Desde sempre que o amor pelas artes correu no sangue de Amélia Videira. No entanto, só foi para o conservatório depois do 25 de Abril, tendo-se estreado no mundo da representação nos anos 70.

Os tempos eram outros e “as mulheres eram muito controladas pela família”. Por isso não conseguiu abraçar esta paixão mais cedo, pois não era “uma coisa bem aceite” pela mãe e não teve força para enfrentar a 'oposição'.

Mas conseguiu mais tarde entrar no mundo das artes e, com o passar do tempo, a mãe começou a sentir “vaidade” e a acompanhar o seu trabalho. Desde então, interpretou várias personagens e hoje afirma que não alterava nada no seu percurso.

Amélia Videira é a entrevistada de hoje do Vozes ao Minuto, onde fala abertamente sobre a carreira, sem esquecer a bonita história de amor que viveu com o também ator Carlos Santos.

A representação foi a área que sempre sonhou, mas só conseguiu realizar este desejo depois de já estar casada, porque a sua mãe não concordava com a sua escolha e nem a deixou ir para o conservatório aos 18 anos. Nessa altura, quais eram as principais dificuldades de uma mulher que queria ser atriz?

Bem, não sei, porque há colegas da minha idade que começaram as suas carreiras cedo. Comecei tarde porque não era uma coisa bem aceite pela minha mãe. Eu própria não tinha força suficiente para ir fazer o que queria. As mulheres eram muito controladas pela família e eu sempre fui muito ‘fura o que está’, ‘fura a instituição’, ‘fura’... E para furar é preciso força. Portanto, determinaram aos dez anos que eu não iria para o liceu porque isso significava ter que tirar um curso superior ou então ser empregada de escritório, era isso que dava fazendo o 5º ano do liceu na altura. Era mais pragmático fazer um curso técnico, que hoje se chama técnico-profissional. Fui fazer um curso de química contrariadíssima. Por volta dos 17,18 anos, fui fazer um teste de orientação profissional. Disseram-me que com o meu tipo de inteligência podia fazer qualquer curso, mas não me podiam dar uma resposta para isto porque era um curso vocacional e lá não se fazia provas vocacionais. Aconcelharam-me um curso de história ou filosofia, mas nunca nenhuma atividade ligada à burocracia, ao espaço fechado… E era assim a repressão sob nós, mulheres. Não era por maldade, era assim. Haviam muitas regras, muitos preconceitos. As raparigas deviam casar virgens, de branco, namorar com a família na sala. Se as raparigas tinham uma relação antes de se casarem diziam que já não estava honrada, devíamos tirar um curso que nos desse depois uma reforma e termos uma vida sossegada e organizada. Comecei desde pequena a pensar ao lado, a ter questões e a ter problemas. Não era essa a minha maneira de estar, mas não tive força, se não depois de casada (com 32 anos, depois do 25 de Abril) para impor a minha vontade.

Quando finalmente iniciou a carreira, qual foi a reação da sua mãe?

Já estava casada, a minha mãe deitou um bocadinho as mãos à cabeça quando viu que o meu [agora] ex-marido me apoiava, e agradeço-lhe isso, estimulou-me. À medida que ia aparecendo na televisão e que as pessoas diziam que eu era muito parecida com ela, ela ia começando a sentir vaidade e depois começou a ver o meu trabalho e a perceber que estava bem, que era aquilo. Depois ia ao teatro ver os espetáculos e gostava. Identificava-se com aquilo que eu estava a fazer porque o grande sonho dela era ter sido cantora, mas também não a deixaram ser. Os meus avós maternos, que eram iletrados (não sabiam ler nem escrever), achavam que os homens é que tinham de estudar e as mulheres tinham de aprender um ofício. Aos 12 anos puseram a minha mãe numa fábrica quando o sonho dela era cantar, e cantava com uma voz divinal. E estas coisas vão-se transmitindo até que chega um dia em que nós temos de romper os padrões. É preciso essa força para dizer não, chega de opressão. E o 25 de Abril foi realmente extraordinário. Tão extraordinário que acho que os mais jovens não têm consciência disso. Se hoje podem falar, fazer, ler, andar ir para o estrangeiro… devem a esse momento extraordinário da história deste país.

Depois do 25 de Abril as pessoas sentiram-se totalmente livres ou ao início ainda havia o medo, hesitação, a sensação de que estavam a fazer as coisas erradas?

As mentalidades demoram muito a mudar. É fácil mudar uma conjuntura. Uma estrutura, seja ela de que nível for, é sempre mais complicada e demora mais. O que está enraizado no pensamento, nas células das pessoas, leva muito tempo a mudar e ainda hoje nós nos confrontamos com muitos preconceitos. O que é desadequado é o preconceito porque isso tem a ver com o desconhecimento, com o pensamento antecipado sobre uma determinada coisa, e isso mantém-se. Os paradigmas mudaram. Hoje ninguém exige à rapariga que vá virgem para o casamento, é uma opção, a maior parte das pessoas não ficam traumatizadas quando vêm outras que assumem a sua opção sexual diferenciada daquilo que era comum e instituído quando eu era jovem - homem casa com mulher e vice-versa. Há coisas que mudaram, mas outras não. A forma de pensar preconceituosa, essa é que tem de ser vencida e a nossa postura tem que ser modificada no sentido de: Eu abro-me ao mundo, eu vejo, ouço, eu não julgo. Quando julgo alguém, também me coloco na situação de ser julgada. Quando reivindico para mim o direito de ser como sou, também tenho de dar aos outros o direito de serem como eles são. Evidentemente, tudo isto tendo uma base de valores, uma base ética de respeito uns pelos outros.

Desde então, já teve vários papéis… De todas as personagens que interpretou até ao dia de hoje, com qual é que mais se identifica?

Há um espetáculo que gostei muito de fazer. Teve vários nomes, é um texto de Dario Fo, Franca Rame, Jacopo Fo (que é o filho deles), sobre sexualidade, que fiz durante vários anos, especialmente para os jovens. Deu-me muito prazer fazer esse texto. Era um monologo difícil de fazer porque os jovens, com todo o respeito pela juventude, com o acesso que existe à pornografia pensam que sabem tudo sobre sexo e que ninguém lhes ensina nada. Mas fala-se de um sexo mecânico e não se fala de afetos. Neste espetáculo o que valorizei sempre foram os afetos e não o ato sexual. Não é uma performance no sentido de vamos ver quantos minutos é que dura, não é um exercício de ginástica, não é a parte física. É o corpo, sem dúvida, mas são também os afetos e isso é importante. Não há nenhum site pornográfico na Internet que o dê. Era muito bonito ver como os jovens ao princípio, (então os rapazes que nessas coisas são ótimos) muito fanfarrões, muito de mandar bitas… e como depois era possível agarrar aqueles jovens cheios de emoção e de nervosismo, chegar ao fim e eles virem ter comigo. Tínhamos conversas extremamente afetuosas e eles percebiam e sentiam que o sexo não é só um ato físico, é muito mais do que isso. Foi muito gratificante por isso, pelos jovens. Depois gosto de tudo, gosto de representar.

Mas houve alguma personagem que fosse mais parecida com a Amélia Videira na vida real?

Todas são parecidas comigo. Ninguém é só uma coisa. Nós somos uma multiplicidade de seres que nos habitam. Não somos unos, não somos coesos, não somos sempre iguais. Nós variamos, as emoções às vezes sobrepõem-se, os sentimentos dão cabo de nós... Mas as minhas personagens estão todas dentro de mim. É isso que para mim nesta profissão é maravilhoso. Em cada personagem que faço redescubro-me. Por exemplo, quando fiz o espetáculo com a Simone de Oliveira, ‘Marlene’, (sobre a Marlene Dietrich) entrava muda e saía calada, mas o que aquela personagem vivia dentro de mim e se relacionava com as outras. Era uma coisa maravilhosa.

Se pudesse, hoje alterava alguma coisa do seu percurso no mundo das artes?

Não, por uma razão muito simples. Sou uma mulher que vai com a vida e a vida vem ao nosso encontro. Tive o privilégio de receber lições do professor Agustinho da Silva. Durante os últimos três anos de vida dele, ia lá a casa uma vez por semana e ouvia-o falar. Foi um privilégio absolutamente extraordinário. Um dia, lembro-me perfeitamente do professor Agustinho estar a falar sobre a sua vida. Ele teve que sair de Portugal por causa das perseguições do regime, foi para o Brasil onde criou a Universidade… Parece que estou a vê-lo de pé, a olhar para mim e dizer-me: ‘Sabe Amélia, nós temos tantos projetos para a vida que às vezes não damos à vida a oportunidade de mostrar os projetos que tem para nós’. Isto foi um grande ensinamento. Nós queremos isto e aquilo, e depois estamos tão focados naquilo que queremos, que não vemos as outras coisas que vêm ter connosco. Aprendi que quando vem uma nega é porque o caminho não é por ali. Se há uma recusa, então para e vê o que é que tens que aprender, qual é o caminho. E foi assim que aconteceu na minha vida.

Como é que classifica esta nova geração de atores? Acha que há bons talentos em Portugal, que continuam a cultivar-se bons talentos?

Acho que esta história do bolonha foi uma grande treta, especialmente nas escolas artísticas. A escola de teatro, que era uma escola vocacional, passou a ser um instituto politécnico. Desde quando é que o teatro é uma técnica. No teatro aprendem-se técnicas para colocar a voz, para conhecer o corpo e aplicá-lo à sua personagem... Isto são técnicas, mas há uma outra coisa que é muito mais importante que é a vocação. E quando estamos numa aprendizagem de teatro, temos que aprender através da imporvisação, através do trabalho sobre as emoções, como é que retiramos dentro de nós essa personagem. Do meu ponto de vista isto é uma asneira. Quer dizer, agora é politécnico, é técnico, então o que é isso? E a vocação? É claro que isto faz com que os alunos tenham semestres e durante seis meses (que nunca são seis meses) fazem não sei o quê… isto não dá continuidade à aprendizagem.

Posso dizer que quando fui para o conservatório trabalhei durante quatro anos com a mesma professora de voz e ao mesmo tempo que trabalhava no conservatório também tinha aulas particulares com ela. Depois trabalhei com professoras extraordinárias, com a Glória de Matos, a Maria Germana Tânger, que nos ensinavam a ler, a dizer, a interpretar um texto. Tive aulas de interpretação com muito bons professores e isto é que faz um ator. Isto processava-se ao longo de um ano letivo, não é agora esta coisita dos semestres e umas técnicas. O que sinto em muita gente desta nova geração é que lhes falta a alma, falta-lhes a personagem vir de dentro e não ser apenas um saber de texto e um dizer um texto. Há uma diferença muito grande, a emoção, a minha emoção interior, própria da minha personagem, ela aflora o meu corpo, o meu rosto. E o espetador sente isso. O espetador vê umas pessoas que sabem dizer um texto, que expressam clichês do que são emoções, é evidente que não convence ninguém. O público não é parvo.

Sente que em Portugal os atores mais velho acabam por ficar esquecidos com o passar da idade?

Um sim muito grande. Quando comecei havia ainda um grupo de grandes atores mais velhos que trabalhavam. Com eles aprendemos. Mas esses atores mais velhos já saíram de cena, não são chamados porque estão convencidos que as pessoas ficam senis e que não têm memória, o que não é verdade. Quando chega à minha geração, tenho 72 anos, se repararmos no que se passa no teatro e na televisão, os atores mais velhos andam pelos 50 e qualquer coisa. Começa a não haver quem puxe pelos mais jovens para eles se aperfeiçoarem na arte de representar. Isso começa a faltar. Começa a haver uma população muito jovem com muito jovem. Pode até haver gente com muito talento, não estou a dizer o contrário, mas todos a contracenarem uns com os outros e a não terem quem puxe por eles. E nós estamos postos de lado no teatro e na televisão. Porquê? Ainda por cima num país com uma percentagem enorme de idosos. Por um lado não nos reconhecem capacidade para continuar a trabalhar, não percebem que nós somos uma mais valia para a melhoria dos mais jovens porque estão a aprender, estão a desenvolver-se, é assim. Uma criança que começa a dar os primeiro passos a gente não a larga no meio da rua, damos a mão e ajudamos a desenvolver essa capacidade inata. O talento não vem de fora, vem de dentro. Todos perdem. Perdem os mais jovens, os espetadores, as produtoras, os grupos de teatro por não nos chamarem. E nós enquanto atores, há uns que vivem muito amargurados, e há outros, como eu, que olham para a vida e dizem: ‘Esperem lá, por onde é que é o caminho desta vez?’.

Recentemente, os artistas reuniram-se numa manifestação, pedindo 1% do orçamento de estado para a cultura. Como é que viu esta união da classe?

Não lhe sei responder porque em minha casa a televisão está no sótão e eu passo a minha vida no rés-do-chão. (risos) Não vejo telejornais e ando sempre atrasada nas notícias. (risos) Perguntei a uns colegas que fui encontrando o que é que eles pensavam, mas também não pensavam grande coisa. Nisto a gente ouve muitas opiniões... Acho (bem) 1% para a cultura porque o que se investe na educação e na cultura é o que faz de um país, um país evoluído. E cultura não é só o teatro, não é algumas companhias terem subsídios maiores e terem elencos que se mantêm 20,30 e tal anos desde o início... aquilo já é um funcionalismo público. Não. A cultura não é só isto, são os museus, os livros, as viagens, é este país, os castelos, a história deste país. Se perguntar à maior parte das pessoas quem foi o D. Afonso Henriques se calhar não sabem.

Mas sente que esta luta pelo apoio à cultura nunca foi 'recompensada', que os artistas nunca foram devidamente apoiados pelo governo? Sentiu essa falta de apoio ao longo da sua carreira?

Devo ser uma pateta alegre porque nunca foi esse o caminho que mais me inspirou. Fui ver a estreia da Uau e o produtor disse-me uma coisa que me tocou. Há 20 anos que aquela produtora existe, nunca tiveram subsídios, chegam a ter 80 pessoas e mais a trabalhar para eles, portanto, nunca tinham pedido ajuda ao governo. A única coisa que eles pediram era que o iva dos bilhetes fosse reduzido de 13% para 6%, porque as estatísticas dizem que uma família vai ao teatro a cada dois anos. De facto, uma família que queira ir ao teatro, se forem quatro ou cinco pessoas com o iva de 13%, é muito. Vão uma vez de dois em dois anos. E isto é um investimento na cultura, se o iva baixar. Os bilhetes ficam mais baratos e as pessoas podem ir. Não tenho uma opinião formada sobre a questão do apoio, mas sei que há outros meios de se conseguir chegar às coisas sem se estar à espera do apoio.

Outros dos temas que tem marcado cada vez mais a atualidade é o feminismo. As discussões sobre o papel da mulher na sociedade ainda se justifica hoje em dia?

Claro. E não é discutir com os homens, é as mulheres discutirem com elas próprias e entre si, e darem valor à sua natureza feminina, que não é igual à natureza masculina. Darem valor à sua natureza e dentro daquilo que é a natureza feminina, terem um papel dentro da sociedade. A nossa natureza feminina tem sido muito recalcada e minimizada por nós, e tem-nos sido exigidos papeis que pertencem mais ao mundo do homem do que ao das mulheres. Porque esta verdade de La Palice, que é a mulher menstrua, fica grávida, dá à luz.... A mulher. E isto é extraordinário porque não há nenhum homem que nasça de outro homem. O sexo masculino precisa disto, isto é uma condição inalienável para que a espécie continue. E isto é um valor acrescentado dentro de uma sociedade. Agora, é dentro destas condições que as mulheres têm de viver, ser aceites, e não podem ser despedidas nem marginalizadas porque estão grávidas. Nem podem trabalhar, se calhar, até ao fim do tempo porque precisam de um descanso, de conversar com a criança. A maternidade tem que ser vista como um bem para a sociedade e a mulher tem de ter tempo para conversar com a sua criança. Criança essa que vai dar expressão a uma sociedade. E se essa mulher conversa com um filho macho e se o sensibiliza, o enternece, é evidente que esse ser vai nascer dentro de outras condições. A sociedade tem de mudar, as pessoas têm de olhar para a vida, têm de olhar umas para as outras com amor, dedicação, carinho, disponibilidade, espaço. É preciso dar espaço. As questões do feminismo para mim são estas. É isto que penso e há um livro que as mulheres e os homens deviam de ler, que é ‘As Mulher que Correm com os Lobos’.

A televisão está a apostar nas novelas com várias temporadas. Qual a sua opinião sobre este novo formato?

O que ouço dizer de muitas pessoas é: ‘Isto nunca mais acaba’. Não vejo temporadas, mas ouço as pessoas a dizer que nunca mais acaba. Eu vou ao supermercado, à praça, não uso óculos escuros, não me disfarço, deixo que as pessoas me abracem, me deem palmadas nas costas, rio-me com elas… sou uma pessoa muito normal. Agora, ouço o que as pessoas me dizem. Depois há outra coisa que é uma pena que é, em vez de temporadas, séries. O público gosta de séries.

Foi uma das atrizes que trabalhou ao lado de João Ricardo naquele que veio a ser o seu último trabalho na ficção nacional, a novela ‘Espelho D’Água’. Como viveu a partida do ator?

Ele depois foi substituído pelo Rui Luís Brás, que era o meu parceiro direto na contracena. Todas as cenas eram com o João. A morte não é um assunto fácil, nem algo que nos deixe indiferente. Principalmente quando nós avançamos na idade. Quando se é jovem, a morte é muito distante, mesmo que ela possa ocorrer no dia seguinte. À medida que se avança na idade, a morte é um pensamento com alguma frequência. É evidente que quando uma pessoa que trabalhou connosco tão diretamente como o João, morre, não se pode ficar de maneira nenhuma indiferente. Não fui ao funeral, nem iria. O meu companheiro, o ator Carlos Santos (Benjamim de 'Bem-Vindos a Beirais'), morreu depois de 12 dias em que estive à cabeceira dele a apoiá-lo em coma induzido. É uma situação muito dura e quando chega o momento do João, há um buraco que se faz no estômago, há uma memória traumatizante, dolorosa, que vem à superfície e o que acontece é que o tempo para. Para, há uma suspensão, há uma respiração profunda que se tem de fazer, e depois a vida continua até que chegue o nosso momento. Porque a morte é inalienável e ela está aqui sentada e está aí, ali... A morte, não sendo visível, é presencial na nossa vida.

Viveu uma bonita história de amor com o também ator Carlos Santos. Como é que recorda esse amor? Quais as principais memórias?

Pela primeira vez na minha vida senti que havia um homem chato, casmurro, rezingão, como ele era, que sempre tinha gostado de mim, que me aceitava como eu era e que achava que eu era uma grande atriz. A primeira coisa que o Carlos me disse quando saímos para ir tomar um café foi: ‘Tive tantas saudades tuas. Nunca percebi porque é que te foste embora’. Olhei para ele e pensei que estava doido, ainda no noutro dia tinha estado com ele e tinha que me ir embora, para casa… E o Carlos diz-me: ‘Não, há 35 anos. Nunca percebi. Tu de um dia para o outro desapareceste e tive tantas saudades tuas. Nunca percebi porque é que te foste embora’. Foi um reencontro ao fim de 35 anos.

Quando o voltou a dar uma nova oportunidade à relação, o amor foi vivido de uma forma diferente?

Era muito engraçado. Por um lado éramos dois rezingões, cada um com as suas manias, por outro lado foram grandes serões a falar de coisas. Sinto que este reencontro foi para ajudar o Carlos, porque as pessoas precisam de quem as ajude a fazer a sua passagem, para atravessar o rio, são os barqueiros. Por isso é que há os cuidados paliativos, para ajudarem as pessoas a fazerem a passagem para outro lado. O que sinto no meu coração é que o nosso reencontro teve uma finalidade: Ajudar o Carlos a desfazer alguns caroços que tinha dentro dele em relação a várias coisas, uma deles tinha a ver com a espiritualidade. Nunca o ouvi dizer que era ateu, mas tinha grandes dúvidas espirituais. Tinha algumas amarguras sobre a justiça e a injustiça das situações e dos comportamentos das pessoas. Passámos muito serões a falar disso, a falar de Deus, da morte, da vida, de espiritualidade. Os dias que passei com ele no hospital, - esteve duas vezes internado e depois foi os 12 dias que estive com ele nos cuidados intensivos - durante todo esse tempo foi-me dito pelos médicos e enfermeiros para falar sempre com ele. Falei-lhe de esperança, de amor, das coisas que tínhamos conversado e planeado…

Hoje sinto uma grande tranquilidade e uma grande gratidão porque o Carlos fez-me olhar para mim enquanto atriz com outros olhos. Durante muitos anos olhei para mim com muitas dúvidas, muitas vezes sem perceber porque é que passava tanto tempo sem ser chamada. Nunca mais fui chamada para fazer peças de teatro a não ser a da Simone de Oliveira e com o Camilo. [Em relação à] televisão, depois passei a ter um agente, mas enquanto não tive era uma coisa que não percebia porque é que não me chamavam. Também é verdade que nunca me juntei a grupos nem nunca me vendi ao que quer que fosse. Sou uma atriz, uma profissional qualificada. Hoje sei e tenho consciência daquilo que era, daquilo que sempre fui. Se não me chamavam, também não ia lá pedir. A vida pôs-me outros caminhos pela frente. Mas o Carlos fez-me olhar para mim com outros olhos e ele era, de facto, um grande ator. São as coisas que ficam. Depois a vida segue o seu rumo até ao dia em que também hei-de fazer a minha passagem. Espero que alguém faça o favor de me ajudar a atravessar o rio.

Na altura tinha o casamento marcado, mas esse desejo acabou por não se concretizar, uma vez que Carlos partiu na véspera. Sente que foi apenas um até já? Acredita que um dia vai voltar a reencontrá-lo?

Sim. Como diz o Lavoisier, ‘na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma’. Acredito que a nossa matéria orgânica vai modificar-se e acredito que esta energia anímica que nós possuímos irá para algum lado. Também acredito que a nossa energia, pelo trabalho que realizamos nesta vida, vai adquirindo graus de pureza ou não. Aquilo que nós fazemos socialmente, o papel que desempenhamos junto dos outros, também vai subtilizando a energia de que somos feitos. Depois estas energias se forem da mesma qualidade devem, com certeza, num sítio qualquer, encontrarem-se. Eu não serei a Amélia, o Carlos não será o Carlos, a Maria Joaquina não será a Maria Joaquinha, mas serão energias que se encontraram por afinidade de matéria etérea.

Se estivesse agora com ele, o que lhe diria?

Então tu não tens vergonha? Vais-te embora e deixas-me cá sozinha. Na véspera do casamento… deixares a noiva à porta da igreja… isso não se faz Carlos Alberto. Era o que lhe diria.

A morte assusta-a?

Acho que a morte assusta qualquer pessoa se nós pensarmos na morte como uma coisa que acaba ali. E penso que é por esta razão, pelo medo que todos nós temos, que muito conflitos existem. A morte é uma ida sem retorno e penso que este medo está na base de muitas atitudes das pessoas sem terem consciência de que é a morte que está por trás disto. Porque a ganância, a posse, o poder, isto dá a sensação de uma eternidade. Penso que muitas atitudes de governos, sociedades, pessoas no dia-a-dia, têm subjacente, de uma forma não consciente, esse medo. Temos de conviver todos os dias com a morte, de não a alienar. Tornarmo-nos mais conscientes no nosso dia, mais solidários, mais compreensivos, mais abertos ao diálogo e à diferença. E também prepararmo-nos para essa coisa absolutamente inevitável e serenarmos os nossos receios para que a vida seja mais harmoniosa.

Como é que lida com o envelhecimento?

Olha que sorte a minha, olha se tivesse morrido nova… Lido bem com o envelhecimento. As minhas rugas não me incomodam. Também há uma coisa que é verdadeira, é que a gente enquanto que ganha rugas perde a vista da maneira que quando me vejo ao espelho, vejo-me sempre esticadinha... Não quero alienar o tempo. As rugas que tenho fazem parte da minha história de vida e a minha história de vida é a minha história, é preciosa, é o que é meu. Não quero alienar esse bem nem ser igual a todas as outras pessoas. Não quero ser uma boneca com botox nas bochechas, nem que me estiquem a cara e deixe de ter a minha cara para ter uma cara não sei de quem. Se me esticam as peles mudo a feição e não quero isso. Quero a minha história de vida e essa está no meu corpo, na minha alma.

Como é que gostaria de ser lembrada?

Às vezes fico muito agradecida porque há pessoas que vêm ter comigo e me dizem: ‘Deve ser muito boa pessoa. Tem luz’. Procuro ser uma pessoa correta, procuro retratar-me das baboseiras que faço e inverter os caminhos. O meu esforço é ser cada vez mais uma pessoa mais correta. Quando me dizem coisas como esta, penso que deve haver alguma coisa deste esforço que se vê, que sai de mim. Então, gostaria de ser recordada assim, não como uma grande ou pequena atriz, mas como uma pessoa que ao longo da vida procurou transformar tudo aquilo que era menos bonito, menos adequado dentro de si, em harmonia, sabedoria, partilha e luz.