Tem 29 anos e é do Algarve. "Uma coisa não tem nada a ver com outra", mas ambas ditam os principais traços de Dário Guerreiro, autor do canal de YouTube 'Môce dum Cabréste': Jovem com alma ‘old school’, insatisfeito por natureza, amante do Portimonense, olho crítico e espírito simples e descomplicado.

As leituras daquela que é a referência de humor em terras algarvias podem variar, mas a forma como conquistou o país é indiscutível. Começou a produzir vídeos para o YouTube em 2006 e quatro anos depois reapareceu na plataforma com o nome que o popularizou. Em 2012, um convite para fazer um 'stand-up' no Teatro Municipal de Portimão veio trazer-lhe a certeza de que estava no caminho indicado.

Desde então, o sucesso crescente fala por si. Já o próprio Dário, falou-nos um pouco de tudo numa conversa que ficou marcada pelas memórias de infância, a comédia em Portugal e, claro, as disparidades entre a região que o viu nascer e o resto do país.

Gosta de Lisboa?

Não é desagradável, mas não é a cidade dos meus sonhos. É muita gente. Se quisesse ter uma presença regular numa rádio ou televisão, teria de estar aqui. Mas, felizmente, a internet veio permitir que nem toda a gente tenha de o fazer. Óbvio que ainda há muita malta aliciada a sair do Interior - agora estou a referir-me ao Algarve como tal, mas sei que é Litoral. Mas hoje em dia diria que é mais por uma questão de apressar a sua independência do que propriamente pelo amor à cidade. Nunca tive esse romantismo, estudei na Universidade do Algarve. Não tive, primeiro do que tudo, porque sabia que não podia.

O Algarve não é tão pequeno como as pessoas acham que é. Vivo em Portimão, para mim estar em Faro, a 60 quilómetros de distância, já era longe

Em que medida?

Não tinha meios financeiros que me permitissem sair do Algarve. Portanto, nem sequer equacionei isso.

Primeiro estudou Cozinha, no Ensino Secundário, e depois licenciou-se em Ciências Editoriais e Documentais.

E estava feliz. O Algarve não é tão pequeno como as pessoas acham que é. Vivo em Portimão, para mim estar em Faro, a 60 quilómetros de distância, já era longe. Já me dava aquele efeito de estar fora. Beneficiei das políticas sociais: Fui bolseiro, tive acesso à residência de estudantes… De outra forma, tenho a certeza que não conseguia tirar o curso. Aliás, inscrevi-me e matriculei-me para fazer mestrado, em gestão cultural, mas porque o governo de José Sócrates cortou as bolsas para mestrados que não fossem integrados, tive de abdicar dos estudos. Hoje em dia isso revelou-se não ser assim tão grave, mas dá para entender até onde é que eu podia ir com o nível de vida que herdei.

Antes de mais, porquê o nome ‘Môce dum Cabréste’?

‘Môce dum Cabréste’ nasceu como nome do canal. Na altura, ninguém dava os seus nomes aos canais. Este, o atual, criei em 2010, mas comecei a fazer vídeos para o YouTube em 2006.

Nunca quis ser comediante. Olhava para a malta do ‘Levanta-te e Ri’ e tinha a certeza absoluta de que não era capaz de fazer aquiloQuando criou o primeiro canal de YouTube, tinha o objetivo que fosse um canal de comédia?

Não tinha piada, mas a intenção era essa. Na altura, o que estava a dar eram os Gato Fedorento e fomos todos muito influenciados por essa vibe. Éramos miúdos de 16, 17 anos, e decidimos criar um canal. Éramos quatro, mas não foi de forma alguma uma tentativa de nos colarmos aos Gato Fedorento, até porque o nosso humor era suposto ser ‘no sense’.

Sonha-se ser comediante ou não se foge ao talento?

Nunca quis ser comediante. Olhava para a malta do ‘Levanta-te e Ri’ e tinha a certeza absoluta de que não era capaz de fazer aquilo. Nunca equacionei fazer aquilo. Não tinha qualquer intenção comercial nos vídeos que fazia. Fazia porque tinha prazer naquilo. De 2006 a 2010 o YouTube começou a transformar-se na ferramenta que é hoje: em países grandes, como os Estados Unidos e o Brasil, começou a existir a ferramenta de monetizar vídeos e isso mudou o paradigma do YouTube. Ao usar a plataforma com uma intenção comercial, descobriu-se uma série de artistas. Em Portugal demorou mais, temos um mercado pequeno.

Foi um processo gradual, de um ano ou dois. Em 2012, convidaram-me do Teatro Municipal de Portimão para fazer 'stand-up'. Fiquei: ‘Pá, mas eu trabalho na Bershka’. Disseram-me que pagavam 200 euros, para mim era um balúrdio.

Para ter uma ideia, hoje em dia quando alguém vai fazer 'stand-up' pela primeira vez, vai experimentar. Vai a um sítio onde não é anunciado. Para perceber se gosta de estar em palco. As primeiras vezes as pessoas fazem para perceber se gostam. Fazem-se cinco, no máximo dez minutos - se se for muito maluco. Não tinha essa noção. A mim pediram-me 50 e eu não achei muito. Fiz uma hora e meia sem querer. As pessoas não foram embora.

Como recorda a preparação para esse espetáculo?

Estava nervoso, todo ‘borrado’, tive algumas 14 diarreias antes de subir a palco… Ainda hoje é assim. Mesmo com a experiência que fui ganhando, fico igualmente nervoso.

A motivação subconsciente de qualquer humorista é querermos ser ouvidos, a atenção e amor de toda a gente porque não o tivemos em crianças

É um rapaz tímido?

Sinto que sou falador se as pessoas estiverem dispostas a ouvir-me. Num ambiente em que me sinta deslocado, enquadro-me nos tímidos.

Em criança contava piadas para a família ou o sentido de humor foi surgindo aos poucos?

Para querer ter o ‘spotlight’ tem de vir qualquer coisa da infância. Acho que há sempre um défice de atenção na infância que, inconscientemente, nos leva a querer o foco em cima de nós. A motivação subconsciente de qualquer humorista é querermos ser ouvidos, a atenção e amor de toda a gente porque não o tivemos em crianças.

É uma necessidade de aprovação?

Sim, uma necessidade de aprovação inconsciente. Mas há-de haver aqui qualquer coisa, que Freud explica num livro qualquer que eu nunca vou ler, que diz que há uma justificação psicológica para tal. Provavelmente, não devo ter tido a atenção suficiente dos meus pais.

A minha família juntava-se uma vez por ano e eu fazia sempre teatros com os meus primos. Não sei se era tanto para a minha família ver, acho que era mais para nós vermos. Talvez uma motivação como: Vamos fazer, isto fica feito e um dia alguém vai querer ver isto porque nós somos geniais.

Considera que, se não fosse através do YouTube, se teria integrado igualmente no meio artístico?

Não sei o que teria acontecido. Se não me tivessem convidado para fazer 'stand-up', será que o convite surgiria mais tarde? Será que eu iria querer?

Se tivesse estado num ambiente hostil, provavelmente nunca mais quereria subir a um palco. A ‘vibe’ do público contribuiu para que quisesse continuar

Foi realmente com esse espetáculo, no Teatro Municipal de Portimão, que percebeu que queria fazer 'stand-up'?

Foi com esse espetáculo que eu pensei: ‘Se calhar…’. As pessoas estavam com uma atitude muito tolerante, perceberam que era a minha primeira vez. Se tivesse estado num ambiente hostil, provavelmente nunca mais quereria subir a um palco. A ‘vibe’ do público contribuiu para que quisesse continuar.

Desde o início que tem sido bastante acarinhado pelo público do Sul. O 'Môce Dum Cabréste' é considerado a referência de humor no Algarve.

Porque não há mais ninguém. Não é por eu ser o melhor. Até aparecer a Ana Arrebentinha, a referência de humor no Alentejo era o Serafim. Não me conforta esse estatuto.

Falamos em 'Môce Dum Cabréste' e associamos ao Portimonense, ao Algarve… É quase como uma bandeira.

Vivendo no Algarve vou sempre falar de coisas que estão à minha volta. Um dos meus últimos vídeos com mais visualizações foi sobre o estado da hotelaria no Algarve. As pessoas vão rever-se nas minhas palavras.

Nunca tive o objetivo de ser famoso. É óbvio que é fixe ser-se reconhecido, mas hoje em dia acho que é mais fixe ser-se reconhecido numa garantia de ter público do que por uma questão de ego

Para ter uma profissão que prescinde de um público, é obrigatório ser uma presença nas redes sociais?

Infelizmente, sim. É um meio que é uma droga, no sentido de ficarmos meio obcecados com os números. Nunca tive o objetivo de ser famoso. É óbvio que é fixe ser-se reconhecido, mas hoje em dia acho que é mais fixe ser-se reconhecido numa garantia de ter público do que por uma questão de ego. É mesmo porque preciso de ser reconhecido para conseguir vender bilhetes e manter a minha atividade económica. Não faço questão que as pessoas saibam onde é que eu estou, até porque o sucesso do humor vive muito da observação.

Que tipo de assuntos lhe dão verdadeiro prazer levar para palco?

Acho que sou egocêntrico, porque é o assunto que mais ninguém domina melhor do que eu. Acho que essa é a matéria prima da maior parte dos comediantes, por essa razão. O que mais falo em palco é sobre mim, o que vivo, sobre quem me rodeia, o que se traduz num humor mais escatológico.

Esse foco naquilo que o rodeia traduz-se, por exemplo, no último vídeo que publicou no YouTube, cujo tema é o desaparecimento de Madeleine McCann. A história está de novo a ‘assombrar’ o Algarve?

Não faria o vídeo se o documentário [da Netflix] não tivesse saído. Acho que não está a ‘assombrar’ o Algarve, está tudo igual. Sinceramente, acho que não muda grande merda. Mas eu não frequento assim tantos sítios públicos quanto isso. Se calhar fala-se disso e eu não sei.

Recebe muitas sugestões de vídeos ou temas vindas dos fãs?

Sim. Isso é um bom barómetro. É bom e é mau. Na maior parte das vezes não sigo essas sugestões. Porque se me estão a sugerir já sinto que é óbvio. Eu não quero fazer o óbvio. Mas por outro lado é ótimo para me ajudar a perceber o que o público procura. Por vezes, tenho de comprometer um bocadinho aquilo que eu quero fazer. Há uma divergência: O que eu quero fazer, não é o que as pessoas querem ver e isso vai ser uma das minhas maiores mágoas para sempre.

O que é que quer fazer?

Concretamente não sei. Mas gostava de fazer vídeos mais rebuscados, mais bem produzidos…

Em Portugal há abertura para o humor sem limites?

Há, pode é não haver público para isso. Depende da plataforma onde se for pôr isso. Talvez numa RTP… Num canal privado não porque os canais privados não apostam em humor. O humor é de apreciação tão subjetiva que não se podem dar ao luxo de não ganhar audiências.

Mas temos o exemplo do ‘Levanta-te e Ri’, que é emitido numa estação privada.

O ‘Levanta-te e Ri’ beneficia de uma coisa que está muito em voga hoje em dia que são os revivalismos, que começam com os ‘Revenge of the 90’s’ e os ‘reboot’ de filmes dos anos 90. Não foi só o ‘Levanta-te e Ri’ que voltou, o João Baião também está a fazer uma espécie de 'Big Show SIC' novamente. As televisões estão a ir buscar conteúdos que estavam a morrer há uns anos que estão a bombar agora, mais por nostalgia. Mas não estou a dizer que o ‘Levanta-te e Ri’ não tem qualidade. Estão a ir buscar comediantes muito bons, como é o meu caso.

Acompanha a comédia portuguesa?

Sim, é precisamente por isso que desenvolvi o meu sentido de humor. Não equacionei ser comediante, mas nunca equacionei parar de produzir comédia portuguesa. Sempre havia oferta de comédia no Algarve tentava não falhar um espetáculo. Nunca houve tanta oferta como hoje em dia, acho que se bateram recordes. Há mais de dez comediantes com uma digressão neste momento.

E a verdade é que há público para todos.

Sobretudo aqui em Lisboa, a cidade é tão grande que é fácil fazer dois ou três Tivolis. O mesmo não se reflete no resto do país, os meios financeiros não são os mesmos.

Considera que já conseguiu provar que a comédia não ‘vende’ apenas em Lisboa e no Porto. É fácil ser comediante no Algarve?

É porque a minha atividade não tem a ver com o território onde eu estou. Ser comediante no Algarve é o mesmo que ser comediante em Lisboa.

No Norte as pessoas já vão com a postura de que vai ser do caraças. Claro que estou a generalizar, é sempre perigoso [fazer estas observações]. Em Lisboa há um certo snobismo, não são tão efusivos

Isto porque chegou a afirmar que a cultura no Algarve era um pouco “precária”

Há menos oferta porque há menos procura. As condições de vida não são tão boas como em Lisboa. A principal indústria no Algarve é o turismo e no turismo as pessoas não folgam ao sábado e ao domingo como nos sítios convencionais. É muito complicado fazer essa gestão [da escolha dos dias dos espetáculos].

Este fim de semana irá atuar no Norte. Sente diferenças no público consoante a zona do país?

De um modo geral é parecido, mas em Lisboa - como é tão grande e as pessoas estão habituadas a estímulos - o público acaba por ter um nível de exigência diferente. Quase se sente que o público de Lisboa vai aos espetáculos com esta vibe: ‘Vá, paguei o bilhete, agora faz-me rir, cabrão’. No Norte as pessoas já vão com a postura de que vai ser do caraças. Claro que estou a generalizar, é sempre perigoso [fazer estas observações]. Em Lisboa há um certo snobismo, não são tão efusivos.

Há um certo estigma em que o público do Norte é mais recetivo. Concorda?

Sim, acho que no geral os comediantes defendem a teoria de que o público do Norte é diferente e por alguma razão o é. Acho que não se circunscreve ao momento em que estás em palco, há toda uma aura que culmina com o espetáculo. A forma como és tratado, como és recebido… E nisso não há ninguém que seja mais hospitaleiro que o público do Norte.

Um bom material de comédia reside - grosso modo - no que é ‘proibido’?

Às vezes é importante que as pessoas falem no que é proibido, para que deixe de o ser. Não devem existir temas proibidos.

Um bom tema de humor não é necessariamente um tema proibido. Ainda é mais interessante quando um tema não tem piada absolutamente nenhuma e o comediante consegue fazer com que tenha

Não há nenhum tema que recuse abordar nos espetáculos ou nos vídeos?

Não, pode é haver temas que eu ache que não consigo extrair grande piada daquilo. É incapacidade minha, não é incapacidade do tema. Um bom tema de humor não é necessariamente um tema proibido. Ainda é mais interessante quando um tema não tem piada absolutamente nenhuma e o comediante consegue fazer com que tenha. É mais fácil fazê-lo com temas proibidos porque durante décadas poucas pessoas ousaram fazê-lo.

Sente que é um exemplo para as gerações mais novas?

Diria que não. Posso ser uma referência, mas não sou a mais importante. Não estou na mesma posição, por exemplo, do que o Pedro Teixeira da Mota. Acho que as gerações mais novas vão olhar mais para ele. Acredito que eu seja uma referência, mas nunca vou passar aquela ´vibe’ de ídolo. Sempre fui o gajo que não saía, identificava-me mais com pessoas mais velhas. Mesmo em termos musicais, nunca ouvi o que está na moda, sempre fui mais um discípulo do rock. Isto para mostrar o quão desinteressante posso ser.

Tem amigos no meio da comédia?

Dou-me bem com toda a gente. Só conheci muitos deles tardiamente. Fazemos amigos, digo eu, numa fase mais precoce da vida. Nesse ponto de vista, se calhar não tenho amigos. Mas gosto de muitas dessas pessoas.

O meu medo não é que eles sejam bem sucedidos, é que não sobre nada para mim. Este é um medo que dito em voz alta soa a ridículo

São inspirações para si?

Mais do que inspirações são pessoas que me causam alguma frustração e tornam a minha autoestima muito mais delicada. Se são da minha geração e da minha idade, é inevitável que se façam comparações. O meu medo não é que eles sejam bem sucedidos, é que não sobre nada para mim. Este é um medo que dito em voz alta soa a ridículo.

É um meio de egos?

É um bocado. Há malta que: ‘Fizeste três Tivolis? Então vou fazer quatro. Foste ao Coliseu? Então vou ter de ir ao Altice Arena’. Há muito isto. Mas é uma competição que - enquanto ninguém se chatear a sério - é saudável.

É um meio sobretudo dominado por homens. Sente que há falta de mulheres na comédia?

Sinto que faz falta sempre mais pessoas. A vantagem das mulheres é que podem trazer ângulos que nós não conseguimos. Há uma lacuna no mercado precisamente por causa disso e que a Bumba Na Fofinha veio aproveitar de forma brilhante. Não há mulheres a falar de assuntos corriqueiros de mulheres. Eu não posso falar sobre como é ter o período, sobre como é fazer a depilação… Não posso falar desses assuntos que estão em aberto.

Teme que um dia deixe de ter piada?

É o meu maior medo: Acordar um dia e deixar de ter piada ou acordar sem sentido de observação. Mas essas inseguranças podem até ser um bom combustível.

Um jovem de 29 anos, do Algarve, que faz comédia como a sua principal atividade, que perspetivas tem para o futuro?

Acho que não pode ficar muito melhor do que isto. Tendo saúde mental e capacidade de continuar a observar as coisas e conseguir torná-las em humor, por consequência capitalizar público, fazer espetáculos e encher salas, e continuar a viver desta atividade é a melhor perspetiva que posso ter. Não ambiciono muito mais do que isto. O país é pequeno, a dada altura, não há muito mais que fazer. Ser bem sucedido nisto seria fazer isto até aos 60 anos sem ter grandes dificuldades financeiras. Eventualmente, juntar o suficiente para comprar uma casa e um carro. Não sou muito exigente. Se calhar é mau, mas não tenho aquela ambição desmedida de Herman nos anos 90 - como ter um iate. Só quero paz e amor e que a malta goste de mim.