Ativista e defensora de boas causas, Marta Bateira, a rapper, repórter e comediante, não fica indiferente às injustiças e desigualdades. Ao fim de cada dia, o desejo é sempre o mesmo: mudar o mundo. Por isso, não deixou de se manifestar sobre as questões que a preocupam durante a conversa com o Notícias ao Minuto.

Dias antes de voltar a subir ao palco, no festival de humor Re-Creio, que acontece após as limitações impostas pela Covid-19, Marta Bateira mostrou-se ansiosa pelo regresso ao mundo do espectáculo.

A preparar-se para a atuação que será já esta sexta-feira, 24 de julho, no Estádio do Jamor, em Lisboa, a artista não deixou de falar, durante a entrevista, dos desafios que chegaram com a quarentena e de partilhar memórias de quem já anda na estrada há muitos anos.

Além disso, falou também sobre aquela que foi uma das experiências que marcou os portugueses durante o Estado de Emergência e da qual fez parte: o programa 'Como é Que o Bicho Mexe', de Bruno Nogueira.

Tudo começou com a M7. Anos depois, começou a trabalhar numa empresa onde era designer de moda... Na altura sentiu que precisava de ir mais longe a nível criativo e daí surgiu a Beatriz Gosta?

Não é isso. Eu trabalhava numa empresa, tinha parte criativa e parte técnica, era designer de moda. Paralelamente sempre tive projetos criativos, no rap, mas na altura não me estava a sentir com a inspiração certa, com força, porque fazer um álbum requer muita energia, disponibilidade, entrega total. Daí surgiu o projeto Beatriz Gosta, de eu contar histórias para uma câmara como se tivessem ocorrido no fim de semana e estivesse de ressaca no domingo... precisava ali de um rasgo. Se não sonhamos, se não criamos, morremos. É o que eu sinto.

Agora estou numa fase em que estou a ver qual é o passo a seguir

Entretanto já foram muitas as conquistas nestes últimos anos e já é difícil alguém não conhecer a Marta Bateira/Beatriz Gosta/M7. Sente que conseguiu reinventar-se ao máximo no que diz respeito à criatividade?

Reinventei-me muitas vezes, mas nunca ao máximo, nunca sabes que caminho é que vais seguir agora. Por exemplo, acho que agora estou numa fase em que estou a ver qual é o passo a seguir. Também na quarentena acabei por trabalhar em formatos que nunca tinha trabalhado. Fiz lives com convidados e acabei por espremer um sumo, trocar umas ideias... Tanto com o meu pai, que é economista, sobre economia, entre outras coisas, como também convidei o Herman José, o João Quadros, a Inês Aires Pereira, o José Castelo Branco, o Diogo Faro, várias pessoas... Experimentei esse registo como também experimentei o 'Como É Que O Bicho Mexe'. Foram coisas que acabaram por ter bastante repercussão.

Acredita que a quarentena acabou por trazer uma lufada de ar fresco e ajudou a conseguir identificar o próximo passo?

Não foi lufada de ar fresco. A mim, inconscientemente ou naturalmente, fez-me trabalhar em coisas que nunca tinha tempo de fazer. Na altura estava com o Canal Q, com o '5 Para a Meia-Noite', com outro que estava a gravar para a RTP e com dois espetáculos ao vivo... Ficares fechada em casa dá-te a disponibilidade para trabalhares em formatos que tinhas na gaveta, que tinhas vontade de pegar mas não tinhas tempo. Fazia lives sozinha com o público e respondia a cartas que me escreviam para o email, mas nunca tinha partilhado um live e comecei a sentir essa vontade. Acho que a quarentena deu um abalo na estrutura de toda a gente e um reavaliar que caminho é que seguimos, até porque a cultura está meia parada. Por isso é normal que pare e fique a pensar o que é que vou fazer agora.

Na altura da quarentena, do confinamento, o povo estava mesmo stressado, preocupado. Nunca vivemos uma coisa destas

Nas redes sociais, os diretos já eram usados há muito tempo, mas a quarentena veio reforçá-los? Estamos perante o nascer de novos rituais?

Durante a quarentena o povo alimentava-se muito de lives, como o live do Bruno que era religioso. Às 23h, o pessoal tinha um copo de vinho e precisava daquele aconchego, tinha aquilo como certo. As pessoas ficavam com uma calma, com uma paz por ter aquilo. E a mim também me diziam em relação aos meus lives, que os faziam rir e que estavam a acompanhá-los na quarentena. Precisavam dessa tranquilidade porque foram momentos mesmo [complicados]. Mas depois, quando as pessoas saíram do confinamento, também estavam com uma sede de estar com os amigos, a família e não ficaram tão grudados na Internet. Às nove da noite aproveitavam o jantar com a família. Mas na altura da quarentena, do confinamento, o povo estava mesmo stressado, preocupado. Nunca vivemos uma coisa destas. Estavam preocupados com a saúde, com a economia, as finanças... com tudo. E a incerteza do futuro... Não sabes nada, não sabes o que vai acontecer daqui a uma semana...

E como descreve esta experiência que viveu com o Bruno Nogueira? O que retira daquele 'programa' que acabou por ser um sucesso?

O engraçado de tudo é que ele [Bruno Nogueira] criou isto simplesmente para ajudar as pessoas. Não quis nada em troca, não deu entrevistas nem nada. Mas depois ganhou uma proporção gigantona porque era um consolo para as pessoas. Além de ter ficado muito feliz por fazer parte de um projeto com pessoas que admiro muito e gosto bastante, o projeto em si tem muito a ver comigo - uma coisa muito natural e ver que sumo se espreme dali, do momento, o ser espontâneo. E depois acabou por me trazer muitos seguidores, e isso agradeço ao Bruno. Há muitas pessoas que agora me seguem e vieram do Bruno, pessoas que nunca tinham ouvido falar na Beatriz Gosta.

Recuando ao início como M7, de que aventuras se lembra dos primeiros anos em que se integrou no mundo do rap, do hip-hop?

Posso dizer que a primeira vez que subi ao palco como M7, que foi por volta de 2003/2004, cantei o concerto inteiro de olhos fechados. Peripécias da estrada, da vida, há muitas, quem anda na estrada é que sabe. Tens muitos tempos em que estás à espera. Aquele rissol cansado, aquele doce típico da terra, aquela cervejola, apanhares uma moca lá na terra, depois só há um táxi na aldeia, acabas por ficar sem táxi e tens de apanhar uma boleia do pessoal que acabaste de conhecer... Estrada é isto, é freestyle também.

E acha que o rap foi o que a levou a deixar a timidez de lado e partilhar com o mundo aquilo em que acredita?

O rap trouxe muitas coisas: sentido crítico, lifestyle, ideologia, valores e princípios muito vincados. O rap tem muito isto, há a parte da intervenção. É uma forma de estar na vida - tu seres da cultura do hip-hop. Mas depois, ser rapper também me deu - além de na adolescência analisar todas aquelas letras com conteúdo - um caldo. Quando subi ao palco como Beatriz, por exemplo, não era novidade. Já sabia o que era estar em cima de um palco e ver aquela gente toda, a adrenalina... A primeira vez que subi ao palco não sabia gerir isso, agora já sei. Entro nervosa, com sentido de responsabilidade, mas já não é aquela coisa que te absorve.

O rap acaba por ser a sua maior paixão?

A Marta que está no rap não tem nada a ver com a Beatriz Gosta. Transforma-se, nem tenho de estar a fazer um esforço para separar as águas, a coisa é natural. É outro estado de espírito, é outra forma de comunicar.

Também a M7 nasceu noutro tempo...

Nasceu com outras motivações e outras necessidades pessoais. A Beatriz é uma coisa interventiva, mas no sentido de um feminismo. Uma mulher que em 2015 sentia necessidade de dar um pontapé na porta porque achava que se deveria falar de sexualidade abertamente e que a mulher também tinha o direito de falar de sexo como o homem falava com os amigos. Foi essa a necessidade de mudar mentalidades nesse sentido. A M7 já é capaz de falar de um desgosto de amor, de racismo... Abrange vários assuntos, mas não quer dizer que não tenha um toque do feminismo também e da sua sexualidade.

Só comecei a ter haters recentemente. Sempre tive muito amor e no geral não me posso queixar

Quais foram as primeiras reações quando saiu o primeiro episódio da personagem Beatriz Gosta em 2015?

Na altura foi mesmo inovador porque, primeiro ninguém comunicava da forma como eu comunico, nunca tinha visto assim um humor, diferente... Sotaque do norte, uma mulher a falar de sexo, os assuntos que eu abordava e o formato mesmo em si. Felizmente, os media e o público no geral perceberam automaticamente quando viram o projeto. Perceberam qual era a minha intenção. Era mesmo para entreter, para fazer rir. E também algumas pessoas já me conheciam como M7 e de acompanhar a Capicua.

E as reações na Internet também foram boas?

Muito boas, só comecei a ter haters recentemente. Sempre tive muito amor e no geral não me posso queixar. Sempre abordei assuntos fortes, mas o feedback foi sempre muito positivo, mesmo na rua, com as pessoas mais velhas... Nem me atacam tanto por dizer ordinarices, atacam-me mais por dizer termos brasileiros, angolanos, por inventar palavras. O povo acha que estou a assassinar a língua portuguesa de Camões. São racistas, xenófobos e por aí. E às vezes é aquele emigrante cansado e triste, azedo, que tem muita saudade da língua portuguesa, que foi lá para fora e fica naquela coisa a querer que não se altere a língua de cá. Já apanhei uns quantos assim.

E como responde a quem considera o seu humor excessivo?

Bloqueia-se ou, então, quando se sente que é uma crítica construtiva ou a pessoa está a dar uma opinião mas com leveza, argumento e explico, e até faço a pessoa mudar de ideia. Ainda no outro dia contei uma história para o fique em casa, uma história que tinha de ser relacionada com música, festivais... E contei uma coisa picante, uma história puxada, de um cogumelo alucinogénico da Holanda, e alguém veio ter comigo para me sensibilizar porque eu estava a incutir nos jovens a ideia das drogas e que eles depois iam ter overdoses e iam parar às drogas duras... E eu disse-lhe que não conhecia ninguém que esteja na heroína e que tenha overdoses que tenha começado com cogumelos da Holanda, mesmo. O cogumelo da Holanda é uma coisa isolada, uma experiência, não estou, de todo, a dizer às pessoas para consumirem cogumelos da Holanda.

Quem se mete nas drogas duras já está alertado e já sabe as consequências. Quem se mete ou tem uma família desestruturada, ou tem problemas na vida e quer estancá-los ou está muito inconsciente e irresponsável. E eu não brinco com drogas e não sou nada defensora ou apologista de drogas, de todo, mas também não sou fundamentalistas de que não se pode contar um babado intenso pontual de uma história.

São poucos os limites impostos pelo YouTube à nossa criatividade. No entanto, conseguiu chegar a várias vias do entretenimento, como ao Canal Q ou ao programa '5 Para a Meia-Noite'. Quando se 'expandiu', alguma vez sentiu que a sua criatividade nesses formatos era limitada?

Não, nunca ninguém me limitou. Soube agora que a Filomena Cautela foi embora, noutro dia disseram-me que houve um momento ao início, quando entrei para o '5 Para a Meia-Noite', que eles reavaliaram se a Beatriz Gosta era muito forte para a RTP, para o programa e se o povo entendia. Quando apresentas uma coisa nova, o povo tem tendência a resistir. 'Estranha e depois entranha'. A verdade é que no início, se calhar, os comentários no '5', às minhas peças, eram com muito ódio. O pessoal amava muito, mas depois iam para lá dizer 'quem é que é esta gaja'. Mas acho que o '5' conseguiu. Investiu e acabou por correr bem.

A Marta não é a Beatriz, no sentido em que a Beatriz está sempre muito alegre, muito disposta, muito disponível, sempre com uma energia muito incrível. A Marta nem sempre. A Marta às vezes está triste

Como caracteriza a Beatriz Gosta e a Marta Bateira e o que é que têm em comum?

A Marta não é a Beatriz, no sentido em que a Beatriz está sempre muito alegre, muito disposta, muito disponível, sempre com uma energia muito incrível. A Marta nem sempre. A Marta às vezes está triste, às vezes apetece-lhe ficar sozinha em casa e desligar o telefone, às vezes é mais reservada e não tem que estar sempre disponível, não está sempre em alta. Mas se tenho momentos de Beatriz em Marta? Tenho! A Marta é tudo e é mais. É Beatriz, M7, é muito mais... Não tenho crise de identidade. Chamam-me Beatriz a toda a hora, mas eu sei bem quem sou.

"Quero ser livre" é o seu modo de vida... Como caracteriza essa liberdade? O que é para si ser livre?

Ser livre é, por exemplo, trabalhar naquilo que gosto. É poder ser a minha verdade. Não me estar a condicionar por causa da expectativa ou do olhar do outro. É poder dizer o que penso - com consciência e saber estar. Houve alturas em que não, mas hoje sou privilegiada e trabalho no que gosto. Sou o que sou, conscientemente por opção. Caminhei num sentido porque quis. Sinto-me livre, sou uma pessoa que gosto, olho e gosto de mim. Mas houve alturas na minha vida que não, que não gostava muito de mim.

'Sem papas na línguas' é possivelmente a melhor expressão que a caracteriza. Diz sempre tudo o que pensa?

Não, não digo tudo o que penso. Às vezes dizer o que tu pensas magoa o outro e isso é escusado. Eu digo quando a ocasião obriga, quando é importante tu marcares posição. Não sou tonta nenhuma e não tenho que estar sempre a dizer tudo o que penso. Por acaso digo muito o que penso, falo muito sozinha, partilho muito com as pessoas íntimas. Se estou nervosa num programa digo às pessoas que estão comigo, não finjo. Acho que tu fingires o que sentes traz doença, então não quero fingir. Sou espontânea e nota-se se estou nervosa, feliz... Agora, não tens de estar a dizer uma coisa se não vai acrescentar nada.

Querer mudar o mundo foi uma missão que começou com a M7 e continuou com a Beatriz Gosta. O que mais gostava de mudar?

Acho que estes últimos tempos são muito difíceis porque estão muitos assuntos em cima da mesa. O racismo, ou, por exemplo, em Tróia estarem a construir em cima da área natural em prol de dinheiro e poder. O dinheiro compra mesmo as regras ambientais. Injustiças, preconceito, tudo me revolta muito. A homófobia... Todas estas coisas irritam-me e fazem-me, às vezes, tirar um bocado a fé na humanidade. O facto de o ser humano ser ganancioso, não se informar e opiniar à toa. Tu explicas determinadas coisas e ele informa-se pela rama, pela superfície. Depois argumenta como se estivesse informado e se soubesse do que está a falar e não tem nem curiosidade, nem se empenha em crescer e evoluir. Ou sentes a inquietação dentro de ti, de quereres mudar alguma coisa e ser essa a tua missão, ou então vives só para ti e para ganhar o teu dinheiro e teres as tuas férias no Algarve. Cada um faz o seu caminho.

O pobre é pobre porque quer, porque não trabalha, porque quer mamar do Estado o rendimento mínimo... É esse paleio que não aguento

O racismo é um assunto que sempre foi falado, mas nestes últimos meses ganhou mais força, especialmente depois do que aconteceu nos EUA, que acabou por chegar ao mundo inteiro...

O que se passa nos Estados Unidos passa-se no Brasil, em todo o lado. E em Portugal só quem não tem amigos negros é que vai dizer que não há racismo, porque vais a um supermercado e o segurança vai atrás de ti para ver se estas a roubar qualquer coisa. Eu estou com um grupo de amigos e as autoridades vão encostá-los ao carro para os revistar e a mim e aos meus amigos brancos não tocam... A polícia dá chapadas na cara e bate quando são negros e aos brancos não. Há variadíssimas coisas. As oportunidades não são as mesmas, nos cargos importantes não estão lá os negros. Ser protagonista de uma novela, aconteceu talvez uma vez na vida?

Essas coisas todas têm de mudar e não é achar que o negro, brasileiro ou o cigano é preguiçoso e não quer trabalhar ou que quer mamar do Estado. O pobre é pobre porque quer, porque não trabalha, porque quer mamar do Estado o rendimento mínimo... É esse paleio que não aguento. Se soubessem o que é rendimento mínimo, que são cento e tal euros. Não é estar a dizer que são os pobres que andam aí a meter o dinheiro ao bolso, são os ricos que andam a meter o dinheiro ao bolso e esse paleio de direita irrita-me completamente. E depois o povo reproduz. Não está informado, ouve falar e acha que faz sentido.

Isso cria povo contra o povo. Faz com que a direita cresça e, de repente, vá para ali aquele outro do Chega ganhar espaço, porque começa a pôr o povo a culpar as minorias e que elas é que são as culpadas de alguma coisa. Tudo isto faz com que a direita ganhe terreno e isto é muito perigoso e tem que se desconstruir muito, na Internet e na televisão.

Se dizes alguma expressão racista de forma inconsciente e alguém te acordou, então vamos evoluir. Mas as pessoas não querem evoluir, acham que agora não se pode dizer nada e que tudo é uma censura

Considera que esta mais recente onda contra o racismo vai fazer a diferença ou vai continuar a haver racismo o mundo?

Falou-se em vários lives na Internet em que é que nós falhámos na luta contra o racismo. Eu própria confessei que nos anos 90 fui 'black face', fui vestida de negra, com uma almofada no rabo e passei tinta preta na minha pele. Estou a dar a cara, a dizer que errei e que evolui. Agora sinto que há muita resistência em aprender, em não voltar a fazer... Se dizes alguma expressão racista de forma inconsciente e alguém te acordou, então vamos evoluir. Mas as pessoas não querem evoluir, acham que agora não se pode dizer nada e que tudo é uma censura. Não tem nada a ver com isso, tem a ver com o tu quereres ser uma pessoa melhor, só isso.

O 'black face' tem uma carga histórica pesada, os brancos pintavam a cara para ridicularizar os negros... E depois de toda a história, eles já sofreram o que sofreram, será que não dá para dar um jeito? Custa assim tanto? Não entendo isso. Eu sou branca, sou uma privilegiada, nunca me faltou nada e não estou com esse problema todo para evoluir. Fui chamada à atenção e aprendi. Com vergonha digo que me fantasiei, não tenho orgulho nenhum. Podia até esconder, mas acho que pode acrescentar ao outro. Acho que não basta um quadradinho preto no Instagram, tens que sentir mesmo que queres mudar o mundo. Não é acharmos que já fizemos a nossa parte no Instagram de anti-racismo... Tens que interiorizar, tens que sentir, vir de dentro para fora e não de fora para fora...

As mulheres são todas diferentes, porque é que na televisão só está um tipo de mulher?

Desde que é conhecida pelo público que sempre se assumiu como uma pessoa feminista. O que mais defende nesta causa e o que a deixa triste por ainda continuar a ser discutido?

O feminismo evoluiu bastante. Ganhou terreno e muito bem em Portugal, mas vais a outros sítios do mundo e aquilo é terrível. O que me fez muita confusão e ainda faz, sendo que agora está a mudar até na televisão, são as apresentadoras. Não há variedade. Tens de ter aquele estereótipo de modelo alta, bonitona com aquele cabelão, o corpo [definido], aquela forma de vestir... Eu sou baixinha, tenho cabelo curto, tatuagens, falo alto e tenho sotaque do norte e não quero que se distinga esse tipo de apresentadora ou entretenimento, só quero que haja um leque de mulheres diferentes. Tanto na televisão como no mundo. As mulheres são todas diferentes, porque é que na televisão só está um tipo de mulher? Pode haver mulher de unha de gel e cabelo comprido, ótimo. Só não quero é que, por ter cabelo curto, tatuagens, por falar como falo e fazer rap, por não ser a 'princesinha', que me exijam que seja a 'princesinha' e que me metam um carimbo de 'sapatona'. Só quero que os estereótipos caiam, que as pessoas abram a mente e deixem espaço para um leque de diversidade, que dêem oportunidades e que deixem a pessoa ser.

Um exemplo, o que falo com as minhas amigas, falo com os meus amigos e com o meu namorado. Falo das mesmas coisas e no mesmo tom. Para as outras pessoas pode haver e eu vou respeitar, mas para mim não há conversas de rapariga e de rapaz. A mulher não tem o mesmo ordenado que o homem... Faz o mesmo trabalho, às vezes até mais competente, e ganha menos.

Antes de sermos homens e mulheres somos seres humanos...

Claro! Podemos ter características físicas diferentes, mas a mim não me interessa. Quando dizem que a mulher não tem tanto jeito para o futebol, por exemplo. Primeiro, a mulher só joga futebol há meia dúzia de anos, e depois pode até, através das características físicas ou biológicas, não ter tanto jeito, mas a mim não me interessa marcar esse ponto. Interessa-me deixar em aberto, se a mulher gosta de motas, se gosta de se especializar em carros e é fascinada por carros, não tem de haver a separação de que isso é coisa de gajo. Não me interessa essa separação! Quero educar um filho ou uma filha [na base da igualdade]. Se ele quiser pintar as unhas, pinto. Se quer uma boneca, eu compro. E se a miúda quiser jogar futebol ou basquetebol, pode jogar. Não vou vestir a menina de cor de rosa e o menino de azul. Se tiver de vestir o menino de cor de rosa, visto. Acho que isso já devia ter caído por terra há muito tempo.

Dão uma percentagenzinha para a cultura quando a cultura é uma coisa muito importante. Acho que está muito ao nível da educação e da saúde porque cultura é vida

Qual o seu maior desejo para este 2020 que começou 'virado do avesso'?

Está tudo melindrado, economicamente e financeiramente as pessoas estão aflitas. Vai ser uma crise económica e não só. A cultura foi muito abalada... Por isso desejo que isto acabe, que nós nos consigamos reerguer e desejo coisas novas, boas e positivas para este ano. Toda a gente sente que este ano foi uma puxada de tapete. Toda a gente quer bloquear 2020. Nunca imaginei passar por isto. É preciso dar fé e esperança às pessoas. E acho que a cultura provou na quarentena, e sempre, que um livro, uma música, um live, um filme ou uma série, inspira, dá boa energia, acrescenta... Dão uma percentagenzinha para a cultura quando a cultura é uma coisa muito importante. Acho que está muito ao nível da educação e da saúde porque cultura é vida. Não chega só a vida, tu tens que criar, a arte é importante porque se não tu mirras.