Foi a propósito do Wine & Music Valley, festival que aconteceu no Douro, em setembro deste ano, que o SAPO Lifestyle teve oportunidade de entrevistar o chefe de cozinha Rui Paula. O homem que, nascido no Porto, também tomou como suas, de alma e afeição, as terras de Trás-os-Montes, anda num frenesim. Não lhe bastando a responsabilidade de orientar os seus três restaurantes, DOP, DOC e Casa de Chá da Boa Nova – agora com duas estrelas Michelin.
Mesmo com tempo contado e com um Rui Paula em ritmo de conversa acelerado, há tempo para se falar de bens preciosos, como a memória, o silêncio e as agruras, também estas na contabilidade entre o deve e haver do sucesso. O homem que adora a ribalta, a convivialidade, preza o silêncio. Rui Paula também sabe pesar a responsabilidade de ser um representante de uma cultura gastronómica secular. Quanto à estrela Michelin, “há agora que assegurar a segunda”, responde-nos pragmático, o profissional que sempre trabalhou para si e que tem bem consciente o quanto vale a presença de um chefe de cozinha num restaurante.
Dentro de poucos dias vamos vê-lo subir a um palco perante milhares de pessoas no festival duriense Wine & Music Valley. O Chefe Rui Paula quase que joga em casa, mas não impede alguma ansiedade. Ou estou enganado?
Sabe, estou habituado a palcos [risos]. Vou ter de cozinhar perante alguns milhares de pessoas, mas faz parte de uma certa presença pública que também temos de ter. Afinal de contas, vou estar a fazer aquilo de que mais gosto. Cozinho, confraternizo e interajo com o público.
Falando de palcos, ocorre-me perguntar-lhe: O chefe de cozinha é um artista?
Tem de ser, mas também é um executante, um tecnicista, um apaixonado, um fazedor e concretizador de emoções. É tanta coisa, que não caberia no tempo de uma conversa.
A um bom cozinheiro não pode faltar memória…
Claro. Muitas memórias. A memória de alguma coisa que alguém lhe deu a provar, as da sua família, das suas viagens, das leituras, dos restaurantes onde comeu, quer no país, quer no estrangeiro. Estas memórias todas juntas são a principal fonte de inspiração para um cozinheiro. Eu, por exemplo, inspiro-me em coisas que me deram a provar, quer no passado, quer presentemente. Enfim, há tanta coisa. Olhe, por exemplo, uma paisagem pode inspirar-me.
Pegando na memória, nós somos um país com memória?
Somos um país com cultura e com uma história longa. Ora, se carregamos muita história connosco, também temos de trazer essa memória. Hoje na Boa Nova [Casa de Chá da Boa Nova], faço pratos inspirados nas viagens que os portugueses fizeram no período dos Descobrimentos. Dou-lhe o nome “Por mares nunca de antes navegados”. Repare, influenciámos outras latitudes culinárias, do Japão, ao Brasil. Tanto.
Eu, por exemplo, inspiro-me em coisas que me deram a provar, quer no passado, quer presentemente. Enfim, há tanta coisa. Olhe, por exemplo, uma paisagem pode inspirar-me.
Sim, mas quando falo de memória, refiro-me em particular ao risco da nossa perda de memória.
Uns salvaguardam melhor, outros pior [risos]. Agora, acredito, muito honestamente, que a gastronomia está muito mais evoluída do que estava. Julgo que isso é prova de que não estamos a fazer as coisas muito mal. Repare, tínhamos restaurantes que apresentavam uma comida saborosa, mas não a apresentavam bem, em bandejas de inox, comida muito carregada de arroz e batatas. Hoje, temos uma apresentação cuidada. Alguns chefes recuperam receitas antigas e trabalham-nas bem. A comida é para se comer, é algo básico. Agora, temos de comer com sabor, sentir emoção naquilo que levamos à boca. Não pode ser só bonito.
Os chefes de cozinha têm um papel em tudo isso, na salvaguarda da nossa identidade. É fácil fazer esse trabalho?
Estamos a fazer um bom trabalho, de uma maneira geral. Mas a sua pergunta é pertinente, porque também vejo algumas aberrações. Também acho que cabe aos jornalistas alertarem para algumas situações menos corretas.
Chefe Rui Paula, tem presente qual foi o momento em que pensou, é isto que quero fazer, cozinhar?
Sim, precisamente. Há mais de 20 anos, abri o restaurante Cepa Torta, em Alijó, em Trás-os-Montes, região onde tenho raízes familiares. Percebi que sou um bom comunicador, que tenho uma simpatia natural. Na época fazia a cozinha tradicional que tinha aprendido com a família. Cozinha que não arriscava, com o cabrito, os milhos, com os ingredientes que ali estavam, no território que habitava.
Os pratos que estavam ligados à minha infância, à minha mãe e à minha avó. Era uma cozinha muito emocional. No Cepa Torta, estava na cozinha com uma funcionária da minha avó, éramos mais cinco pessoas. A partir de certa altura fiz-me a pergunta: “Queres mesmo isto?”. E a resposta foi, “Quero”. Então fui aprender, frequentei estágios com chefes de cozinha. Sabe, um dia, antes deste meu percurso de aprendizagem, alguém me pediu uma terrina de foie gras. Não a sabia fazer. Tinha mesmo de aprender.
E hoje aqui o temos, com três casas de nomeadas e com uma Estrela Michelin, na sua Casa de Chá. O que sentiu no dia em que recebeu a primeira estrela Michelin?
Como sabe a estrela Michelin está associada a um guia que nos transmite esse prémio. Quanto mais importante o guia, mais orgulhosos ficamos. Eu e, naturalmente, a minha equipa. Agora temos uma [estrela], mas trabalhamos para a segunda, que é a melhor forma de assegurar a primeira [risos]. Quem não fica orgulhoso por ver o seu trabalho reconhecido?
A partir de certa altura fiz-me a pergunta: “Queres mesmo isto?”. E a resposta foi, “Quero”. Então fui aprender, frequentei estágios com chefes de cozinha.
Claro. Mas há um momento em que se sente que estamos a caminho desse reconhecimento…
Comecei este trabalho desde o dia em que abri o DOC [restaurante instalado em Folgosa, no Douro]. Ainda há quem me diga que este restaurante merece uma estrela Michelin. Mas isso é uma opinião, não vou comentar. Repare, eu não posso orientar o meu trabalho por parâmetros que não sei quais são [os da estrela Michelin]. Sabia, sim, que precisava de fazer negócio. O meu percurso foi um pouco diferente do dos outros, pois trabalho para mim desde que entrei para a restauração. Não trabalhei para ninguém. Fui formando equipas e quando apareceu a estrela para o Boa Nova, pensei, há que saber ir por este caminho.
É um homem com um discurso que não dispensa a ligação à terra, aos seus produtos e gentes. Vivemos um tempo em que se tornou palavra de ordem apregoar ementas baseadas em produtos locais, sazonalidade. Há produto em Portugal para tanta referência ao local e sazonal?
Não há, porque o produtor ainda não está sensibilizado para isso, infelizmente. Para termos a fileira organizada, o produtor deveria estar virado para a gastronomia. Batatas e cenouras grandes há, agora outros alimentos mais delicados, biológicos e diferentes não encontramos. Não há gastronomia bem feita se o produtor não estiver do nosso lado. Dou-lhe um exemplo. Imagine que no DOC gasto só lombo de uma raça bovina autóctone. Não tenho de ficar com a cabeça e as pernas. Logo, o fornecedor deve estar talhado para isso. Vende-me o lombo e há de arranjar clientes para outras peças, por exemplo, para uma cozinha de tacho. Dei este exemplo, mas podíamos, também, ir pelas frutas, pelo peixe. Enfim, há quem já o faça bem.
O que mais o irrita numa cozinha?
Quando há muito barulho.
Acha que a criação culinária, tal como outras artes criativas precisa de silêncio e paz?
Quando estamos numa cozinha em silêncio as coisas correm muito melhor. Quando está tudo confuso, os clientes chegam todos ao mesmo tempo, toda a equipa fala, pode tornar-se complicado.
E num restaurante o que mais o irrita?
Um mau serviço e a má comida. Quando vou a um restaurante é para comer. Quantas vezes quem lá está fala e não sabe explicar nada, nem o conceito do restaurante. Agora, se a minha disposição for para ir a um restaurante para comer uma sanduíche, sei aquilo que me espera. É uma questão de gestão das expetativas.
O Chefe Rui Paula multiplica a sua atividade por vários restaurantes, televisão, consultoria. É difícil ter o silêncio que tanto preza.
[Risos] O meu presente está, de facto, nos restaurantes DOP, DOC e na Casa de Chá. Deixei as consultorias. Na televisão, como sabe, tenho participações no “MasterChef Portugal”. Neste momento estou numa fase de foco. Há muito cliente, os restaurantes têm muito movimento. Os funcionários têm de estar muito atentos. No panorama atual, facilmente nos trocam. Logo, a presença do chefe de cozinha é muito importante, vale muito dinheiro.
Entrevista originalmente publicada em setembro de 2019.
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