Pratos coloridos, misturas de temperos e criatividade juntam-se aos sabores clássicos do Algarve. Há cavala, atum, ostras, ccenoura, coentros, maracujá e muitos outros aromas locais no ar. Os produtos são todos regionais, os vinhos naturais, a carta muda mais rápido do que as estações do ano e depende da criatividade da proprietária Maria Lemos. É ela que faz os menus, trabalha com os cozinheiros e vai sempre que necessário ter com os produtores.
O espaço, situado no coração de Lagos, é bonito, confortável e despretensioso, a combinar com o melhor que o Algarve tem. Aberto em 2021, o Travia é um conjunto de coincidências de uma história de vida cheia de viagens, sabores, conhecimento da região, do mundo dos negócios, do turismo e da sustentabilidade.
Maria Lemos, alfacinha de 40 anos, cresceu em Macau, filha de um jornalista e de uma professora de Filosofia, conta ao SAPO Lifestyle, para explicar que desde nova a impulsionaram “a pensar as coisas um bocadinho mais além, e sempre entendemos a gastronomia como uma parte da cultura”. Talvez por isso saiba que “em Marrocos não se usa tanto sal e usam-se mais temperos porque é um clima quente e o sal desidrata” e que “no Algarve, pela sua história, haja tanta influência dos mouros na gastronomia”.
Entre a vida pessoal e profissional, trabalhou entre Lagos e Boston, nos EUA. Com formação em Gestão, trabalho em Marketing de Software, impulsionou start-ups e esteve envolvida numa mão-cheia de projetos. Mas no meio disto “comer, beber e viajar” era o que mais gostava de fazer. Sempre “com bichinhos carpinteiros”, abriu uma empresa de turismo gastronómico no Algarve e a associação Teia D'Impulsos que promoveu a Rota do Petisco – que começou em Portimão com 15 a 20 restaurantes envolvidos e hoje conta com mais de 300 em toda a região.
Esta proximidade com a gastronomia algarvia mostrou-lhe a riqueza da mesma, muito além do peixe grelhado e das amêijoas à Bulhão Pato, de que é muito fã, mas que não serve no Travia. “Há casas muito boas no Algarve que servem este tipo de comida e fazem coisas de uma forma tradicional que nem me atrevo”. Sobretudo, queria fazer algo diferente. Recorda-se ainda do xerém, do marisco, do lingueirão e da carne de porco à alentejana, que do Alentejo tem pouco. “Muita gente não sabe, mas é um prato algarvio, ali de Olhão”, desmistifica Maria Lemos.
Falar com a proprietária do Travia é ficar com água na boca, mas o mais contagiante é ainda a energia. Em 2021, “as estrelinhas alinharam-se” e encontrou para alugar o sítio onde hoje é o restaurante. O local já tinha a aura de um sítio histórico de encontros e dos cafés de outras épocas, e um proprietário que gostou da ideia de reavivar o espaço facilitou o fecho do negócio. Lee Moulton, o companheiro de Maria, natural do País de Gales, que também já vive no Algarve há vários anos, juntou-se ao desafio. “Foi uma entrada a pés juntos”, afirma.
Hoje, é melhor fazer reserva se quiser jantar no Travia. O espaço tem casa cheia desde que abriu. Os produtos de época, a carta e até o tipo de clientes vão variando conforme as estações, mas o restaurante mantém-se cheio desde o dia em que abriu. No verão, com mais turistas de passagem, a carta mantém-se por três meses. No resto do ano, muda todos os meses. “Os três cozinheiros têm uma paixão enorme por cozinhar”, conta Maria Lemos. Ela cria os pratos, testam-nos em conjunto durante uma semana e fazem a nova carta. Conta que mudar a carta é também uma forma de “não servir sempre a mesma coisa todos os dias, já que se torna muito aborrecido estar sempre a fazer os mesmos pratos”.
Das ostras à cenoura: a frescura e a simplicidade dos sabores algarvios
Quem ali passa para comer ostras (12,5€/4 uni.), saiba que elas podem vir temperadas com limão, com puré de maçã verde, vinagrete de nêspera ou com maracujá, isto vai depender da carta do mês. Há pratos completamente diferentes, com os sabores tradicionais, mas com um toque criativo. Sejam as pequenas tapas como o pavé de batata, chutney verde e manga do Algarve (3,5€), o pani puri de atum (3,5€), o frango frito, mel e medronho (4,5€) ou até as tapas para partilhar como os cogumelos ostra com molho de sésamo e flores (13€) e a barriga de atum braseada com torresmos (14€).
Estes petiscos convivem com outros mais titulares como a cavala fumada com piso de coentro e hortelã (4,5€) ou a cenoura com labneh e pistachio (9,5€). Estes são dois exemplos perfeitos que refletem os sabores do Travia: produtos clássicos da região, interessantes e que podem até não ser popularmente considerados nobres, mas que são apresentados com muitas novidades e combinações, renovando os sabores tradicionais.
“A cenoura é inspirada num prato que foi trazido pelos muçulmanos, usamos os cominhos, muito utilizados no norte de África, e cozinhamos a cenoura com pele. Depois servimos com labneh (uma espécie de iogurte grego), algo muito presente na cozinha do Médio Oriente, mais especificamente no Líbano”, explica Maria Lemos.
De onde vêm todas estas ideias? “Muito simplesmente do facto de eu gostar de comer, comer muito e viajar para comer”, conta entre risos, acrescentando que muitas já existem, mas que gosta deste exercício de juntar sabores e criar pratos.
Há petiscos para todos os gostos, dos mais simples, como o pão de fermentação natural ou a couve, romesco e parmesão (9€), aos mais elaborados, como pratos de carne, peixe, vegetarianos e veganos (e é sempre possível pedir adaptações).
Entre provas e sabores, Maria não dispensa os vinhos naturais. Há brancos, tintos, rosé e “orange”. Todos os vinhos são de produtores nacionais, e Maria Lemos ressalva que neste mundo dos vinhos naturais quem os produz tem um espírito mais de agricultor do que enólogo – “há um grande amor às uvas e às espécies autóctones”. A partir de 5,5€ o copo ou 23€ a garrafa, podemos provar um vinho Travia.
A grande surpresa ficou nos vinhos de curtimenta, chamados também “orange wines”. A cor explica o nome, mas na verdade tratam-se de vinhos brancos em que as uvas foram deixadas em contacto com as películas por várias semanas ou meses.
Filipa Duarte, empregada de mesa, bem conhecedora dos petiscos e vinhos do Travia, recomenda com entusiasmo o Âmbar (9,20€ o copo/48€ a garrafa), da região de Lisboa, e é de facto um vinho característico: a frescura, os aromas frutados misturam-se com leveza e corpo estruturado que vai deixando vários sabores à medida que se vai descobrindo um vinho que potencia a experiência gastronómica.
Somos um restaurante muito pequeno, mas que ainda assim contribui para a economia circular
Há muitos clientes que procuram o espaço pela diversidade e seleção dos vinhos naturais, produzidos através de vinhas biológicas. Mas os vinhos e os produtos regionais são só a ponta do iceberg da sustentabilidade que Maria Lemos quer imprimir no Travia. “Dizem-me sobre a sustentabilidade que 'isso é tudo muito bonito na teoria, mas na prática é impossível', e eu não gosto nada de ouvir isto”, conta e ao mesmo tempo recorda que o ambiente é algo importante, a sustentabilidade não se resume apenas a esse campo.
“Gosto de dizer que não somos 100% sustentáveis nem vamos ser, mas acho que o mundo não precisa de pessoas 100% sustentáveis. Precisa é que muitas sejam um pouco sustentáveis. E assim avançamos.” Maria sabe que quer causar impacto no mundo, mas não compra detergentes amigos do ambiente – adverte logo. A bom ritmo, de forma sempre transparente, afirma que “é possível fazer algo com pés e cabeça e ter em conta a sustentabilidade”.
Nem sempre foi fácil, a logística e a distribuição são os maiores desafios, principalmente porque alguns dos pequenos produtores não estavam habituados a um sistema habitual de entregas ou a trabalhar com restaurantes. “Nos primeiros meses, tinha de ir a cada uma das quintas, cheguei a estar na horta a apanhar os tomates”, recorda Maria Lemos. Acabou por ser uma aprendizagem mútua e hoje em dia há a fluidez necessária para o negócio.
Ter um restaurante dá trabalho. Um restaurante sustentável ainda mais. Rodeada por uma “equipa fantástica”, o Travia mostra em cada pequeno pormenor a ligação à região e à sustentabilidade. Os pratos são de cerâmica do Algarve, as mesas e cadeiras (bonitas e confortáveis) foram recuperadas, a grande parte dos trabalhadores reside no Algarve – “numa região turística é importante incentivar a economia local”, explica. “Sei que somos um restaurante muito pequeno, mas que ainda assim contribui para a economia circular”.
Além dos vinhos e petiscos, assim que a temporada de verão terminar, são esperados eventos culturais, provas de vinhos e até a gravação de um podcast. Com um público estrangeiro de peso, principalmente na época de verão, Maria Lemos gosta de deixar o Travia de portas abertas para a comunidade e região.
O SAPO Lifestyle esteve no Travia a convite do restaurante.
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