147 | 300 | 1430 | 95,83 |
15 | -402,5 | -2502,5 | -128,625 | |||
20 | -345 | -2145 | -110,25 | |||
25 | -287,5 | -1787,5 | -91,875 | |||
30 | -230 | -1430 | -73,5 | |||
35 | -172,5 | -1072,5 | -55,125 | |||
40 | -115 | -715 | -36,75 | |||
45 | -57,5 | -357,5 | -18,375 | |||
50 | 0 | 0 | 0 | |||
55 | 57,5 | 357,5 | 18,375 | |||
60 | 115 | 715 | 36,75 | |||
65 | 172,5 | 1072,5 | 55,125 | |||
70 | 230 | 1430 | 73,5 | |||
75 | 287,5 | 1787,5 | 91,875 | |||
77 | 310,5 | 1930,5 | 99,225 | |||
80 | 345 | 2145 | 110,25 | |||
85 | 402,5 | 2502,5 | 128,625 | |||
90 | 460 | 2860 | 147 | |||
95 | 460 | 2860 | 147 | |||
100 | 460 | 2860 | 147 |
Tabela 3 – Demonstração do valor de IDE necessário e logo esforço dos 3 grupos profissionais para atingirem o valor de AE e IF atuais a 100%
Enquanto para os médicos o esforço necessário para não terem perdas face ao momento atual é terem um IDE mínimo de 70%, os enfermeiros e secretários clínicos têm que atingir os 77%.
Analisando o valor total que os grupos profissionais podem receber somando o incentivo ao aumento de lista e o incentivo ao desempenho a situação é ainda mais gritante como podemos ver na tabela 4.
Valor máximo – €1360 | Valor máximo – €3484 | Valor máximo – €687 | |||
Enfermeiros | Médicos | Secretários | |||
UC de lista | IDE necessário | UC de lista | IDE necessário | UC de lista | IDE necessário |
100 | 234 | 60 | |||
200 | 468 | 120 | |||
300 | 702 | 90% | 180 | ||
400 | 936 | 90% | 240 | ||
500 | 1170 | 90% | 300 | ||
600 | 1404 | 85% | 360 | ||
700 | 1534 | 85% | 420 | ||
800 | 1664 | 85% | 480 | ||
900 | 90% | 1794 | 85% | 540 | 90% |
-€ 300 | |||||
Valor máximo – €1060 | Valor máximo – €3184 | Valor máximo – €387 | |||
Enfermeiros | Médicos | Secretários | |||
UC de lista | IDE necessário | UC de lista | IDE necessário | UC de lista | IDE necessário |
100 | 234 | 60 | |||
200 | 468 | 90% | 120 | ||
300 | 702 | 85% | 180 | ||
400 | 936 | 85% | 240 | 90% | |
500 | 1170 | 79% | 300 | 75% | |
600 | 90% | 1404 | 75% | 360 | 60% |
700 | 85% | 1534 | 75% | 420 | 50% |
800 | 75% | 1664 | 75% | 480 | 50% |
900 | 65% | 1794 | 70% | 540 | 50% |
Tabela 4 – Esforço e valor de IDE necessário para cada grupo profissional atingir o valor máximo de incentivos definido pelo MS
É possível observar que desde o primeiro momento e ainda que se exija um IDE mínimo de 90%, os médicos com apenas 2 UC conseguem atingir o somatório de incentivos (lista + desempenho). No caso dos enfermeiros e secretários tal só é possível se tiverem 9 UC de lista.
Mesmo perdendo €300 em relação ao máximo possível o enfermeiro continua a precisar de um IDE de 90% e apenas se tiver 6 UC consegue atingir €1060 perdendo €300 face ao total possível (€1360).
Para finalizar com a atual revisão todos os profissionais perdem o pagamento de 1 UC de lista.
Importa questionar se é isto que significa valorizar os cuidados de saúde primários e valorizar os enfermeiros e as suas competências?
Comentários