Há quem lhe goste de situar a origem no século XIX e na inventiva das tropas francesas no decurso da Guerra Peninsular que graçou no nosso território. Nesta versão, a bisavó da nossa Francesinha seria uma sanduíche encorpada, engendrada com os recursos alimentares encontras em campo de batalha.

Uma outra versão a propósito das origens da Francesinha, atribui ao minhoto Daniel David Silva a invenção da especialidade nortenha. Uma narrativa próxima no tempo, remontando aos anos de 1950 e ao restaurante Regaleira. Francesinha porque para David Silva "a mulher mais picante" era a gaulesa. Também de além Pirenéus a inspiração para o prato, com o congénere croque-monsieur, uma sanduíche quente, a levar a melhor na paternidade do prato luso.

Apadrinhamentos à parte, o que aqui trazemos é uma Francesinha assinada por um dos chefes portugueses que lhe tem dedicado cuidados. Miguel Mesquita, viajante nato, cultor de uma cozinha do mundo e apaixonado por fotografia, é também formador na Academia Time Out, instalada no Mercado da Ribeira, em Lisboa. É com Miguel que encetamos esta viagem ao mundo da Francesinha, mais concretamente à sua confeção. “Uma proposta que é a minha visão deste prato nortenho”, adverte Miguel, salvaguardando polémicas e quezílias associadas a esta comida territorial.

Na base, o molho, naturalmente

Um dos princípios deste molho para Francesinha é o de potenciar sabor sem com isso comprometer uma base que se quer tão natural quanto possível. Ou seja, sem corantes nem conservantes, o que bane caldos industriais ou potenciadores de sabor como polpa de tomate em lata ou “néctares de pêssego, como consta que já foi usado", sublinha o formador.

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A base para um caldo de bom sabor, cebola, aipo e cenoura. O tomate entrará depois, para dar consistência ao molho.

Desta forma, vamos produzir dois caldos caseiros, um de camarão e outro de carne. Vamos, aqui, optar pela versão curta, com lume alto, mas, querendo extrair-se bom aos ingredientes, que se opte por lhes oferecer lume brando e alguma paciência. Uma a duas horas a fervilhar mansamente e obtemos dois caldos de grande apuro.

Comecemos. À mão, dois tachos altos (vamos triturar, não quererá salpicos) e uma frigideira de fundo aderente.

Como ingredientes, uma cebola de proporções generosas (descascamo-la e picamo-la), uma cenoura média (vamos descascá-la e também picá-la), um talo de aipo, que fatiamos, desmerecendo o extremo esbranquiçado.

“Temos aqui a base clássica de um caldo francês, o Mirepoix”, refere Miguel. O que fazemos com este trio de vegetais? Levamos metade da dose (a outra metade vai enriquecer o caldo de carne) a frigir numa base de azeite (três colheres de sopa) que já se encontra a aquecer num dos tachos. Iniciámos o nosso Caldo de Camarão.

Entretanto, foram descascados seis camarões crus. As cascas e cabeças, não as vamos deitar fora. Antes dar-lhes bom uso. “Depois de acrescentarmos ao azeite os vegetais, adicionamos-lhes as casquinhas dos camarões e uma folha de louro que iremos esmagar dentro do tacho”, enquadra Miguel Mesquita. Uma saborosa e aromática lufada de vapor liberta-se do tacho, enquanto lhe entregamos uma chávena de água quente. Vamos por bom caminho. Deixemos a química do fogo operar.

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Num tacho fundo descansam os ingredientes para o caldo de camarão.

Não perdemos tempo. Há que produzir o outro protagonista para este duo, o caldo de carne. “Vamos, para o efeito, utilizar as aparas de um bife da vazia. Não se esqueçam de as pedir no talho quando adquirirem a carne. Estas aparas resultam do corte do bife e estão carregadinhas de potencial, com alguns pedaços de gordura que irão acrescentar sabor ao vosso caldo”, sublinha o chefe de cozinha, também formador.

Na frigideira, sem uso de gorduras, juntamos as aparas e a metade de vegetais que reservámos. Mais uma folha de louro, uma colher de chá rasa de tomilho em pó e deixamos tostar (não é queimar), conferindo ao cozinhado um caramelizado. Posto isto, vamos introduzir esta base de caldo de carne no ´tachinho` que já aguarda ao lume. Juntamos-lhe uma chávena de água fervente e, tal como o congénere caldo de camarão, deixamos que o fogo opere o milagre.

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Numa frigideira os ingredientes para o caldo de carne. As aparas do bife da vazia farão toda a diferença no sabor.

Façamos o exercício de imaginação e, neste pulo entre dois parágrafos, imaginemos que volveu uma hora. Os dois caldos fumegantes, aromáticos, completos de sabor, estão prontos para se unirem. Há, contudo, que lhes cuidar da textura.

O caldo de camarão, vamos reduzi-lo a um creme, recorrendo à varinha-mágica ou ao robô de cozinha. Posto isto, usando um coador de rede fina, coamos o caldo para uma tigela e reservamos.

Quanto ao caldo de carne, entregamo-lo a destino idêntico, coando-o para uma tigela.

Assim os temos aos dois caldos, terra e mar, em duas tigelas. A separação tem os segundos contados. Vamos juntar a dupla num tacho que vai a lume médio.

Um molho que vai, agora, receber alguns dos ingredientes que lhe definem o caráter, meio copo alto de cerveja branca, um cálice de Vinho do Porto. Deixamos a fervilhar alguns minutos.

Temos, agora, a explicação para a presença de dois tomates maduros sobre a bancada de cozinha. “Queremos dar alguma consistência ao molho e, para isso, recorremos ao tomate. Atenção, o molho da Francesinha não é grosso. A ideia é que escorra sobre o preparo e o aqueça”, explica Miguel.

“Vamos extrair as sementes aos tomates. Não as queremos, pois conferem acidez. Ao as retirarmos, obstamos a que tenhamos de juntar açúcar”, acrescenta o formador na Academia Time Out, enquanto supervisiona a entrada dos tomates em cena. Estes apenas vão cozer cinco minutos. Posto este tempo, são triturados tal como feito para o caldo de camarão.

Etapa final neste nosso molho de Francesinha com assinatura de Miguel Mesquita, “juntamos, finalmente, uma colher de sopa de Mostarda de Dijon e uma pitada de sal. Retenham este aspeto, o sal só entra no final da confeção”. Não se desmereça uma dose generosa de piripiri e, para acentuar o sabor a cerveja, mais meio copo da dita. “Não nos podemos esquecer que a fervura vai favorecer a redução do molho e a evaporação do álcool nele contido”, reforça o chefe de cozinha.

Mais dez minutos de cozedura e o molho estará pronto.

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Grelhar as carnes.

Uma questão de carnes

Não nos serve o molho se não lhe dermos bom uso sobre a nossa Francesinha. Há que pensar nas carnes e, neste âmbito, Miguel tem a sua receita. Dela não faz segredo. “Vamos usar uma salsicha fresca a que tiramos a pele, recorrendo à carne para lhe moldar a forma de um hambúrguer. Posto isto, levamos a salsicha a grelhar numa frigideira [à qual não acrescentamos gordura], juntamente com uma linguíça cortada no sentido longitudinal e um bife da vazia, salpicado com umas pedrinhas de sal. Deixamos grelhar até ficar com um leve tostado”.

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Já na montagem, a importância de não esquecer o fiambre, o paio e o bife. Isto, sobre pão de forma torrado ou tostado na frigideira.

Estão as carnes grelhadas, há que dar-lhes uso. Num prato de bordo alto, assentamos uma fatia de pão de forma (“não vale a pena inventar outros pães” torrado. Descansamos sobre o pão uma fatia de paio fumado, uma outra de fiambre. Acomodamos sobre estas carnes frias, o nosso hambúrguer de salsicha, as linguiças e fechamos o elenco com o bife. Para rematar, a segunda fatia de pão também torrado.

Não pode faltar o queijo

É a Francesinha prato de labor e paciência. Há que lhe dar mimo no que toca ao sabor. Para encimarmos o petisco nortenho, cinco fatias de queijo flamengo, “cremoso de preferência” e que montamos em jeito de embrulho. A coroar todos estes estratos alimentares, quatro camarõezinhos que cozemos no calor do caldo que esteve ao lume.

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Um bom embrulho de queijo flamengo. Antes de verter o molho.

“A Francesinha não vai ao forno, coze com o calor do molho que iremos verte-lhe por cima”, alerta Miguel Mesquita. Sim, é chegado o momento de coroar a nossa imperatriz dos comeres nortenhos. O molho quente que laboriosamente conheceu o fogo vai, agora, verter em cascata aromática sobre o queijo. Funde-o ligeiramente, imiscui-se no pão, ensopa-o gulosamente e, finalmente, forma um pequeno lago de tom laranja em torno da Francesinha.

Há que lhe tomar o gosto, a Francesinha é para explorar de faca e garfo ainda a quente.

Fomos para a cozinha aprender os segredos da Francesinha. Não escondemos nada