Chama-se T Love T e pretende assumir-se como muito mais do que uma marca de lingerie criada para a comunidade trans. Giovanna Tavares é a designer responsável por esta linha de roupa interior, inteiramente produzida em Portugal, e que foi apresentada no passado sábado durante a 60ª edição da ModaLisboa. Mas ao contrário dos desfiles tradicionais, este lançamento passou completamente despercebido aos olhos dos fãs de moda que andaram pela Lisboa Social Mitra, em Marvila. Com o mote The UNnoticed Fashion Show, as peças que compõem esta coleção foram usadas por modelos trans que desfilaram para alguns dos maiores nomes nacionais, como Nuno Baltazar, Luís Carvalho e Valentim Quaresma. O SAPO Lifestyle entrevistou a fundadora da marca e conta-lhe tudo.
Como surgiu a ideia de criar uma marca de roupa interior para pessoas trans, a T Love T?
Surgiu de uma necessidade minha. Eu estava em casa à procura de algo, não encontrava nada e uma amiga disse-me: "Porque é que não crias uma marca?" E eu comecei a pensar nisso e a desenvolver algo para o corpo trans.
A lingerie, que é das primeiras coisas que vestimos no nosso dia a dia, é uma peça muito íntima e pessoal. Acredita que esta tem o poder de conseguir transformar não só fisicamente, mas emocionalmente uma pessoa?
Consegue muito. Quando temos algo que foi feito para nós, para o nosso corpo e que realmente se adequa às nossas necessidades é muito reconfortante. Sentimo-nos muito bem quando temos algo que foi feito a pensar em nós, coisa que nós, mulheres trans, nunca tivemos. Nunca consegui comprar uma lingerie completa para mim.
Quais as especificidades desta linha? O que é que teve em mente ao desenhá-la?
Para já qualidade e conforto. É muito triste não existir algo que foi criado a pensar em nós e para o nosso dia a dia. Para além da beleza e da sensualidade, o que me levou a criar esta coleção foi o conforto. [Sermos obrigadas a usar outro tipo de lingerie] é como se tivéssemos uns sapatos apertados que não foram feitos para o nosso corpo. É desconfortável.
Para além da beleza e da sensualidade, o que me levou a criar esta coleção foi o conforto
Estas peças são adaptáveis tendo em conta a fase de transição?
Eu acho que as mulheres cis [que se identificam com o género que lhes foi atribuído à nascença] também vão adorar usar esta linha porque as peças são ótimas. Sim, nessa fase em que ainda não fizeram a transição é importantíssimo.
Para além da fundadora da T Love T, quem é a Giovanna Tavares?
Eu tenho 40 anos, nasci no Rio Janeiro e sou trans desde os 14 anos de idade. Não foi fácil para mim, como não é fácil para nenhuma mulher trans e homem trans. Fui apedrejada à porta da minha escola com 14 anos e essa foi uma agressão bem forte interiormente, mas hoje para mim conseguir utrapassar isso tudo e fazer uma releitura de mim mesma é muito válido. Sou maquilhadora, empresária, cabeleireira e influencer também.
Uma mulher multifacetada…
Multifacetada, exatamente. Ando por todos os lados a tentar trazer essa visibilidade também e incluir-me em locais de trabalho, que não é fácil. Não vemos pessoas trans a trabalhar em locais comuns. Cheguei a Portugal em 2001, onde tenho lutado bastante para trazer essa visibilidade e tenho conseguido, com muita voz, muita luta e muitas pessoas que me apoiam.
É como se tivéssemos uns sapatos apertados que não foram feitos para o nosso corpo. É desconfortável
Por que motivo considera importante existir uma marca com um statement tão forte como este em pleno século XXI?
Para já é uma questão do ativismo, de querer reforçar isso e levantar a bandeira. Depois trazer algo que realmente visa esta comunidade e que sane a dor de um público que grita "Eu estou aqui. Eu existo". Então o objetivo é trazer algo também dentro dessa militância.
No fundo também dar visibilidade...
Sim. Aquilo que a ModaLisboa está a fazer hoje é trazer visibilidade e normatividade e isso é maravilhoso.
Falando agora da Moda Lisboa, este lançamento tem o nome de "The UNnoticed Fashion Show". Por que motivo quis que este momento passasse despercebido aos olhos do grande público em vez de apostar em algo com outra dimensão?
Porque é algo ao qual as pessoas ainda precisam de se habituar e que precisam de conhecer antes. Tudo aquilo que não é conhecido talvez cause um pouco de estranheza e nós, trans, também infelizmente não temos muita credibilidade. Então quando nos damos a conhecer de outra forma, com uma outra plataforma, as pessoas podem olhar para nós com outros olhos e dar-nos uma oportunidade. O que eu quis fazer antes de tudo é mostrar que a peça é válida, que a peça existe, dar a conhecer e no próximo ano, quem sabe, expormos isto de uma forma grandiosa. Faz tudo parte de um grande processo. Eu digo que ninguém viu mas toda a gente aplaudiu. Através de mim, poder trazer essa visibilidade e poder fazer a diferença é muito bom.
Tudo aquilo que não é conhecido talvez cause um pouco de estranheza e nós, trans, também infelizmente não temos muita credibilidade
Quantas peças compõem esta coleção?
Agora nós temos duas peças: a modeladora, que é diferente das outras porque a parte de baixo é maior de forma a que consiga ter o encaixe perfeito, e a versão mais tanga/cuequinha, que não marca os tecidos e que pode ser regulada e ser usada mais justa ou mais larga. Estas têm um sutiã que faz conjunto, por isso são uma peça completa. Existem duas cores, nude e preto, e agora vamos ter uma coleção de beachwear.
E quais os materiais que privilegiou nesta linha?
É tudo feito com rendas italianas e neoprene que é um bom tecido e isotérmico, algo que ajuda muito na questão da blindagem e do conforto que nós precisamos. Tentámos escolher algo de qualidade e o produto é totalmente português. É feito na Marinha Grande, numa fábrica de modeladores da minha amiga Dani Fernandes, e foi ela que a desenvolveu juntamente comigo.
Quanto tempo passou desde a ideia à concretização da T Love T?
Três anos. É um processo muito longo que passa pelo desenvolvimento e identidade da marca. Não existe ninguém em Portugal que tenha desenvolvido algo deste género.
Portanto é uma pioneira nesta área...
Sim. [risos] Sou a primeira a dar a largada e depois de mim vão vir muitas, espero eu.
Quais os principais desafios que sentiu durante este processo?
Achar alguma fábrica que quisesse trabalhar com uma pessoa trans. Não é fácil.
A T Love T é mais do que uma marca, é dizer 'nós estamos aqui' e que trans é amor
O preconceito ainda existe?
Existe bastante e validar isso não é fácil. Tirar a ideia do papel para uma realidade não é fácil para uma pessoa trans. Mas tudo se faz, não é? Quando corremos atrás e queremos mesmo, conseguimos.
O que significa poder marcar presença naquele que é considerado o maior certame de moda nacional em Portugal?
Este projeto não foi criado só a pensar em mim, mas num todo, portanto poder estar aqui hoje é trazer uma visibilidade maior a uma comunidade. É muito gratificante. Agradeço muito à ModaLisboa por ter aberto as suas portas e ter-me deixado fazer este trabalho incrível.
A coleção vai estar disponível em que locais e a partir de quando? E qual a gama de preços?
A coleção já está disponivel no site, nas redes sociais e também temos revendedores. A marca quer fazer com que pessoas trans consigam revender os nossos produtos e assim vamos gerando postos de trabalho. A tanga ronda os 27 euros e a modeladora os 37 euros. É um preço acessível para um material muito bom e com muita qualidade.
Qual a maior ambição para esta linha?
Que ela seja conhecida no mundo todo. A T Love T é mais do que uma marca, é dizer 'nós estamos aqui' e que trans é amor de forma a quebrar esses rótulos errados que temos em cima.
Comentários