Por milénios fomos caçadores e recolectores. Em boa verdade, só nesta ínfima parte de tempo civilizacional, a dos últimos dois séculos, a Humanidade experimentou sentar-se à mesa com alimentos industrialmente processados, passear-se nas superfícies comerciais e experimentar um novo modo de vida que joga com o termo conveniência. Centenas de milhares de anos a recolher alimentos na sua fonte, lutar por eles, experimentar-lhes o sabor, trocá-los diretamente com congéneres nos territórios de origem, deixam mossa. Neste século XXI de livre serviço, disponibilidade alimentar e sua produção industrial, reinventámos algumas perguntas. Andavam esquecidas. Em comum a todas elas, o facto de nos ligarem à origem. De onde nos chega o que comemos? Como nos chega? Que impacto tem no ambiente? Estamos a comer o alimento na estação do ano em que vinga?

Para João Sá, cozinheiro, ou se se preferir chefe de cozinha (é um líder, como veremos), todas estas perguntas recebem resposta com a mesma naturalidade que nos traz a fava à mesa em maio e junho ou o tomate em julho e agosto, nas estações do ano que lhes são próprias. Em setembro de 2018 João abria o seu restaurante na Rua dos Bacalhoeiros, em Lisboa. Apadrinhou-o com apenas duas silabas Sá-La. Um Sá que verte do apelido do homem para quem a paternidade lhe mudou o rumo e a forma de cozinha. Uma Sála porque, para João, a sua nova casa em edifício de traça pombalina, de ambiente recuperado pelo atelier de arquitetura ForStudio, é um convite a puxarmos da cadeira e nos sentarmos. Com que propósito? Experimentarmos uma cozinha despojada, com valorização real dos ingredientes; reta final de um percurso que faz a ponte entre a buliçosa Lisboa e todos os fornecedores, em diferentes territórios, que João Sá elegeu como “amigos”. Onde se inclui, por exemplo, o ´Senhor` Valentim, com os seus 80 anos, um fazedor intuitivo de farinhas.

“Se um chefe pega na cozinha tradicional portuguesa, hoje blindada, está lixado” – Chefe de cozinha João Sá
créditos: @Sála

João Sá transporta para as mesas do seu Sála aquilo que tanto o padrinho, como uma ama que lhe ocupa o lugar de segunda mãe, lhe incutiram ainda em tenra idade, o amor pela comida. Assim como o seu percurso académico e laboral. Aos 14 anos, o seu interesse por tudo o que era prático e manual levou-o até à Escola de Hotelaria do Estoril. Mais tarde, haveria João de entrar nas cozinhas do Bica do Sapato (chefe de cozinha Fausto Airoldi), Viridiana (restaurante com uma estrela Michelin em Madrid, sob a alçada do chefe Abraham Garcia), Sheraton Porto (chefe de cozinha Jerónimo Ferreira), 100 Maneiras (chefe de cozinha Lubomir Stanisic), Viajante, em Londres (chefe de cozinha Nuno Mendes). A estreia a solo dá-se no G-Spot, em 2009.

Agora, sentamo-nos, aqui, no Sála. Uma conversa descontraída, onde se fala de paternidade, de verdadeira sazonalidade e de uma carta de restaurante descomprometida com grandes aparatos, mas com “grande jogo de cintura”. “Tenho uma grande responsabilidade, manter-me fiel ao conceito que aqui trago”, sublinha João. Vamos perceber porquê.

Os chefes só são chefes se liderarem uma cozinha. Repare, é uma palavra muito difícil de usar. Independentemente de ser chefe de cozinha, sou um cozinheiro porque continuo a cozinhar. Em boa verdade, quase todos os chefes são cozinheiros e há muitos cozinheiros que nunca serão chefes.

Antes de entrarmos nesta Sála, seria interessante percebermos quem é o anfitrião. É verdade que aos 12 anos já organizava iniciativas de cozinha na sua escola?

Sim. Tenho memória de a certa altura, na escola, talvez pelo meu sétimo ou oitavo ano, termos de explorar um tema relacionado com a Bélgica, qualquer coisa com batatas fritas e mexilhões. Eu consegui dinamizar aquilo e o resultado não foi mau. Sempre gostei muito deste lado, o de empreender. Quando eram jovem vivia num sítio calmo e eu, mais os meus amigos, passávamos muito tempo na rua. Fazíamos muitas vezes, ao sábado, fogueiras de fim de dia. Tínhamos essa obsessão pelas fogueiras. Cada um de nós ia buscar a casa qualquer coisa para comer e fazíamos ali, no fogo, uma petiscada. Normalmente quem ficava a cozinhar era eu [risos]. Não sei lidar com a passividade. Se não sou líder fico confuso.

O João tem um percurso largo no que respeita a experiência em cozinhas de diferentes restaurantes. O que lhe ficou de memória dos restaurantes por onde passou?

Naquelas grandes cozinhas não somos mais do que um dente numa engrenagem. O que fica de mais importante são as pessoas. Gosto de chefes de cozinha que têm cuidado com as suas equipas. Um que me marcou foi o chefe Jerónimo Ferreira, no Sheraton Porto. Incentivou-me a continuar. Recordo-me, no meu segundo ano de estágio, de uma senhora, a Dona Leonor, que me dizia, “abandona cozinha, isto não é para ti, és muito novo”.

“Se um chefe pega na cozinha tradicional portuguesa, hoje blindada, está lixado” – Chefe de cozinha João Sá
Couve, pimentão e trigo sarraceno. créditos: @Sála

João, todos deixamos uma assinatura. Como se define como chefe de cozinha?

Os chefes só são chefes se liderarem uma cozinha. Repare, é uma palavra muito difícil de usar. Independentemente de ser chefe de cozinha, sou um cozinheiro porque continuo a cozinhar. Em boa verdade, quase todos os chefes são cozinheiros e há muitos cozinheiros que nunca serão chefes. E nem pode ser assim. Mais não seja por uma questão de capacidade pessoal. Podes cozinhar a vida toda sem capacidade para chegar a líder. Para o seres tens de saber lidar com as pessoas.

João, ao visitarmos o seu site de apresentação deste Sála há uma frase que nos fica: “puxe uma cadeira”. Quantas vezes já a ouvimos na casa de amigos ou familiares. Esta frase tão simples sumaria o que é esta sua Sála?

Toda a construção foi nesse sentido. Quisemos ter o conforto de uma sala de estar e criar proximidade com quem nos visita. O que não exclui a relação de quem está a servir. Queremos que seja muito próxima. Também vai encontrar, aqui, a cozinha aberta, o que a traz até ao cliente. No fundo, queremos que todos se sintam em casa.

Em que momento nasce a decisão:” vou abrir o meu restaurante”?

Estive quase dois anos afastado destas lides. Fui pai, quis ver a minha filha crescer. Um processo em dois sentidos, a Isabel aprende comigo e eu com ela. A própria idade também ajuda [risos], ficamos mais calmos, com outra visão, mais parcimónia. Se não tivesse a Isabel, isto seria mais despojado. A empresa sou eu e a minha mulher, a Marlene Vieira [chefe de cozinha com um espaço no Mercado da Ribeira, em Lisboa]. Quando estive em Sintra, no G-Spot, foi giro, geria o restaurante e a minha vida pessoal. Neste momento tenho a minha filha, muitas pessoas que trabalham comigo. É responsabilidade, mas também um grande gozo.

O que me choca é falarmos com o cliente e dizer-me que comeu um babaganuche [puré de beringela] ou um húmus [puré de grão-de-bico]. De repente quando estes ingredientes parecem já não fazer parte da cozinha portuguesa tornam-se fantásticos porque chegam de fora.

João, vivemos um tempo em que dizer que se trabalha o sazonal, a proximidade, o que é nosso, tomou ares de modismo. No seu caso estas palavras são para levar à letra, certo?

Um dos aspetos que sempre procurei focar não é o sazonal; prefiro dizer que a carta vai mudando. Faz-me impressão ver restaurantes que se dizem sazonais e apresentam favas em dezembro. O problema não o excesso de moda, é a falta de coerência.

“Se um chefe pega na cozinha tradicional portuguesa, hoje blindada, está lixado” – Chefe de cozinha João Sá
Pera e abóbora. créditos: @Sála

Mas apresentar as favas fora de época não é expressão do mundo global em que vivemos?

Olhe, a este propósito dou-lhe um exemplo. Hoje em dia as pessoas já não sabem comer sem tomate. Mesmo que seja em janeiro, quando não há tomate. Isso é uma pressão que está do lado do consumidor. Se ele pede o tomate no inverno, enquanto distribuidor vais ter de o ter. Se toda a gente o compra, no ano seguinte, o distribuidor vai encomendar o tomate novamente. Dou este exemplo para ilustrar como o cliente tem um peso muito grande neste processo.

Tu chegas a Itália em dezembro e não há tomate. Terás em lata, quando colhido na altura certa. Não o vais comer na salada. Estamos muito embrulhados neste acesso fácil a tudo. Já não sabemos chegar a dezembro e viver com couves, nabos, pencas, nabiças, feijão seco. Não é difícil encontrar as coisas na sua época, basta ir ao supermercado e ver o que é nacional [risos].

João, é preciso coragem para apresentar as “velhinhas” leguminosas como estrelas da carta? Dá-lhe prazer pegar em ingredientes que foram desmerecidos por décadas, como o grão-de-bico ou a nossas couves e apresentá-los à mesa. Qual é a reação?

O que me choca é falarmos com o cliente e dizer-me que comeu um babaganuche [puré de beringela] ou um húmus [puré de grão-de-bico]. De repente quando estes ingredientes parecem já não fazer parte da cozinha portuguesa tornam-se fantásticos porque chegam de fora. Vamos tocar na velha história de que o que vem de fora é que é bom. Como se pode comer ceviche em Portugal no verão? Não há abacates em julho ou agosto. Em Portugal não há limas no verão. O que há não presta. Como se pode dizer, “aquilo estava fantástico”? Não pode estar.

Acho que a cozinha portuguesa está blindada nas nossas cabeças. Ela, ao longo dos anos foi-se reinventando mas, atualmente, parece que todos sabemos o que é. Não há quem não conheça “o melhor cozido”, “a verdadeira chanfana”.

Dai não estarmos nesta Sála limitados a uma carta que dura meses…

Isto exige muito jogo de cintura. Não é fácil, tendo a premissa, por exemplo, de ter um prato vegan. Tens de tirar muitas coisas que normalmente sabe bem, como a manteiga, as natas. Agora, a questão incrível é que tu tiras isso e fazes com leite de amêndoa o puré, fazes cogumelos salteados com azeite e as pessoas continuam a dizer, “isto é tão bom”. Se calhar o problema também é meu que quero meter a manteiga no puré.

“Se um chefe pega na cozinha tradicional portuguesa, hoje blindada, está lixado” – Chefe de cozinha João Sá
João Sá e a sua equipa. créditos: @Sála

O ano passado fui ao Noma [restaurante em Copenhaga, Dinamarca, dos chefe de cozinha René Redzepi e Claus Meyer] e comi um menu de marisco. Aconteceu algo muito interessante. Tudo o que se pudesse limpar ao prato, por não interessar, era retirado. Agora, têm um batalhão de estagiários a fazer isso. Gostei desse lado, das coisas simples, boas e que não te pedem que lhes juntes muita coisa. Nós, chefes de cozinha, temos a tentação de adicionar sempre mais. É uma questão natural. Pensas: vou meter mais isto, vai ficar melhor. Mas, de facto, no final fica, por vezes, uma grande trapalhada.

Também sou consumidor e tive a oportunidade de experimentar muito, especialmente nestes dois anos mais calmos. Fui a todo o lado, a tascas, aos Michelin, para perceber cabeças, a mentalidade dos chefes de cozinha. E, normalmente, quanto mais complicada a cozinha menos me identificava.

O João dá grande visibilidade aos seus fornecedores. Há em todos eles uma grande paixão pelo que fazem. É também isso que percebemos na sua cozinha, essa entrega telúrica. De onde lhe nasceu esse apelo?

Para mim, o saber fazer foi sempre muito importante. Não tenho só fornecedores pequenos. Infelizmente temos um problema em Portugal. Apesar dos acessos fáceis e das estradas chegarem a todos os recantos, se precisar de dez quilos de batata transmontana, esta demora duas semanas a chegar a Lisboa. Se encomendar um quilo de trufa a Itália, está cá em dois dias. Se telefonar para um fornecedor espanhol com um corte específico de vaca, tenho-o. Em Portugal, se precisar de uma Barrosã vai-me entregar meia vaca.

Um dos meus fornecedores é o senhor Valentim, tem 80 anos, produz farinha de trigo artesanal. É um personagem. Neste caso estamos a falar de um homem que usa um saber empírico. O produto dele muda, tal como todas as condições do território habita, porque não há dois anos iguais. A mim cabe-me a arte de saber fazer quando estou a trabalhar com esta matéria-prima. Pode não dar tanta consistência em termos de carta, mas traz-nos outra beleza.

“Se um chefe pega na cozinha tradicional portuguesa, hoje blindada, está lixado” – Chefe de cozinha João Sá
créditos: @Sála

É um purista no que toca à cozinha portuguesa, ou prefere vê-la como evolutiva?

Acho que a cozinha portuguesa está blindada nas nossas cabeças. Ela, ao longo dos anos foi-se reinventando mas, atualmente, parece que todos sabemos o que é. Não há quem não conheça “o melhor cozido”, “a verdadeira chanfana”. Toda a gente sabe a história da alheira e já provou “a melhor do mundo”.

A cozinha portuguesa foi-se alterando ao longo dos tempos. De aldeia para aldeia a chouriça é diferente. A sopa seca de Évora é diferente da de Portalegre. Uma cataplana em Olhão não tem nada a ver com a congénere em Vila Real. O que permitiu a democracia até à data da cozinha portuguesa perdeu-se hoje em dia. Parece que está tudo identificado, fechado. Se um chefe de cozinha pega na cozinha portuguesa blindada está lixado. O Avillez faz um caldo de cozido e está lá tudo. Tem só um pouco de cada ingrediente. E é quase linchado porque, dizem, aquilo não tem nada a ver com o cozido. Por saber isso não mexo em receituário. Não fazemos aqui a a carne de porco com amêijoas. Podemos ter os mesmos ingredientes, mas não lhes vamos chamar assim. Quer dizer, a tradição em certos momentos sofre evolução. Provavelmente se não fosse assim, não teríamos a caldeirada com os pimentos.

“Se um chefe pega na cozinha tradicional portuguesa, hoje blindada, está lixado” – Chefe de cozinha João Sá

O João acusa a pressão da “ditadura” dos likes nas redes sociais?

Sinceramente cada vez sinto mais necessidade de estar nas redes sociais. Ou seja, há que saber comunicar com o nosso público, mas com moderação. Tive seis anos sem restaurante e acho que temos de ter uma entrada no meio discreta. Temos é de ser coerentes com o nosso discurso. As redes sociais, neste contexto, são importantes. Há que saber trabalhar a imagem se aí se passa.

A comida é o catalisador, mas abrir e pensar um espaço como este implica muitos elementos, incluindo a própria cerâmica que nos traz à mesa. Esta também tem uma história. Quer contar-nos?

Pusemos alguns artistas e artesãos a trabalhar connosco. A Sedimento acolheu-nos e fizeram a cerâmica connosco. Lancei-lhes o desafio, eles corresponderam. Correu muito bem. Nenhum dos pratos que aqui temos é igual entre si.