Se há empreendimento a que o ser humano sempre se dedicou com bastante sucesso, embora nem sempre em consonância com as boas intenções, é a permuta. Desde os primórdios que permutamos. Trocamos geografias e latitudes numa inquietação global por novos lugares e gentes. Um frenesim que tem na componente alimentar um dos melhores exemplos. Séculos de deambulações para trazer de lá para cá e vice-versa. Do cacau ao açúcar, do arroz ao feijão, do chá ao café, o rol é maior do que qualquer texto que aqui possamos verter.
Pois bem, esta é uma breve narrativa de permuta. Primeiro de como o arroz japonês se intrometeu na cozinha havaiana, de como esta tornou os seus comeres nativos em cozinha exportável e, finalmente, já na lusa Lisboa, a estória do chefe de cozinha que não trocando a sua afeição por cortes de carne, lhes acrescenta deste abril de 2019, os cortes perfeitos de peixe, inspirando-se numa prática de mesa com berço a mais de 12 mil quilómetros, nas águas quentes do Pacífico tropical.
Começando pelo corte. Tem nome. Chama-se poke ou, para ser justo com a matriz da língua de onde verte, poh-kay, traduzindo “cortar em pedaços pequenos”. Assim o fizeram os havaianos durante muito tempo, aproveitando os recursos oferecidos pelo arquipélago, fincado a milhares de quilómetros de grandes massas continentais. Carne, alguma, e muito peixe cru, temperado com sal, algas e nozes locais. Interessante, mas pouco exportável. O que, convenhamos, na época pouco interessaria aos locais. Um território que é, desde 1950, um dos estados dos EUA e que historicamente foi recebendo vagas de migrantes. Chineses, japoneses e portugueses. A indústria do açúcar do século XIX era aliciante. E, na bagagem de quem chegava um pouco das práticas alimentares das regiões de origem.
O poke ganhava um novo elenco de sabores. Com os nipónicos chegava o arroz gohan, o molho de sésamo, o óleo de sésamo, o gergelim. A partir dos anos de 1970 o poke deixa de ser a comida de pescador para se tornar num vicio nacional. E como tudo aquilo que vicia (o que não é obrigatoriamente algo mau), a especialidade havaiana extravasou fronteiras, apegou-se aos agrados dos norte-americanos e, dai pulou para o mundo.
Em Lisboa, o poke havaiano não é novidade. Uma realidade à qual Luís Gaspar, vencedor do concurso Chefe Cozinheiro do Ano em 2017 e que nos habituámos a ver ao comando da sua Sala de Corte, casa de boas carnes, quer acrescentar uns pozinhos. Não são mágicos, são fruto de muito trabalho, como o próprio Luís Gaspar nos há de contar, enquanto prepara uma refeição no seu mais recente projeto lisboeta, o restaurante Big Fish Poke Bar.
Antes de darmos a palavra ao mentor da casa, umas breves pinceladas a propósito da mesa. Big Fish, por referência ao maior peixe aqui servido, o atum Yellowfin, capturado nas águas dos Açores. Casa de ambiente intimista, grande vitral, simulando escamas de peixe, a recordar-nos o produto maior da casa. Sala com não mais de 28 lugares, 20 dos quais ao balcão. Este uma peça bem trabalhada em madeira, com iluminação acolhedora e vista direta sobre o centro de operações. O que, num restaurante que nos prepara taças carregadinhas de labor e de preparos alimentares, é ponto a acrescer. Gostamos de ver a preparação dos arrozes, o corte dos peixes (para além do atum, há salmão, corvina e cavala), a magia dos molhos, a excentricidade dos ingredientes.
“Quis trazer ao poke servido no nosso país, uma nova apresentação. Tirá-lo de uma imagem de cozinha de takeaway e dar-lhe notoriedade”, confidencia-nos Luís Gaspar. “O Big Fish resulta de um trabalho de pesquisa e de estudo sobre esta feição da cozinha havaiana. Para tal, fizemos uma parceria com uma casa em Miami, nos Estados Unidos. O fundador Andrew Mayer veio a Portugal e, em conjunto trabalhámos o conceito”. De sublinhar que Andrew trabalhou 15 anos com o chefe Roy Yamaguchi que há 35 anos foi o pioneiro da cozinha de fusão no Havai.
Luís Gaspar não quis, contudo, fincar exclusivamente o seu poke naquilo que recebeu de Andrew. “Estamos em Portugal, temos bom peixe e uma tradição alimentar nossa”, refere o chefe de cozinha que conta neste Big Fish como chefe residente Filipe Narciso (ex-Minibar) e com a exigência no que respeita à seleção dos ingredientes “tive algumas dificuldades no início no que toca ao acesso a produtos de primeira. O arroz é japonês e apto à cozedura que lhe é exigida, ao ponto da mesma e à temperatura a que é servido”, sublinha o nosso interlocutor.
Uma casa de assinatura com louça em cerâmica desenvolvida em exclusivo pelo Studio Neves para o serviço de mesa e com uma ementa contida (embora de diversidade gustativa) no número de referências. Nove pratos principais, “dois deles com alusões à cozinha portuguesa: o “Blue Ocean” (14,00 euros), onde não falta a nossa cavala, a muxama do Algarve (atum em salga), coexistindo, entre outros, com o arroz Yumenishiki, abacate, cebola roxa, Sweet Chili sauce e cebola crocante; e o “Tako” (17,00 euros), com o polvo, os coentros, mas também o arroz Yumenishiki, kyūri, o creme de abacate, a alga nori, a lima, Kimchi sauce e milho crocante.
De resto, diversidade e taças que nos chegam à mesa, ou ao balcão, plenas de criatividade. Mais dois exemplos: O prato homónimo ao batismo da casa, o “Big Fish” (18,00 euros), com atum Yellowfin, arroz Yumenishiki, cebola doce, cebolo, alga wakame, molho havaiano e cebola crocante; ou o “Aloha Shrimp” (16,00 euros), camarão, arroz Yumenishiki, edamame, kyūri, cebola doce, cebolo, ovo marinado em soja e masago.
Não ficam os vegetarianos pendentes de provar os acepipes deste Big Fish. Há dois pratos neste âmbito, assim como o convite a três entreténs de boca enquanto não chegam os principais. A saber, uma sopa Miso (4,00 euros), um Tuna Musubi (10,00 euros), inspirado na sanduíche rápida com o mesmo nome, típica da cozinha de rua havaiana e as vieiras braseadas com XO, um molho com muito umami. Diariamente, a equipa do Big Fish presenteia-nos com um extra. Com as aparas do peixe utilizado é preparado um petisco de abertura da refeição. “Uma forma de evitarmos o desperdício”, refere o chefe de cozinha.
Não se apoquentem os palatos mais sensíveis ao picante. “Definimos quatro níveis de picante, mas é o comensal que escolhe qual é que pretende no seu prato”, assevera Luís Gaspar.
Sim, há sobremesas. Também elas vivem dentro das ´tacinhas` neste Big Fish e com um piscar de olhos à nossa tradição doceira. Numa casa de arroz, não nos vai faltar o tão nosso arroz doce. Prepare-se, contudo, o palato. “Quisemos trazer para a mesa um prato que nos é grato, mas não destoando do caráter do restaurante. O arroz utilizado é o mesmo que fornece os restantes pratos, acrescido de leite de coco, no fundo um toque tropical”. Acresce que este arroz doce (5,00 euros) vem acasalado com manga e gelado de matchai. Ainda nas gulodices, uma homenagem ao vulcão mais persistente do Havai, o Kilauea, ativo há perto de 30 anos. Uma sobremesa “vulcânica” (6,00 euros) e perigosamente tentadora, com chocolate 70% Equador, wasabi, iogurte e sal negro do Havai.
No que toca aos bebíveis, porque também parte desta experiência com assinatura Big Fish, de sublinhar a tríplice aposta da casa, com os cocktails de autor (quatro, um deles não alcoólico), os saqués e os chás. Bebíveis entregues nas mãos de Fernão Gonçalves, um homem empenhado em provar-nos que o nipónico saqué “é muito mais do que uma bebida extremamente alcoólica que se serve ligeiramente aquecida”. Um erro. As oito referências de saqué (a copo, jarro - tokkuri - ou garrafa) que encontramos no novo restaurante lisboeta, permitem-nos uma viagem gustativa de grande amplitude e a dar prova da complexidade da produção. Como também a prova dos chás, frios e quentes, (acompanhe com eles a refeição), numa parceria com a Companhia Portugueza do Chá não são um momento menor na experiência.
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