Atualmente a viver em Nova Iorque, José Castelo Branco não põe de lado a possibilidade de um dia voltar a Portugal. Foi por cá que assumiu a sua verdadeira identidade andrógena, sem pudores, sem preconceitos. Nunca escondeu o seu lado feminino, muito pelo contrário. Gosta de se vestir de mulher, considera-se uma "senhora", e não admite que alguém ponha em causa a sua sexualidade. José é bem resolvido e recomenda-se.

Quais são as memórias que guarda de Moçambique?

Tenho as melhores memórias. Sinto uma vontade enorme de regressar um dia, quem sabe. Saí de lá muito novo no pós-revolução, com uns nove anos. Fui para Portugal e quando terminei a quarta classe o meu pai quis colocar-me no Colégio Militar. Tinha um primo que era diretor, o Coronel Brito, mas passei só um dia no colégio. Os meus pais tiveram de me levar para Moçambique de novo e depois regressei para o Colégio Valsassina. Entretanto, fui estudar para Coimbra, onde completei o 12.º ano.

Como é que surgiu a moda na vida do José?

Quem me descobriu foi a Ana Salazar. Aliás, durante uns anos dei vida a uma personagem que tinha muita graça: a Tatiana Valesca Romanov, a verdadeira descendente dos Czar. Foi uma personagem que marcou muito os finais dos anos 1980 em Portugal. Tratava-se de uma época muito divertida, era a libertação de tudo. Mais tarde conheço a minha primeira mulher, apaixonei-me, casámos e fui pai muito jovem.

Que idade tinha na altura?

Tinha 21 anos.

Foi uma coisa complicada na minha vida. Achava que ia continuar a ser uma mulher… e aí apaixono-me por uma mulher. A minha cabeça ficou completamente confusa

Como reagiu? O filho foi planeado?

Não, mas costumo dizer que nada acontece por acaso. Sou católico praticante e, na altura, foi uma coisa complicada na minha vida. Achava que ia continuar a ser uma mulher… e aí apaixono-me por uma mulher. A minha cabeça ficou completamente confusa, mas entretanto os padres nas confissões ajudaram-me a seguir um caminho e casei-me. Foi aí que comecei a ter um reverso nessa transformação. Curiosamente, quando me casei nem sequer tinha um par de meias, tive de ir comprar. Tinha um corpo tão magro e feminino que não havia roupa de homem que me servisse.

Como é que foi a relação?

Projetei a mulher que eu era na minha esposa. Transformei-a numa diva, ela era muito bonita e foi capa de uma série de revistas. Foi ainda para um programa de televisão - ‘A Arca de Noé’ - e trabalhou como assistente do início ao fim.

Quando é que chegou o divórcio?

Na altura em que o meu filho Guilherme devia ter um ano e meio. Foi uma coisa muito dolorosa, porque estava verdadeiramente apaixonado.

Sou uma pessoa extremamente bem resolvida e segura de si própria

E como lidou com a separação?

Foi o pior choque que tive na minha vida. Mas hoje, quando olho para trás, digo que não podia estar com ela depois de ter descoberto uma Betty na minha vida. Não ‘choro sobre o leite derramado’. Sou uma pessoa extremamente bem resolvida e segura de si própria.

Como conheceu a Betty?

Foi no começo da minha carreira como marchand de arte. Foi aí, que passado uns dois anos, conheci a Betty na minha galeria. Fomos amigos durante dois anos e de tal forma inseparáveis, que em 1994 decidimos casar.

A minha relação com a Betty continua a ser segura e muito profunda.

Como é que se apercebeu de que o que sentia era mais do que uma amizade?

Porque não conseguíamos viver separados um do outro. Era uma coisa quase intrínseca. Se um sofria, o outro sofria por osmose. Se um estava alegre o outro também. Eramos almas gémeas e como tal tivemos mesmo de nos unir. Começou a nascer um amor muito forte, platónico mesmo. A nossa relação continua a ser segura e muito profunda.

Qual o segredo para o seu casamento durar há tantos anos?

É acima de tudo haver amor, não existir mentira e sermos honestos connosco próprios. Só os dois seguindo pelo mesmo caminho é que pode resultar, de outra forma não dá. Claro que todos os casais discutem, a Betty muitas vezes diz-me: “Eu vou-me divorciar. E o meu motivo é o batom e a laca” [risos]. As nossas discussões são por excesso de laca, ou maquilhagem, porque eu é que a maquilho e penteio. Quando acha que está exagerado diz que parece um travesti e pede o divórcio.

Imagina a sua vida já sem a Betty?

Não consigo. É muito complicado para mim. Sempre que a vejo em baixo fico doente. Ela esteve internada há relativamente pouco tempo. Depois de ter sido operada aos olhos e de ter retirado as cataratas, apanhou um vírus que afetou os pulmões e teve de ser internada de urgência. Durante essa semana não saí do quarto do hospital. Lá estava eu, sentado no meu sofá. Quero evitar pensar nessa possibilidade. No fundo são quase 25 anos juntos. E sempre que falo disto as lágrimas vêm-me aos olhos. Sei que é natural que isso possa a acontecer, mas às vezes peço para partirmos no mesmo dia, quase como um Romeu e uma Julieta (sem suicídio, claro). Todos os anos no aniversário dela peço sempre a Deus que lhe dê mais cinco anos, mas já pedi tantos cinco anos. A Betty está bem. Continua a ser independente, claro que já tem determinadas dificuldades, mas mesmo assim continua fantástica e 'montada' em saltos.

Como é que a Betty lidou com a sua evolução andrógena?

A Betty percebeu isso desde o início. Porquê? Porque quando vestia uma personagem masculina sentia que estava ‘transvestido’. A primeira vez que pus um fato de homem senti-me a coisa mais infeliz do mundo. Não tem nada a ver com a sexualidade, tem a ver com o meu próprio eu, porque sempre me identifiquei com mulheres.

Fico feliz que as camadas mais jovens não sofram aquilo que sofri. Sou um sobrevivente

Como é que surgiu essa identificação com o feminino na sua vida?

Quando nasci o meu pai já era um homem com 60 e tal anos – o meu pai nasceu em 1905. A minha mãe era mais nova, embora tivesse mais de 40 anos. Poderia ser perfeitamente neto dos meus pais. A minha mãe tinha uma personalidade fortíssima e parecendo que não, o pai como já não tinha aquela idade para ser pai, mas mais para ser avô, não tinha muita paciência. Identifiquei-me com a minha mãe e fui criado também com duas amas. No fundo estava rodeado de mulheres e depois tinha uma super proteção da parte delas. O pai dava muito mais atenção aos sobrinhos-netos porque eram muito mais rapazolas, enquanto eu queria brincar com as bonecas, tomar chá com as minhas amigas... Não me identificava, nem sabia dar um pontapé numa bola. A partir daí fui formando a minha personalidade. Claro que fui das piores vítimas que se pode imaginar de discriminação nos colégios, porque era completamente diferente e não foi nada fácil. Por outro lado, não lamento, porque foi isso que me deu a força e segurança que tenho hoje. Fico feliz que as camadas mais jovens não sofram aquilo que sofri. Sou um sobrevivente, outra pessoa no meu lugar teria acabado no suicídio naturalmente. Era tudo contra mim, uma coisa horrível, uma luta permanente.

Apesar de ser muito exótico, mantenho sempre uma correção na vida como ser humano

Há várias pessoas que questionam o porquê de o José não fazer a transição completa de sexo. O que tem a dizer sobre isto?

Acho que acima de tudo não tenho de dar satisfações da minha vida. Quando um dia decidir ser mulher, serei mulher na totalidade. Enquanto não decidir ser mulher continuarei a ser o José que sempre fui. Sou aceite assim, dou-me com toda a gente. Isso não me faz confusão… no dia em que decidir que quero outra coisa, porque estou sempre a recriar-me, quem sabe? Mas as pessoas não têm nada a ver com isso. Eu estou muitíssimo bem, a minha sexualidade está bem resolvida. E isso não tem a ver com o meu exterior, sinto-me bem a sair como mulher à rua e a não ser apontado como um travesti, uma ‘bicha’, como qualquer coisa… passo como uma senhora, porque é a atitude que tenho. Apesar de ser muito exótico, mantenho sempre uma correção na vida como ser humano. Mas entendo que não está na altura de fazer a transição.

Essa altura chegará alguma vez?

Poderá e poderá não chegar, nunca se sabe. Não sei o dia da amanhã. Eu estou bem na minha pele, não deixo de ser a pessoa que sou.

Acha que hoje as pessoas têm uma mentalidade mais aberta em relação ao seu estilo do que quando começou a participar em reality shows?

Sim. Penso que fui o pioneiro da grande revolução que hoje se está a passar em Portugal. Ainda me disseram há pouco tempo – não vou a Portugal há dois anos e pouco – que agora há testemunhos de transsexuais. Fico muito feliz de isso estar a acontecer. Sinto que contribuí sobremaneira para haver essa liberdade de expressão. Não tem a ver com sexo. Quantos e quantos homens que conheço são casados, têm filhos e têm uma vida dupla? E que ninguém sonha o quão pervertidos são? Claro que não me dou com essa gente.

Como estou no Facebook, as pessoas sentem-se muito mais à vontade para me contar as histórias. E já acham que sou a Madre Teresa de Calcutá ou a verdadeira ‘santa das bichas’

Personalidades famosas?

Uma senhora e um senhor nunca falam. E agora estou muito mais atento por uma razão. Como estou no Facebook, as pessoas sentem-se muito mais à vontade para me contar as histórias. E já acham que sou a Madre Teresa de Calcutá ou a verdadeira ‘santa das bichas’.

Se o voltassem a convidar para participar em mais um reality show, o José aceitaria?

Depende do projeto. Estou a fazer um curso de representação já há um ano e meio e é engraçado que todos os meus professores me dizem para nunca perder a minha naturalidade, porque sou um ator natural.

Qual foi o reality show mais desafiante em que participou?

Todos eles foram desafiantes, mas a tropa foi muito forte e a tribo também. Quando saí de Nova Iorque – todos os concorrentes sabiam mais ou menos para onde iam – eu nunca me preocupei. Mandaram-me inclusivamente ver um episódio, vi quase um e não vi mais, porque não gosto de copiar ninguém. Em Nova Iorque há milhares de tubarões no oceano, não é como em Portugal e eu consigo destacar-me por alguma razão. Não é por eu pôr um salto alto, aqui há milhares de pessoas que o fazem e que não são operadas. Gostam, gostam, não gostam, paciência.

O José nunca se preocupou com a opinião das outras pessoas?

Não se pode agradar a gregos e a troianos. Podem não gostar, mas têm de dar valor.

Arrependo-me de ter sido tão ingénuo. Acredito nas pessoas, no ser humano e infelizmente o ser humano muitas vezes está comigo por outras razões

Arrepende-se de alguma coisa que fez?

O que me arrependo é de ter sido tão ingénuo. Acredito nas pessoas, no ser humano e infelizmente o ser humano muitas vezes está comigo por outras razões: ou pela minha fama, ou dinheiro ou porque têm interesse no meu físico. Foi por isso que tive os problemas que tive. Depois vêm todos pedir perdão, todos, tenho provas disso. Inclusivamente os empregados que diziam que não pagava salários, que tinha tido sexo com cão, que tinha morto o marido da Betty, quando eu nem sequer conheci o senhor. Eu abro os braços e perdoo. A Betty pede-me muitas vezes para mudar e para ser mais cauteloso, mas não consigo, porque digo aquilo que eu sinto. Como é que eu posso guardar rancores e depois ir à comunhão? Tenho de ser verdadeiro comigo próprio, não quero enganar ninguém.

Se gostarem de mim, se tiverem saudades minhas digam que eu volto. Mais vale desejado do que aborrecido

Pondera voltar para Portugal?

Não está nas minhas mãos, está nas mãos das pessoas. Volto sim, mas num projeto de trabalho, porque aqui estou a trabalhar. Estou a dar conselhos de moda – faço styling a senhoras da sociedade. Se gostarem de mim, se tiverem saudades minhas digam que eu volto. Mais vale desejado do que aborrecido.