Descontraído, de sorriso fácil, resposta (na maioria das vezes) pronta: assim é Salvador Sobral. Aos 33 anos, é uma das referências da música portuguesa, mas confidencia que lhe é difícil aceitar este elogio.

Há seis anos, atingiu o 'pico' de popularidade ao ganhar a Eurovisão com a maior pontuação de sempre e a trazer a primeira vitória para Portugal. Contudo, admite não ter lidado bem com a atenção exagerada que recebeu na altura. Se a isto juntarmos os problemas sérios de saúde que enfrentava, então temos, palavras suas, aquilo que "não foi um bom cocktail".

Hoje, depois de ter passado por um transplante de coração e de ter sido pai, já consegue mostrar a sua verdadeira personalidade. A do Salvador que ama estar em palco, mas que dispensava bem o stress que a produção de um disco exige. A do Salvador que recebeu um certificado de validação 'Caetaneado'. A do Salvador que canta tanto para a filha, a bebé Aïda, que se tornou numa espécie de "entidade da música" para ela.

'Timbre', o seu novo disco, está quase a sair, é já no dia 29 de setembro. Neste momento sente-se aliviado ou ansioso?

Este disco teve muitas intermitências e problemas desde a sua realização. Há uma crise mundial na fabricação de vinis, toda a gente quer fazer e não há fábricas suficientes.

Avisaram-me logo que para eu lançar o disco precisava de entregá-lo com sete meses de antecedência para depois ficar na fila de espera e entreguei o 'Timbre' em fevereiro deste ano. Isto nunca me tinha acontecido. Depois tive vários problemas com a banda... O pianista que gravou o disco decidiu ir embora, tenho assim uma espécie de maldição com pianistas...

Suponho que são coisas que acontecem sempre, mas eu devo esquecê-las, tipo dores de parto. Não me lembro de no 'bpm', o disco anterior, ter sofrido assim com coisas antes de sair o disco.

Agora, tenho muita vontade de ir para a estrada cantar, que é o que eu sei fazer. O sítio onde me sinto confortável é ali no palco a cantar com os músicos, com as pessoas a ver e com a música viva. Mal posso esperar.

Um disco para mim é uma desculpa para eu poder cantar ao vivo, se pudesse nunca fazia discos, só cantava. O problema é que eles precisam da novidade. Eu quero é estar no palco

Então se pudesse passar à frente a produção de novos discos, fá-lo-ia?

Um disco para mim é uma desculpa para eu poder cantar ao vivo, se pudesse nunca fazia discos, só cantava. O problema é que eles precisam da novidade. Eu quero é estar no palco. O stress a compor é uma coisa que me tortura imenso, que não me sai nada natural, é um trabalho para mim bastante racional e intelectual. É um processo em que eu me sento com um dicionário de rimas, um dicionário de sinónimos, um dicionário de expressões idiomáticas e estou ali a partir pedra.

Este disco foi giro porque tentámos vários jogos diferentes de composição, para eu não me cansar. O Leo [Aldrey, com quem criou o álbum] faz sempre os mesmo jogos de distração que eu faço com a minha filha.

Como assim?

Quando ela está agarrada a uma moeda e eu não quero que ela coma a moeda e sei que ela vai gritar comigo se eu lhe a tirar, eu dou-lhe outra coisa que ela pode comer. O Leo é um bocadinho assim nos jogos de composição. 'Estás farto disto? Vamos experimentar um jogo em que atiramos os dados e que os dados têm acordes e nós experimentamos esses acordes'. Foi bastante mais didático este processo de composição, mas não é de todo o que me sai mais naturalmente. Eu sou cantor desde que nasci e serei cantor até morrer, é a minha missão nesta terra.

E durante esses processos de composição não sente que de alguma forma não esteja a dar ao público o que se espera do Salvador? Ao optar mais pelo lado racional e menos pelo emocional?

Não, porque quando eu estou a cantar dou total emoção. Quando componho as canções é um processo bastante racional, mas quando o público as ouve entrego-me e canto com verdade e honestidade, as pessoas sabem.

Toda a gente sabe que eu sou um artista mais do vivo do que dos discos. No palco sei-me defender e controlo aquele habitat. Quando o Caetano [Veloso] me veio ver ao Rio de Janeiro, eu não estava nervoso porque eu sabia que controlava o concerto, sabia as canções e sinto-me orgulhoso do que faço no palco. Se lhe fosse mostrasse um disco estaria bastante mais nervoso, sim.

Chegou a ser muito elogiado pelo Caetano Veloso nessa altura.

Sim, também veio essa parte. Antes de ir ao concerto escreveu um post absolutamente exagerado, que eu nunca pensei... Bem, não é exagerado, porque ele diz o que sente. Deixou-me completamente surpreendido porque sabia que gostava da minha voz, mas daí a dizer aquelas coisas. É como se sentisse uma espécie de calma depois de ler aquelas palavras.

Tinha várias ambições com a minha carreira - agora menos com a minha filha -, e sentia-me injustiçado, às vezes, por não ganhar isto, ou não estar a cantar nos Estados Unidos, sei lá... Aquelas palavras foram muito mais valiosas que qualquer prémio. Foi como se fosse um certificado de validação 'Caetaneado' que me faz estar tranquilo e sentir-me confiante pelo menos à hora de cantar.

Porquê essa necessidade de validação?

Todos temos uma vontade enorme de agradar, tenho isso desde pequenino, acho que é uma condição de um artista. É uma condição do ser humano.

Questões de ego também as tenho, mas depois de se ter uma filha já não há tanto tempo para isso, porque há o ego dela, eu sou o ego dela

O Salvador já teve momentos de grande sucesso na sua carreira. Nesses casos poderão surgir problemas de ego. Chegou a passar por isso?

No meu caso o meu pai acha que eu sou o melhor cantor do mundo desde pequenino. A Jenna, a minha namorada, diz a brincar que foi talvez isso que me fez não acreditar quando as pessoas [me elogiavam], ou que me fez desvalorizar. O meu pai diz-me isso desde sempre! Eu não levava a sério e ao mesmo tempo isso dava-me uma confiança brutal. Questões de ego também as tenho, mas depois de se ter uma filha já não há tanto tempo para isso, porque há o ego dela, eu sou o ego dela.

Hoje, por exemplo, apercebi-me de que não tinha almoçado. Já não como um bom almoço há imenso tempo porque ela é que tem de almoçar bem. Isso é um reflexo de toda a nossa dinâmica. Acho que me ajudou bastante a vinda dela nesse aspeto de, obviamente, relativizar, mas também de dar menos importância a mim próprio, às minhas ambições de popularidade. No fundo é só popularidade e validação, porque dinheiro não é, não preciso de mais, e quanto à validação já tenho a dos meus maiores ídolos. Quer dizer, ajudaria se o Paul McCartney dissesse alguma coisa sobre mim [ri-se].

No fundo é só isso: se posso fazer o que gosto e se a minha filha está saudável, essas ambições ficam um bocadinho supérfluas. Espero sentir-me sempre assim.

Mas depois de ter uma filha não passou a perceber melhor o lado do seu pai quando lhe dizia que era o melhor cantor do mundo? Não diria igualmente a ela que é a melhor cantora do mundo?

Não sei, nunca vou forçar nada, nem sequer uma aula de música. Esta indústria também tem as suas coisas e eu não quero que ela sofra com nada disto. O meu pai sempre nos fez viver a música com o seu lado bonito e hoje em dia ainda tenho muitos colegas músicos que me dizem: 'que sorte tu tens em ainda manter essa relação saudável de apreciar tanto a música'. É isso que quero passar à minha filha, só o lado bom, divertido e de zero frustração. Se ela então quiser e mostrar interesse por um instrumento, coloco-a nas aulas.

Qual é o lado menos divertido da música para o Salvador?

A indústria. Hoje em dia é um período mais difícil pelas redes sociais, que eu detesto e faço parte. Tenho muitas dores de cabeça para pensar no que vou publicar e em como comunicar certas coisas. Invejo os artistas dos anos 90 que não tinham de pensar nestas coisas. Isto, mais cancelar concertos porque não se venderam bilhetes, por exemplo, tudo isso desgasta. É o medo de deixar de poder fazer disto vida.

Gosto de ser inconsequente às vezes, de ser inoportuno. Tenho um alarme que me diz 'cuidado' e outro que me diz 'vai'

Sente-se pressionado pelas redes sociais? De dizer alguma coisa que possa levar a um 'cancelamento'?

Isso acontece-me mais nestes momentos em que estou a dar uma entrevista. Nas redes sociais não falo nunca de coisas pessoais ou de opiniões. Ao longo dos anos já fui aprendendo a ter alarmes e tenho vários quando estou a dar entrevistas. Mas ao mesmo tempo que tenho os alarmes, tenho o meu espírito rebelde e as pessoas já me conhecem por dizer as coisas que sinto e por falar sem pensar. Gosto de ser inconsequente às vezes, de ser inoportuno. Tenho um alarme que me diz 'cuidado' e outro que me diz 'vai'.

Estava numa fase mais que rebelde, estava magoado, não conseguia lidar com a fama instantânea, não consegui eu e não consegue ninguém, acho

Na altura da Eurovisão qual dos alarmes soava?

Não soava nenhum... Soava o alarme do 'tirem-me daqui' ou 'vou dizer qualquer coisa para chatear as pessoas'. Estava numa fase mais que rebelde, estava magoado, não conseguia lidar com a fama instantânea, não consegui eu e não consegue ninguém, acho.

Aquilo não me estava a fazer bem, estava muito doente e sentia uma rejeição brutal por aquele 'momentum' que se criou à minha volta. Não havia nenhum alarme, pelo contrário, era 'qual a coisa que posso dizer para chocar', queria constantemente chocar as pessoas para que elas se afastassem, era curioso. Hoje em dia estou mais em paz e também a popularidade é outra, tenho fãs que gostam verdadeiramente da minha música.

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Acha que as pessoas na altura não o compreenderam?

Há sempre o processo de idealização do artista e da pessoa que ganhou o festival. As pessoas pensaram que eu era um cantor sensível e que ia ser bem comportado e depois comecei a dar várias provas que não estavam de acordo com o sistema e que havia várias coisas que me indignavam. Aí desmoronou-se essa imagem que tinham idealizado. Houve também várias coisas que não faziam parte da minha personalidade, mas eu estava muito perdido e doente. Tudo junto não foi um bom cocktail.

Hoje em dia acho que já consigo transmitir a minha verdadeira personalidade. Se bem que às vezes trabalho com pessoas que me contam: 'disse que ia começar a trabalhar contigo e as pessoas perguntaram-me: mas ele não é um bocadinho maluco?'. Muita gente pergunta isso.

Lembro-me que no discurso que fez após ganhar a Eurovisão criticou a música 'fast food'.

Quando disse "fast food music" falava naquele tipo de canções, daquele ambiente, mas a verdade é que há espaço também para isso. Eu estava tanto contra tudo... Ainda por cima tinha passado ali duas semanas intensas a ouvir só aquilo.

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Como é que então se equilibra a questão de 'preciso fazer música para vender' com 'vou fazer a música que eu gosto'?

Gostava de dizer que nunca penso nisso e que faço só a música que me sai da alma, mas eu também gosto de estar no palco e que as pessoas cantem uma canção minha (para além do 'Amar Pelos Dois'). Neste disco até era uma meta: 'será que conseguimos fazer um refrão folclórico, divertido, tropical?' e surgiu a 'Pedra Quente'.

Num tema nunca fala mais forte o lado da indústria e de querer vender, mas sim, isso está presente, e é um bom desafio procurarmos música menos complexa, pelo menos eu. Neste disco tinha vontade de fazer uma coisa mais celebratória e consensual. Também porque me sentia mais alegre e leve e queria transmitir isso.

Mas acho que não faríamos aquelas canções que passam na rádio, porque não nos sai da alma. Demasiado repetitivas, já ouvimos 50 iguais, queremos fazer outra coisa.

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E quando sai um disco? Perde-se logo o encanto por ele?

Acontece-me sempre, gostava que não me acontecesse neste, vamos lá ver, mas a verdade é que quando sai um novo já estou a pensar que não gosto dele, que poderia ter feito isto diferente. É comum entre os músicos sentirem isto. Espero que não aconteça neste porque tem várias canções de que me orgulho.

Tinha vontade de fazer uma canção de gratidão - um 'obrigado por teres morrido para eu estar aqui em vida'. Já tinha dois discos depois do transplante e nunca tinha conseguido fazê-la

É do tipo de artista que pega em situações da vida e leva para a música?

Sim, há vários exemplos no disco como 'El Regalo Que Me Hiciste' que é uma canção que compus em homenagem ao dador do meu coração. Tinha vontade de fazer uma canção de gratidão - um obrigado por teres morrido para eu estar aqui em vida. Já tinha dois discos depois do transplante e nunca tinha conseguido fazê-la.

De repente, escrevi esta letra em espanhol e a minha manager na altura perguntava-me 'porque é que escreveste uma canção tão íntima, tão pessoal, de gratidão ao teu dador em espanhol?'. Sinto que é exatamente para ganhar um pouco distância, porque mesmo agora, quando a ouço, só tenho vontade de chorar e custa-me imenso cantá-la. Como espanhol não é a minha língua mãe pode haver algum tipo de distanciamento, espero.

'El Regalo Que Me Hiciste' é uma canção que está então ligada a uma fase marcante da sua vida. Tornou-se numa pessoa diferente depois do transplante?

Mudei muito em todos os aspetos, até na minha própria voz. Do ponto de vista anatómico também sofri várias mudanças porque o meu diafragma mudou de posição e eu fazia uma retenção de líquidos muito grande.

Passar tanto tempo no hospital muda, obviamente, a nossa perspetiva de vida e depois adaptas-te, como te adaptas à doença, e eu adaptei-me de não poder subir um lance de escadas para agora ganhar saúde. Quando me chateio por causa do trânsito - que era uma coisa com a qual tinha prometido que nunca mais ir-me-ia chatear quando saísse do hospital - penso: 'não, estás aqui vivo, estás fora do hospital, tens a sorte de estar no trânsito, que sorte estar aqui no meio dos carros, das pessoas, a ouvir música'.

Tenho vários momentos de introspeção pessoal, por isso é que até senti vontade de fazer essa canção ao dador. Não sei se há muitos transplantados cantores com canções de dedicação ao seu dador, por isso, senti esse ímpeto.

Já comprou um smartphone? Chegou a dizer numa entrevista que evitava ter um.

Sim, claro. Percebi que era absolutamente necessário. Comprei quando a Jenna estava grávida e eu queria ter memórias fotográficas dos primeiros meses e do parto. Depois deu-me muito jeito no trabalho. Agora estou a jogar o jogo contrário, só me falta o TikTok.

Suponho, então, que a memória [do smartphone] esteja cheia de momentos da Aïda.

Cheia de fotos e vídeos dela que eu vejo incessantemente quando vou tocar, apesar de ela vir muitas vezes comigo, veio comigo ao Brasil e ao Senegal.

Um dia estávamos aqui num restaurante, estava a dar música e ela olha para os meus lábios. Percebi que ela achava que eu era a entidade música, que tudo o que era música vinha da minha boca. Achei super poético

Canta muito para ela?

Canto para estimular, a malta pensa que é mais para embalar e eu nunca cantei para ela adormecer, para mim a música é para estimular [diz sem evitar um riso].

Quando ela era pequenina passei muito tempo sozinho com ela, porque a Jenna trabalhava e eu estou sempre a cantar sem me aperceber. Um dia estávamos aqui num restaurante, estava a dar música e ela olha para os meus lábios. Percebi que ela achava que eu era a entidade música, que tudo o que era música vinha da minha boca. Achei super poético. Agora não, já percebeu que há outra música no universo.

E ainda vai chegar ao mundo das músicas infantis...

Podem ser músicas infantis mas bem tocadas, porque às vezes essas são um bocadinho... [fica pensativo]. Ela não precisa, ela já ouve jazz, já ouve de tudo, é uma bebé muito erudita [fala em tom de brincadeira].

"Contradizer-se é sinal de reflexão", escreveu o Salvador para falar sobre este disco. Qual foi a maior contradição na sua vida?

A maior foi dizer que nunca mais participava num concurso. Ainda por cima não foi uma vez. Fui ao 'Bravo Bravíssimo' e disse 'nunca mais', depois fui aos 'Ídolos' e disse 'nunca mais', depois fui ao Festival da Canção e à Eurovisão.

Da maneira que fala parece que foi colecionando traumas a cada concurso.

[Ri-se]. 'Sim, porque é que continuas a ir?'. Mas a verdade é que o último funcionou muito bem a meu favor, não me posso queixar. Muitas vezes perguntam-me quando é que volto à Eurovisão, mas voltar para quê? Ganhei aquilo com a maior pontuação de sempre, o que é que vou lá fazer?

Acho que está feita a minha história aí, [apesar de] já várias vezes ter sido proposto eu voltar. A verdade é que me consegui distanciar, mas sempre no ponto de vista da gratidão. Acho que sou mais do que aquilo, embora que em todos os concertos em qualquer país seja sempre o 'vencedor da Eurovisão'. Hei de ter 80 anos e cantar o 'Amar Pelos Dois' ao piano...

Isso chateia-o?

Já chateou, mas agora estou em paz comigo. Cheguei a parar de cantar ['Amar Pelos Dois'] durante um ano. Depois fui ver o Caetano [Veloso] e ele cantou o 'Leãozinho', fui ver o José González e ele canta o 'Heartbeats', Bruce Springsteen canta o 'Born In The USA'. Quem é que sou eu para não cantar o 'Amar Pelos Dois'. Quem sou eu? As pessoas adoram, vai sempre fazer parte da minha vida.