A violência contra crianças e jovens, é classificada como uma omissão e/ou uma ação, praticada por qualquer pessoa de forma não acidental, que implica com a dignidade da criança, o seu desenvolvimento biopsicosocialespiritual, que de alguma forma ameaça a sua segurança e põe em causa os seus direitos. A violência pode aparecer sob a forma de negligência, maus-tratos físicos e/ou psicológicos, abuso sexual, mendicidade, cyberbullying, abuso sexual online e Síndroma de Munchausen por Procuração.
A APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vitima) recebeu em 2023, 10 271 crimes de violência contra crianças e jovens, tendo a violência doméstica aumentado 20,7% de 2022 para 2023, e os crimes sexuais contra crianças e jovens aumentado 29,8%, no mesmo período. Sabemos também que o perfil de vitimação acontece de forma continuada (32,9%), com uma duração de 2 a 3 anos (18,6%), que são feitos na residência comum (49,9%), as vitimas são maioritariamente do sexo feminino (60,7%) e o agressor é essencialmente do sexo masculino (60,1%). Sendo considerado um problema de saúde pública, qualquer tipo de violência contra crianças e jovens, coloca desafios particulares aos profissionais de saúde, essencialmente, ao nível da ética e da deontologia.
Proteger crianças e jovens, é respeitar os princípios éticos da beneficência, da não maleficência, da vulnerabilidade, da autonomia e da justiça. Estes princípios implicam responsabilidades deontológicas de conhecimento sobre os direitos humanos, os direitos da criança, declarações internacionais, legislação nacional e os recursos existentes, para que possa ser dada uma resposta necessária, suficiente e adequada.
Contudo, alguns profissionais têm dúvidas quanto à articulação entre a manutenção do sigilo e a denuncia das situações de crianças vítimas de violência. E sim, o enfermeiro está obrigado a guardar segredo profissional sobre o que toma conhecimento no exercício da sua profissão, assumindo o dever de: a) Considerar confidencial toda a informação acerca do alvo de cuidados e da família, qualquer que seja a fonte; b) Partilhar a informação pertinente só com aqueles que estão implicados no plano terapêutico, usando como critérios orientadores o bem -estar, a segurança física, emocional e social do indivíduo e família, assim como os seus direitos; c) Divulgar informação confidencial acerca do alvo de cuidados e da família só nas situações previstas na lei, devendo, para o efeito, recorrer a aconselhamento deontológico e jurídico (Lei nº 156/2015, de 16 de setembro, Artº 106.º, 1, CDOE – Código Deontológico da Ordem dos Enfermeiros).
No entanto, os enfermeiros também têm o dever de: Respeito pelos direitos humanos na relação com os destinatários dos cuidados (Artº 99.º, 2, b), CDOE); Salvaguardar os direitos das crianças, protegendo-as de qualquer forma de abuso (Artº 102.º, b), CDOE); Atribuir à vida de qualquer pessoa igual valor, pelo que protege e defende a vida humana em todas as circunstâncias; b) Respeitar a integridade biopsicossocial, cultural e espiritual da pessoa; c) Participar nos esforços profissionais para valorizar a vida e a qualidade de vida (Artº 103.º, a), CDOE); Dar, quando presta cuidados, atenção à pessoa como uma totalidade única, inserida numa família e numa comunidade; e, b) Contribuir para criar o ambiente propício ao desenvolvimento das potencialidades da pessoa (Artº 110.º, a), CDOE).
Neste sentido, deve numa primeira intervenção, denunciar as situações de violência contra crianças e jovens, aos Núcleos de Apoio às Crianças e Jovens em Risco (NACJR) ou aos Núcleos Hospitalares de Apoio às Crianças e Jovens em Risco (NHACJR) (Despacho nº 31292/2008, de 5 de dezembro), e orientar o indivíduo para o profissional de saúde adequado para responder ao problema, quando o pedido não seja da sua área de competência (Artº 104.º, b), CDOE), assim como, atuar responsavelmente na sua área de competência e reconhecer a especificidade das outras profissões de saúde, respeitando os limites impostos pela área de competência de cada uma (Artº 112.º, a), CDOE). Denunciar ou notificar significa fazer o relato de factos perante a entidade competente: contar o quê, quem, quando, onde, como e porquê. Assim, os profissionais de saúde, por inerência das funções que desempenham, têm responsabilidade particular na deteção precoce de fatores de risco, de sinais de alarme e na sinalização de crianças e jovens em risco, ou em evolução para verdadeiro perigo, pelo que há que criar, ou reformular onde existam, modelos organizativos e formas mais estruturadas de ação de cuidados de saúde que assegurem mecanismos, cada vez mais qualificados e efetivos, para intervir neste contexto.
Uma criança em perigo é uma situação de emergência, de perigo atual ou iminente para a vida ou a situação de perigo atual ou iminente de grave comprometimento da integridade física ou psíquica da criança ou jovem, que exija proteção imediata nos termos do artigo 91.º, ou que determine a necessidade imediata de aplicação de medidas de promoção e proteção cautelares; as pessoas singulares ou coletivas, públicas, cooperativas, sociais ou privadas que, por desenvolverem atividades nas áreas da infância e juventude, têm legitimidade para intervir na promoção dos direitos e na proteção da criança e do jovem em perigo (Lei nº 142/2015, 8 de setembro, Artº 2.º, c) d)). Pode ler-se na mesma legislação, que a comunicação é obrigatória para qualquer pessoa que tenha conhecimento de situações que ponham em risco a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade da criança ou do jovem (Artº 66.º, 2). Logo, o dever de sigilo, não pode nunca, sobrepor-se ao dever de preservar a vida e a integridade da pessoa.
Sabemos, que vítima é toda a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente, um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou uma perda material, diretamente causada por ação ou omissão, no âmbito do crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal, incluindo as crianças ou os jovens até aos 18 anos que sofreram maus tratos relacionados com exposição a contextos de violência doméstica (Lei nº 57/2021, de 16 de agosto, Artº 2.º, a)). As crianças têm direito à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão… (Constituição da República Portuguesa, Artº 69º).
O crime de violência doméstica previsto no artigo 152º do Código Penal tem natureza pública, o que implica que é de denúncia obrigatória para as polícias (sempre) e para funcionários públicos que tomem dele conhecimento no exercício de funções e por causa delas e o processo corre mesmo contra a vontade do titular dos interesses ofendidos.
Contudo, um crime só existe se for provado, e para tal, é necessário: submeter a vitima a exames ou perícias médico-legal para a identificação das lesões sofridas com a agressão; tirar fotografias se tiver marcas físicas, como forma de documentar as lesões; guardar mensagens (sms, emails…) que lhe forem enviadas pelo agressor com ameaças; identificar testemunhas do crime; e, apresentar informação médica e de enfermagem. Para isso, os registos devem ser completos, registando com rigor as observações e as intervenções realizadas, para que se possa assegurar a continuidade dos cuidados (Artº 104.º, d), CDOE).
Para que os registos sejam rigorosos, os enfermeiros devem saber preservar vestígios. Para isso, os profissionais de enfermagem devem adquirir e acompanhar os avanços do conhecimento na área da Medicina Legal, conhecer os procedimentos que envolvem a identificação, recolha e preservação de vestígios com relevância médico-legal, cooperar com outras entidades e profissionais, sensibilizar para as repercussões que as intervenções de enfermagem têm perante casos clínicos em que se apliquem as questões da Justiça. Esta responsabilidade é assegurada por uma atualização permanente dos seus conhecimentos, designadamente através da frequência de ações de qualificação profissional (Artº 100.º, e), CDOE), pois só assim podem contribuir para a salvaguarda dos direitos das vítimas.
No cumprimento do seu dever de informação, os enfermeiros têm o dever de informar sobre os recursos a que a pessoa pode ter acesso, bem como sobre a maneira de os obter (Artº 105.º, d), CDOE), para os capacitar sobre, onde e a quem devem informar sobre os maus tratos que sofreram. Assim, qualquer denuncia pode ser reportada: à PSP (112), GNR, Ministério Público (213921 900), APAV (116006), Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens (300 509 717 ou 300 509 738) e Institutos de Medicina Legal (218811830).
No mesmo alinhamento de responsabilidades, os enfermeiros devem capacitar os pares e outros elementos da equipa, para a identificação da criança e jovem em situação de risco e a respetiva notificação. Como? Sensibilizar para o tema, reconhecer o problema, criar grupos de trabalho, proceder ao diagnóstico das necessidades em cada contexto, promover formação nesta área abordando temas como, a tipologia, os sinais e os sintomas dos maus-tratos, proceder corretamente ao encaminhamento, denunciar, elaborar e/ou atualizar normas institucionais e estruturar formas de ação.
Dos princípios orientadores para a intervenção com crianças e jovens em risco, qualquer profissional deve: 1 – salvaguardar sempre o superior interesse da criança e do jovem; 2 – respeitar a intimidade e a privacidade; 3 – respeitar o direito à imagem; 4 – iniciar uma intervenção precoce e mínima, com os profissionais estritamente necessários; 5 – elaborar um plano de intervenção proporcional; 6 – promover e assegurar as responsabilidades parentais; e, 7 – informar todos os intervenientes sobre a necessidade da intervenção.
A prevenção deve estar sempre incluída como forma de: 1 – promover os cuidado centrado na família; 2 – orientar os pais sobre os cuidados e necessidades da criança; 3 – prevenir possíveis ocorrências de negligência; 4 – identificar precocemente famílias de risco; e, 5 – reportar, notificar e encaminhar sempre que se suspeite de situações de maus tratos. Os enfermeiros devem corresponsabilizar-se pelo atendimento do indivíduo em tempo útil, de forma a não haver atrasos no diagnóstico da doença e respetivo tratamento (Artº 104.º, a), CDOE).
A notificação é uma intervenção de enfermagem, que permite a continuidade de cuidados e a manutenção da segurança da criança e do jovem, sendo por isso um dever deontológico.
Neste sentido, o silêncio é um consentimento à violência e a notificação um ato de responsabilidade profissional e de justiça para com as crianças e jovens que são vitimas, pois é dando voz ao seu sofrimento e apoiando o seu crescimento e desenvolvimento, que podemos construir um mundo mais humano, seguro e protetor.
REFERÊNCIAS
APAV (2021). Folha informativa violência contra crianças. https://apav.pt/apav_v3/images/pdf/FI_Violencia_contra_criancas_2021.pdf
APAV (2023). Crianças e jovens vítimas de crime e de violência. Estatísticas APAV 2022-2023. https://apav.pt/apav_v3/index.php/pt/3460-estatisticas-apav-criancas-e-jovens-vitimas-de-crime-e-violencia-2022-2023
DGS (2023). Prevenção da violência contra crianças e jovens. https://www.sns24.gov.pt/guia/prevencao-da-violencia-contra-criancas-e-jovens/#o-que-e-considerada-violencia-contra-criancas-e-jovens
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