É homem de conversa franca o que torna fácil ao interlocutor confabular com Nuno Gil. Difícil é resistir-lhe ao entusiasmo contagiante pelas coisas da sua terra, ou melhor, das muitas realidades do território onde, há mais de 20 anos, vai buscar inspiração para os seus produtos doceiros, a Península de Setúbal e, particularmente, o concelho de Palmela. Nuno Gil tem marca própria “Confeitaria São Julião” e um portefólio de doces invejável, como já antes aqui demos nota. Um elenco que conta com uma espécie de patriarca, um fundador que remonta ao início dos anos de 1990, a Tarte de Santiago.
O curso na Escola de Hotelaria de Setúbal deu a Nuno os alicerces, o passar do tempo, o estudo incessante e a obstinação, conferiram-lhe a tarimba. Os produtos locais, como a laranja, a ginja, o Moscatel de Setúbal, o queijo, o mel, o feijão, a base para as criações. Uma fonte incessante para este mestre doceiro como é o caso das três novidades, que nos últimos meses saltaram do caderno de esboços do nosso interlocutor para pontos de venda como a Casa Mãe da Rota dos Vinhos e o Retiro Azul, em Palmela; a Casa da Baía e o Mercado do Livramento, em Setúbal; o Moinho de Maré da Mourisca.
No dia em que visitamos Nuno Gil encontramos um homem feliz. As suas criações doceiras foram um sucesso numa mostra de moscatéis e produtos regionais, decorrida na Baixa Pombalina, em Lisboa. O Pastel de Choco pediu bis entre nacionais e estrangeiros. Um petisco doce que se junta a uma outra dupla que ainda sabe a novidade no elenco de Nuno, o Pastel de Maçã Riscadinha e o Pastel da Marateca. Este último ainda não comercializado, em fase de estudo da embalagem.
Pastel de Maçã Riscadinha
Vamos por partes e tomemos o gosto ao Pastel de Maçã Riscadinha, “uma receita que estava na gaveta há muito tempo. É um produto local, certificado, ou seja com um trabalho de levantamento de campo e de estudo já desenvolvidos”, relata-nos Nuno, acrescentando, “faltava, contudo, a parte mais fácil [risos], ´pegar´ na Maçã Riscadinha e ver-lhe as potencialidades para lá do fruto fresco, sazonal”. Um fruto caprichoso, gosta de boa temperatura, vingando numa janela temporal curta, entre os finais de julho e o mês agosto. Dai o consumo estar muito localizado no tempo.
Não obstante, nos últimos anos, encontrarmos no mercado compota e geleia de Maçã Riscadinha. Nuno Gil viu, contudo, outro potencial nesta fruta. “O que fiz foi pegar nesta nossa maçã, ainda fresca e fiz um pastel. Continuava, contudo, preso à sazonalidade. Fui, assim, mais além e acabei por fazer duas receitas para este pastel. Uma com maçã riscadinha fresca e outra com maçã desidratada, reduzida a farinha, prolongando no tempo o consumo”.
No que respeita ao palato, “o consumidor não nota grande diferença”, afiança Nuno. “Neste projeto, lancei um repto à dona Paula Castro, produtora desta maçã. Fizemos a quatro mãos um trabalho de desidratação. O resultado é uma maçã desidratada de travo muito doce, com os açúcares muito concentrados”. Característica que o empreendedor de Palmela minimiza no pastel, não lhe acentuando o paladar açucarado.
“Gostaria de fazer outra receita, de um outro tipo de pastel, mas que se notasse abundantemente esta maçã. Isto para que o consumidor identificasse imediatamente a presença do fruto”.
Pastel de choco
De um produto da terra para um outro do mar, Nuno Gil lançou-se recentemente numa aventura em torno de um dos alimentos mais acarinhados no concelho de Setúbal, o Choco. “Era com toda a certeza o pastel que nunca me passou pela ideia conceber”, adianta-nos o doceiro. “A iniciativa partiu de um repto lançado pela Câmara Municipal de Setúbal, aquando de um festival em torno do peixe. Fui contactado para desenvolver um pastel que incorporasse o peixe. Um desafio, à partida, quase impossível de conjugar. Doce e salgado estão nos antípodas. Podem estar juntos mas nunca se ligam”.
Nuno confessa que esteve à beira de responder com um “não”. O que não aconteceu. “O que fiz foi um desconstrução. O choco frito acompanha com batata frita e uma rodela de limão. Partindo daqui, fui buscar a batata-doce da Comporta, um produto endógeno, e com ela fiz um puré”.
Faltava, contudo, o mote para o pastel, o Choco. “Cozido, grelhado, é um produto muito difícil de cozinhar. Recorri à tinta de choco, muito apreciada por alguns comensais a acompanhar, por exemplo, o molusco marinho grelhado. Aliás se pensarmos vamos encontrar a tinta de choco nas massas alimentares, no pão, nos risotos. O que a tinta aqui faz é tingir a massa tenra, conferindo-lhe alguma cor”.
O resultado final é um cremoso pastel de puré de boa batata, envolvido na massa tenra onde identificamos a tinta de choco mas, onde, naturalmente, não lhe sentimos o sabor. Está lá sem importunar.
Pastel da Marateca
É uso dizer-se que “não há duas sem três”, adágio que no caso vertente se ajusta comodamente ao aqui retratado. Desta feita, um outro desafio, o da Junta de Freguesia de Marateca, no concelho de Palmela. Território vasto, de cariz rural, ligado ao vinho e aos produtos do montado. “Acabei por conceber um pastel que junta, entre outros ingredientes, o toucinho de porco e a farinha de bolota. Esta confere uma cor ligeiramente escura e adocicada ao creme”, conta-nos Nuno. Sendo um pastel indissociável à região que lhe dá nome, liga-se à lenda de Marateca, a que nos conta o périplo da Moura Encantada que atravessou o mar. Chegada à nossa costa, falando insipidamente português, responde à pergunta sobre como ali havia chegado: do “ Mar até Cá [Marateca]”.
Nem só de pastéis vive o afã de Nuno Gil. Por estes dias também lhe vemos o entusiasmo em torno da doçaria do Convento de Jesus, em Setúbal. “Sou um apaixonado por doçaria regional, mas acima de tudo pela conventual, pelo rigor, pelas receitas, pela veracidade da História. Há muito que faço pesquisa bibliográfica. Neste âmbito deparei-me com um livro do gastrónomo Alfredo Saramago. Na obra são citadas seis ou sete receitas, sem data específica, atribuídas ao Convento de Jesus”, sublinha o nosso interlocutor.
“São receitas simples, por exemplo, temo a Bolacha da Madre Joana, os biscoitos, um bolo de laranja, um pudim também de laranja, um pitéu com cobertura de doce de ovos. Como vemos está muito arreigado aos produtos locais, nomeadamente as laranjas”.
Nuno deu a conhecer esta informação ao município de Setúbal que acabou por delegá-la no diretor do Convento de Jesus “que avaliou os fundamentos do receituário. A Câmara Municipal de Setúbal, após o fim das obras que decorrem no Convento, deverá efetuar algumas ações de formação em torno desta doçaria e, inclusivamente, uma mostra. Temos ali matéria para estudar, desenvolver e para perceber a importância do Convento de Jesus no contexto da História de Portugal”, termina o doceiro.
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