Andar pelo país à procura de novos produtos e saber mais sobre o que leva para a mesa dos seus restaurantes não é uma tarefa nova para o chef Vítor Adão. Aliás, acredita mesmo que na profissão de chef este acaba por ser um trabalho fundamental.

"Para mim, não faz sentido de outra forma. Enquanto chefs de cozinha, temos a responsabilidade de saber de onde vem o produto que usamos, quem o produz, em que condições, e fazer a nossa parte nesse processo", explica Vítor Adão em entrevista ao Lifestyle ao Minuto.

Na passada segunda-feira, 6 de novembro, estreou-se no canal Casa e Cozinha o programa 'Raízes'. O formato acompanha o chef ao longo de várias cidades e regiões do país à procura de tradições e muitos pratos típicos.

"Espero que as pessoas se reencontrem aqui. Que se 'reapaixonem' pelo nosso país, pelas nossas pessoas, pelas nossas tradições", continua. Vítor Adão falou ainda de como foi gravar os episódios e também dos desafios que a gastronomia nacional enfrenta.

O 'Raízes' acaba por ser um bocadinho o reflexo daquilo que é, de facto, o meu dia a dia

Como foi aceitar o desafio de fazer este programa?

Foi muito simples, na verdade. Este programa tem tudo a ver comigo, com a minha forma de estar e de ser, como alguém que valoriza muito as raízes, as minhas, enquanto transmontano, e as que partilhamos enquanto país. Portanto, o 'Raízes' acaba por ser um bocadinho o reflexo daquilo que é, de facto, o meu dia a dia: as visitas aos produtores, a busca por novos sabores para a minha cozinha no Plano e no Planto, os meus restaurantes em Lisboa, a procura de artesãos capazes de traduzir em peças aquilo que quero transmitir nos meus pratos. Basicamente, foi pegar numa equipa e registar o processo.

O chef Vítor Adão percorreu o país e cozinhou vários pratos © Casa e Cozinha

Como decorreu o processo de gravações? O que foi mais complicado?

Por regra, os inícios são o mais difícil e o 'Raízes' não foi exceção. Conheço bem esta equipa, já tínhamos feito algumas coisas juntos, como o documentário 'Raízes', que estreou em junho de 2022 no Casa e Cozinha e que foi, na verdade, a génese desta série. Mas 10 episódios têm uma dimensão completamente diferente. A logística, o tempo, houve todo um processo de adaptação que foi, a meu ver, a parte mais complicada. Mas assim que nos adaptámos, tornou-se muito simples. Podíamos partir para mais 10 episódios amanhã [risos].

Houve alguma história engraçada que queira partilhar?

Houve muitas, acho que é difícil destacar uma que me marcasse mais. Mas mais do que engraçado, se calhar o mais surpreendente foi a forma como as pessoas nos foram recebendo, por exemplo as cozinheiras, na Guarda, todas bem vestidas, de salto alto e maquilhagem. Foi maravilhoso.

O que é que as pessoas podem esperar ao longo dos episódios, o que vão encontrar e descobrir?

Não existe uma regra de três simples para este programa. Olhámos para cada destino de uma forma individual e tentámos dar espaço ao que nos pareceu verdadeiramente especial, sabendo que é sempre um trabalho ingrato, porque o tempo é muito curto e há sempre muita coisa e muita gente que também merecia destaque. Acima de tudo, espero que as pessoas se reencontrem aqui. Que se reapaixonem pelo nosso país, pelas nossas pessoas, pelas nossas tradições. E que terminem cada episódio com muita vontade de se fazer à estrada e ir conhecer melhor cada uma das localizações onde gravámos.

Vamos ver receitas ou é um programa que irá mostrar mais do que isso?

Eu cozinho, mas não existe aquela abordagem de listar os ingredientes, dar o passo-a-passo. Não é esse o objetivo do programa. O que fiz foi pegar nos produtos típicos de cada destino e cozinhá-los da minha forma, com uma abordagem mais contemporânea e menos tradicional, rodeado das pessoas que escolhemos para participar em cada destino.

O próprio chef teve oportunidade de conhecer coisas novas?

Sim, claro! Fiz uma tesoura de tosquiar pela primeira vez, por exemplo, o que, tendo sido pastor muitos anos, foi um momento muito especial para mim. Sobretudo sabendo que o senhor Mateus Miragaia é o último artesão a fazer tesouras na região e que muito provavelmente, depois de ele morrer, esta é uma tradição que vai morrer com ele, pelo menos naquela zona.

Ainda não conhecia algumas das zonas visitadas?

Tenho a sorte de conhecer muito bem o nosso país e já conhecia todos os destinos, mas muitos não tão a fundo como fiquei a conhecer depois das gravações, claro.

Que prato mais gostou de cozinhar e conhecer?

Talvez a sopa de alhada, em Campo Maior, uma sopa com peixe do rio que é engrossada com farinha. E a Sobranfusa, uma espécie de migas, em Serpa.

Este tipo de viagens é importante para o trabalho de um chef?

Acho que é fundamental. Para mim, não faz sentido de outra forma. Enquanto chefs de cozinha, temos a responsabilidade de saber de onde vem o produto que usamos, quem o produz, em que condições, e fazer a nossa parte nesse processo. Ajudar os produtores com ‘feedback’, partilhar experiências, e aprender com eles, também. A nossa cozinha só tem a ganhar com isso.

É uma viagem que aconselha todas as pessoas a fazer?

Sem dúvida.

Porquê cozinhar com o fogo ao longo dos programas? O que ganham as receitas?

No Plano, o meu primeiro restaurante, de cozinha de autor, eu só cozinho com fogo. Seja ao ar livre, no jardim, ou no interior, na cozinha, onde também cozinhamos sobre as chamas. Como transmontano, foi assim que cresci, a ver cozinhar nas lareiras, em potes de ferro. São as minhas raízes e não fazia sentido, para mim, fazê-lo de outra forma num restaurante que pensei para ser o meu reflexo. A mesma coisa no programa: se estamos a falar sobre raízes, havia como não cozinhar com fogo? É o método de confecção mais antigo, é de onde vimos. E sim, cozinhar em fogo muda muita coisa. Muda logo o ambiente, para começar, é como um convite à reunião, à partilha. Basta ver que se acende o fogo e toda a gente se junta, instintivamente, à volta. E a comida tem outro sabor, claro. Eu só cozinho com lenha, não uso carvão. E isso dá aos pratos um sabor muito especial que não se consegue de nenhuma outra forma.

Trouxe comigo muita coisa, como em todas as viagens que faço

O que é que o chef ganhou com esta experiência?

Ganhei muito mais respeito pelo território e um conhecimento mais profundo sobre cada região. Desde o produto, o produtor, os métodos de confeção, o clima, as pessoas, as histórias por detrás dos pratos e dos produtos. Deu-me muito gozo conhecer isto.

Como é que os seus projetos ganharam com este desafio? Teve oportunidade de trazer novas criações aos menus, por exemplo?

Esta componente de descoberta, de viagem, fez sempre parte da minha forma de pensar a cozinha. E portanto, sim, trouxe comigo muita coisa tanto para o Plano como para o Planto, os meus restaurantes, como em todas as viagens que faço.

O chef cozinhou sempre com lenha © Casa e Cozinha

Ficou com vontade de ir conhecer mais localidades, tradições e pratos do país?

Haverá sempre espaço e tempo na minha agenda para sair, estar com os produtores, com os artesãos, com outros cozinheiros, e partilharmos experiências, boa comida e boa bebida.

Das localidades que visitou, onde não se importava de abrir um restaurante? E qual seria o conceito?

É injusto responder a esta pergunta porque se abrisse um restaurante fora de Lisboa seria num destino por onde não passámos, que é Chaves. É a minha casa, é a minha cidade, as minhas raízes. Um dia…

Acha que a comida portuguesa está a perder força no país, ou pelo menos nas grandes cidades, como Lisboa e Porto?

Pelo contrário. Acho que as novas gerações estão muito sensibilizadas para a importância da tradição, das raízes, da origem, do produto, que aquela coisa de que o que vem de fora é que é bom está cada vez mais ultrapassada e assistimos ao renascimento da tradição, com uma abordagem contemporânea. Seja no 'fine dining' onde não faltam grandes exemplos ou nas 'tascas modernas'. O facto de vermos muitos restaurantes internacionais não tem de entrar em conflito com isso. Uma coisa não invalida a outra. Eu sou um grande defensor das nossas raízes e adoro boa cozinha japonesa, italiana ou francesa. O que me importa, mais que a quantidade de restaurantes de cozinha portuguesa que abrem, é a qualidade. E acho que temos visto muita coisa boa a abrir.

Que soluções acredita que se poderiam implementar para que este legado tradicional e cultural da cozinha não se perca?

Acho que aqui é muito importante o papel das escolas de hotelaria e turismo, na formação das novas gerações, e de entidades como o Turismo de Portugal, na promoção da nossa gastronomia cá dentro e lá fora. Às vezes é tão simples como dar a conhecer. Porque o que temos é realmente muito bom. Quando as pessoas descobrem a nossa riqueza gastronómica, apaixonam-se. Espero que o 'Raízes' também ajude um bocadinho nessa missão.