“Santos da casa não fazem milagres” não é adágio que Diana Silva, madeirense de gema, tome como certeza na sua vida. Na realidade esta apaixonada pela região onde nasceu, há 34 anos, teima em contrariar lugares comuns, ou acomodados, na hora de ir para a vinha e para a adega. Diana, com formação em marketing e comunicação, é produtora de vinhos e fá-lo com a determinação de quem quer contrariar uma espécie de maldição imposta à casta que monopoliza o pequeno território vinícola madeirense.

Quem à Tinta Negra impôs o anátema de não servir para vinhos tranquilos, vertendo apenas para os fortificados, terá de provar a trilogia de néctares que Diana vinificou de três formas diferentes - tinto, branco e rosé - e a que chamou Ilha. Néctares que a produtora apresentou em 2018, produzidos a partir da colheita de 2017 e que, atualmente, dificilmente encontramos. Já este ano, Diana apresentou novas colheitas destes seus vinhos DOP, e duas novidades - o Ilha Verdelho, e o Ilha E.

Como inspiração, os vinhos elegantes, frescos e subtis que a nossa interlocutora nesta conversa, encontra na sua região vinícola de eleição fora de portas, a francesa Borgonha.

Diana não quer, contudo, replicar uma pequena Borgonha na Madeira. Quer manter a identidade do arquipélago. Um território que olhou - ainda olha - com desconfiança para a mulher, jovem e empreendedora que, no dia em que decidiu que iria ser produtora vinícola, quis fazer diferente. “Se é para me dedicar aos vinhos, então que seja na Madeira. Não vou fazer mais um Alentejano ou Duriense”.

Diana, como se dão os seus primeiros contactos com o mundo dos vinhos?

Estou ligada ao setor há perto de 15 anos. Não fui sempre produtora de vinhos. O meu curso inicial é de Comunicação e Turismo, Direcção Comercial e Enologia, em Lisboa. Nesse contexto, tinha estágios obrigatórios e, acabo por fazê-los em empresas ligadas ao vinho. Já havia, aí, o ´bichinho` dos vinhos. Começaram também as oportunidades de trabalho nessa área. Gostei e decidi fazer uma pós-graduação em Gestão Comercial. Trabalhei, ainda, nos vinhos em restaurantes, como o Manifesto de Luís Baena, assim como com os vinhos dos produtores Rui Roboredo Madeira e Paulo Laureano. Fazer marcas é das coisas mais difíceis que há. Nos vinhos, um mercado muito fragmentado, mais difícil ainda. Acabava por estar sempre fora de casa, com pouco tempo para a família. Logo, pensei, se o caminho é este, então que seja com algo meu. Contei logo no início com o apoio do Ricardo [Ricardo Gusmão], o meu marido, que também está comigo no negócio.

Diana Silva, a madeirense que recusou os nãos quando decidiu trabalhar “vinhos impossíveis”
Diana Silva, a madeirense que recusou os nãos quando decidiu trabalhar “vinhos impossíveis”

Nesse arranque a Diana ia já com um propósito?

Sim, sou madeirense, do Funchal, queria fazer algo novo. O mercado precisa de coisas diferentes e, atualmente, encontramos aceitação por parte dos consumidores. Queria ajudar a alavancar a economia madeirense e tinha algumas certezas. Se é para me dedicar aos vinhos, então que seja na Madeira. Não vou fazer mais um Alentejano ou Duriense, não desmerecendo, pois são excelentes vinhos. Outra certeza, a de trabalhar a casta Tinta Negra.

É verdade que desde cedo lhe reconheceram um especial talento na prova de vinhos?

[Risos] Sempre fui muito curiosa, comecei a provar vinhos com 18 anos e com especialistas do setor. Na altura foram algumas dessas pessoas que me incentivaram a aprofundar. Tinha sensibilidade para a prova. Provar requer muitas memórias olfativas e de sabores. Eu, felizmente, tenho essa capacidade memorial. Acaba por ser uma mais-valia. Ainda hoje há vinhos que provei há dez anos e que recordo. Vinhos que, para mim, eram clássicos e que agora já não os vejo assim. O que fiz com essa qualidade, a da prova, foi, de facto, explorar. Isso significa provar cada vez mais. Investi muito em provas, não só de vinhos portugueses, mas também de vinhos estrangeiros. Nós fazemos bons vinhos, mas lá fora também se faz bem. É uma aprendizagem mútua.

O mercado precisa de coisas diferentes e, atualmente, encontramos aceitação por parte dos consumidores. Queria alavancar a economia madeirense e tinha algumas certezas.

Falando dos vinhos fora de Portugal, a Diana tem afeto por uma região em particular.

Sou uma fã incondicional da região da Borgonha. Os meus vinhos de eleição são frescos, elegantes e subtis. Para mim um vinho extraordinário é como uma pessoa que vemos, nos parece interessante e descobrimos, depois, que ainda vai mais longe. A Borgonha é assim e tem uma casta magnífica, a Pinot Noir.

A Diana fala em elegância e subtileza nos vinhos que aprecia. Considera que estas características estão nos vinhos feitos no feminino?

Eu quero acreditar que sim. As mulheres são mais delicadas do que os homens. Apesar disso, há vinhos feitos por homens fabulosos. O Dirk [Dirk Niepoort] faz vinhos altamente elegantes. Mas também é um homem que explorou muito o mundo e soube trazer parte desse mundo para dentro das nossas fronteiras. Ainda a propósito das mulheres no mundo dos vinhos, têm do melhor e do pior. Somos muito hormonais. Se estivermos num dia fantástico, fazemos uma prova perfeita, se estivermos num dia menos bom, podemos ser muito depreciativas. Depois, há que provar duas ou três vezes o mesmo vinho para encontrarmos uma apreciação com objetividade e justa.

Falemos da casta madeirense que tanto adora, a Tinta Negra. Como se dá a sua entrada no mundo dos vinhos e, particularmente, na região?

Era uma casta que queria mesmo trabalhar. Uma vez mais, lá está a Pinot Noir com características organoléticas que encontro na Tinta Negra. Ou seja, capaz de fazer um vinho elegante. Quando fui para o terreno, à procura de parcelas de vinha que respondessem aos meus objetivos, não houve ninguém que me dissesse, em toda a ilha, vai em frente. Foi um pouco remar contra todos e a favor de um sonho e de uma ideia.

Diana Silva, a madeirense que recusou os nãos quando decidiu trabalhar “vinhos impossíveis”
Diana Silva, a madeirense que recusou os nãos quando decidiu trabalhar “vinhos impossíveis”

Remou contra todos, porque apareceu com um propósito diferente para uma casta usada maioritariamente para vinhos licorosos, certo?

Oitenta e cinco por cento do cultivo de vinha na Ilha da Madeira integra a Tinta Negra. Esta é utilizada para os Vinhos Madeira, com três anos, cinco anos. Todos os vinhos de três anos, sejam secos, meio seco, doce. É conhecida como a casta camaleão que faz vinhos diferentes a altitudes diversas. Todos os viticultores que encontrei estavam preocupados em ter mais quantidade de uvas face a uma maior maturação. E no caso de um vinho de mesa da Madeira, quero ter as uvas melhores, porque não podemos acrescentar álcool vínico a 96%, enquanto que no Madeira podemos. Logo, há uma discrepância de 1,5 graus, pelo menos, entre aquilo a que o viticultor está habituado a vindimar para o Madeira, com 9 graus de maturação e, para nós, tendo de estar a 10,5 graus de maturação.

Todos os viticultores que encontrei estavam preocupados em ter mais quantidade de uvas face a uma maior maturação.

Na prática, a Diana teve de ter um papel de persuação  para conseguir encontrar quem lhe desse a mão…

Tive de reunir viticultores que acreditassem na nossa causa. Foi um trabalho de persistência. Atenção, já havia viticultores a fazerem o que eu procurava, como o Samuel Freitas, um produtor jovem, a quem presentemente ainda compro uvas e que está apostado em crescer connosco. O senhor Manuel Faria já apanhava uvas no ponto em que estão boas. De resto, um dos desafios é o de estarmos a contactar pessoas com uma certa idade, habituadas a trabalhar de uma certa forma e que olham para mim como uma miúda.

Do ano passado para cá, temos a ajuda da Justino´s, o maior produtor e comprador de uvas da Madeira. A Justino´s compra, todos os anos, quase metade da quota de produção vitícola da ilha. Fizemos uma parceria, para termos contacto com os viticultores da Justino´s, sem prejudicar a empresa. As nossas quantidades são pequenas, em 2018, por exemplo, foram 17 toneladas. A par dos produtores individuais que referi, a Justino´s deu-me a mão.

A Diana também não tem adega própria. Como faz?

Levo as minhas uvas para uma adega em São Vicente que pertence ao IVBAM [Instituto do Vinho, do Bordado e do Artesanato da Madeira]. As barricas e todos os produtos enológicos são opções nossas e compras nossas. Por seu turno, há quem tenha enologia própria, há quem tenha a da adega. No meu caso optei pelas duas; eu e o João Pedro [enólogo]. Também contamos com os serviços de equipamento e de engarrafamento.

Diana Silva, a madeirense que recusou os nãos quando decidiu trabalhar “vinhos impossíveis”
Diana Silva, a madeirense que recusou os nãos quando decidiu trabalhar “vinhos impossíveis”

Estar na dependência de terceiros no que respeita à uva e à adega não lhe causa ansiedade?

Construir uma adega não está fora de questão, mas será num futuro bem longo. Há que ponderar custos. Considerando a Madeira, uma região pequena, onde há 500 hectares para todos os produtores, o metro quadrado apto a vinha é mais caro do que no continente. A área que referi tem dois mil viticultores. Ou seja, o território é muito parecido com Borgonha, com muita vinha parcelada. Depois cada parcela é o ganha-pão do produtor, algo que recebeu da família. Como percebe, é muito difícil comprar vinha. Quase todos os viticultores da Madeira têm quantidades grandes de vinha própria. Logo, há este nosso quase dever de comprar ao viticultor para apoiar a economia local.

No nosso caso pagamos mais pela uva do que o corrente. É também uma forma de selarmos o nosso compromisso com as pessoas.

Quase todos os produtores da Madeira têm quantidades grandes de vinha própria. Logo, há este nosso quase dever de comprar ao viticultor para apoiar a economia local.

Onde outros viram um obstáculo, a Diana viu uma oportunidade. É também uma questão de mudança na forma como se olham para velhas soluções, certo?

A expressão popular diz-nos que “santos da casa não fazem milagres”. No meu caso, o facto de ter trabalhado fora, com a exportação, fez-me olhar de outra forma para as oportunidades. Olhei de fora para dentro. Quem está na Madeira, olha para a região com os seus vinhos clássicos, que para mim são únicos, com séculos, e acha que, como já têm uma preciosidade, não precisa de introduzir novos fatores. Há, então, este pensamento de não olhar para a Negra Tinta com potencial para vinho de mesa. Não é que não se tivesse pensado. Houve alguns ensaios nesse sentido. Até há um produtor, a Atlantis, que faz um Tinta Negra Rosé. Não apareceu ninguém é com uma trilogia como a que estamos a produzir. No panorama regional, a Tinta Negra tem de ser a casta do futuro. Uma casta com mais de 80% de cultivo numa ilha, tem mesmo de ser de futuro. Caso contrário, alguém fez algo de muito errado.

Depois de tantas dificuldades como se sentiu a Diana quando lançou o seu trio de vinhos tranquilos Ilha?

Para mim foi muito emocionante. Os vinhos quando estavam prontos para serem lançados estavam exatamente como eu os queria. Eram muito singulares. Todos os que os provaram, diziam-me que nunca tinham provado nada assim na vida. Era exatamente o que eu queria com este projeto. As pessoas sentirem novas sensações, que há vários tipos de vinho no Mundo.

Diana Silva, a madeirense que recusou os nãos quando decidiu trabalhar “vinhos impossíveis”
Diana Silva, a madeirense que recusou os nãos quando decidiu trabalhar “vinhos impossíveis”

Onde está a receber mais reconhecimento, na Madeira ou no continente?

Na Madeira ainda tenho um caminho enorme a percorrer. Sempre estive na área das vendas e penso que ainda sou vista dessa forma. No continente e até em mercados externos onde estamos como, por exemplo, nos Estados Unidos, há esse reconhecimento. Na minha ilha, como referi, acham que sou uma excelente marketeer, uma fabulosa comercial, que consegue vender tudo, porque criei uma boa imagem. Acham que os vinhos tranquilos bons são os das regiões mais conceituadas, diga-se Alentejo e Douro. Vinhos muito mais carregados de álcool, cheios de gordura. O nosso vinho nunca terá mais de 12 % de teor alcoólico. Não faz sentido para a região e eu não quero. As pessoas assumem, em Portugal, que um vinho de cor mais aberta, como é a do Pinot, é deslavado. Os portugueses gostam muito de açúcar, eu não aprecio tanto assim. Costuma-se dizer que “o que é doce nunca amargou”, as pessoas gostam dos vinhos com esse perfil. Mas um vinho não tem de o ser.

As pessoas assumem, em Portugal, que um vinho de cor mais aberta, como é a do Pinot, é deslavado. Os portugueses gostam muito de açúcar.

São três vinhos com identidades muito diferentes?

O Ilha Branco é o primeiro de uva tinta da Madeira. O Tinto, por ser o mais representativo da casta, tem uma maceração pelicular. Este ano conseguimos melhores uvas, com vinhas mais velhas do que no ano anterior, conferindo aos vinhos melhor fruta, mas mantendo o lado da acidez, mineralidade e frescura, típica dos vinhos da Madeira. São vinhos muito gastronómicos, inclusivamente o Rosé. O Branco acompanha um ceviche, lapas, ostras. O Tinto pede que se coma um peixe assado no forno, mesmo as carnes gordas, dada a complexidade do vinho.

Entretanto, já este 2019, lança um Verdelho. Ao referir-se a este vinho sublinha a sua pureza. Porquê?

Porque é um Verdelho sem intervenção tecnológica, sem barrica, aduelas e tem a doçura apenas da boa fruta da casta. Quando provo outros verdelhos, e provo muitos, entendo que é muito puro o nosso, com uma acidez, mineralidade, intensidade absolutamente incríveis e únicas. Uma vez provando não se esquece. Este Verdelho vai para a prensa e depois para o inox, mais nada. Falo de pureza porque há muitos Verdelhos no país, é uma casta muito falada de Norte a Sul do país. Se comparar um Verdelho do continente, não o posso comparar ao da Madeira. Se provar os dos Açores são fantásticos e parecidos com os da Madeira e que vale a pena as pessoas provarem.

Também lançou o e o Ilha E.

Sim, “E” de experiência, para mim, enquanto produtora e, também como experiência na adega. Peguei em 1000 litros do ano passado, da primeira vindima, e decidi estagiá-los em aduelas de carvalho francês. Levou-me a pensar se esta casta seria boa para adquirir barricas novas. Na aduela nova a passagem da madeira para o vinho é mais lenta. Agora, temos já para este ano, uma barrica de carvalho francês, uma tosta fina, da Floresta Negra, para um vinho que vamos lançar. Já se encontra em barrica desde o início do ano. Teremos de ver até que ponto a casta se aguenta. Aqui volto a frisar a minha paixão pelos Pinot. Grande parte dos vinhos produzidos a partir desta casta tem madeira. O Ilha E é uma experiência de 1064 garrafas que não se vai faltar a repetir.

Já deu a provar os seus vinhos a algum dos produtores da Borgonha?

Sim e houve uma conversa muito interessante. Quem o provou considerou que o nosso vinho tem uma parte vulcânica, com mineralidade que os de Borgonha não têm. Mas, tanto no nariz e na entrada de boca, a reação foi de que têm alguma coisa dali.