Imagine o seguinte cenário: é dono de um animal e para fazer uma viagem de comboio até ao Norte do país é uma odisseia. As dificuldades e obstáculos aparecem no instante em que os termos ‘transportes’ e ‘animais de estimação’ passam a fazer parte da mesma frase. E o que muitos não sabem é que esta tem sido a realidade de Filipe Castro Matos desde 2016, época em que a Uva, uma cadela de raça labrador, passou a fazer parte da sua vida e que, devido à impossibilidade de utilizar veículo próprio nas deslocações regulares entre Lisboa-Porto e Porto-Lisboa, teve de optar por esta solução.
Cansado de travar esta batalha sozinho e numa tentativa de mudança, o portuense decidiu partilhar a sua história nas redes sociais e as reações não se fizeram esperar. No espaço de horas, histórias e relatos como o seu, vividos por diversos seguidores, multiplicaram-se na caixa de comentários e de mensagens.
“Eu decidi partilhar a história porque não foi uma surpresa e porque já tinha passado por essa experiência diversas vezes”, conta ao SAPO Lifestyle sobre as dificuldades que tem enfrentado ao longo dos últimos seis anos e que deram origem a um post publicado na sua página de Instagram no dia 14 de agosto. “Fui-me apercebendo, à medida que partilhava com amigos, familiares e pessoas próximas, que toda a gente ficava muito surpreendida de como é que isto era possível porque ninguém tinha conhecimento. Até mesmo pessoas com cães, mas que por viajarem de carro, não tinham noção destas dificuldades todas.”
Devido ao impacto que a sua história gerou online, o diretor de marketing decidiu avançar com a criação de uma petição pública pelo Direito à Mobilidade dos Animais de Estimação uma vez que esta “é, se calhar, das formas com mais impacto que um cidadão normal pode ter para tentar mudar alguma coisa.” Em pouco tempo conseguiu reunir mais de 9,500 assinaturas, tendo atingido o número de subscritores necessários para esta que seja apreciada em Plenário da Assembleia da República. Após seguir os procedimentos legais e ser alvo de apreciação, o objetivo final é que a legislação seja alterada e que isso se traduza no alívio de certas normas, um maior controlo sobre as regras em vigor e que as empresas de transporte sejam obrigadas a cumprir escrupulosamente aquilo que promovem.
“Eu acho que, por um lado, há algum aproveitamento de algumas marcas e empresas que basicamente seguem as tendências. E naturalmente vender cãezinhos e gatinhos vende então querem mostrar esse lado. […] O cão e o gato já não são olhados como animais que ficam em casa e que nós só alimentamos, como acontecia há 50 anos. Hoje em dia são parte da família e percebo que as empresas tentem também incluí-los, mas depois na prática não há essa inclusão”, explica.
Animais de estimação em transportes? Uma relação complicada
Coisas tão simples como apanhar um comboio ou um Transporte Individual e Remunerado de Passageiros em Veículos Descaracterizados a partir de Plataforma Eletrónica (TVDE) podem dar verdadeiras dores de cabeça a quem tem animais de estimação. Tal como Filipe Matos referiu na publicação que fez este mês no Instagram, a Comboios de Portugal (CP) exige que todos os animais de estimação se façam acompanhar de um bilhete especial que só pode ser adquirido numa bilheteira física, instantes antes da partida e sem qualquer tipo de desconto. Para além de terem de ser alvo de inspeção antes do embarque, devido à inexistência de locais apropriados para o efeito, os animais sãos obrigados a viajar no chão, junto aos pés do dono, ainda que não encerrados.
“Sempre que viajo com ou sem ela, não vejo mais cães. Sei que há pessoas que viajam, mas são muito poucos porque o filme é tão grande que há muita gente que acaba por não o fazer”, esclarece o jovem de 33 anos que recorre a este meio de transporte por necessidade e por falta de alternativas. Outra das suas dificuldades passa pelo trajeto Casa-Comboio e Comboio-Casa. Se o lançamento dos TVDE com um serviço específico para animais de estimação pareceu ser um alívio para muitos donos que não tinham outra maneira de transportar os seus amigos de quatro patas, a verdade é que isso não veio facilitar a vida ao jovem que há cerca de uma década trocou o Porto por Lisboa.
“Há dois/três anos lembro-me de viajar de TVDE com a Uva e nessa altura, como só havia a opção normal, eu ligava para o condutor a perguntar se a podia levar. Agora criaram o serviço Pet, e eu achava que ia passar esse passo, e parece que ficou ainda pior porque todos os condutores recusam e eu não consigo transportá-la”, refere sobre este serviço específico para animais publicitado por estas empresas e que, na prática, não funciona. “Agora os condutores ou cancelam imediatamente e uma pessoa tem de chamar vários [carros] e não consegue ou então [o condutor] chega, diz que não e vai-se embora. É uma perda de tempo para todos.”
Através das redes sociais teve conhecimento de outras histórias com contornos semelhantes à sua e que, em trajetos de curta ou longa duração, são confrontados com uma “experiência de recusa e cancelamentos persistentes” nos mais diversos meios de transportes. Seja em companhias aéreas, empresas rodoviárias e transportes fluviais, o desfecho nem sempre é positivo e as regras em vigor do desagrado dos passageiros.
Apesar de esta ser uma história marcada por muitas dificuldades, restrições e impedimentos, nem tudo é uma dor de cabeça quando se fala em transportes públicos. “O Metro de Lisboa é uma boa experiência porque, efetivamente, já andei muitas vezes com ela e nunca tive problemas”, afirma, congratulando o metropolitano da capital por não restringir a circulação de animais – que devem estar de açaime e trela – e esta poder ser feita de forma totalmente gratuita em toda a rede.
Por mais praias, espaços comerciais e hotéis onde os animais são bem-vindos
Mas as dificuldades sentidas pelo diretor de marketing não se ficam apenas pelo setor dos transportes. O planeamento das férias de verão é outro exemplo em que a dinâmica se complica sempre que equaciona levar a sua amiga de quatro patas para qualquer lado uma vez. Quer fique num hotel, num apartamento ou num Airbnb, as opções pet-friendly ainda são reduzidas. E Filipe Matos sabe bem do que fala.
“Eu já fiz este teste: começamos à procura e quando filtramos por ‘Aceita Pets’, de repente, a oferta diminuiu para um número muito reduzido de opções, o que é naturalmente limitador. Nas férias de verão também escolhemos praias a dedo, mas gostava de ter mais opções. Perto de Lisboa não existe nada e eu não consigo ir com ela”, relata.
Devido ao facto de já ter vivido no estrangeiro durante alguns anos e de ter contactado com outras realidades mais pet friendly, foi um abre olhos para aquilo que Portugal ainda tem para evoluir nesta matéria. Uma delas é a proibição excessiva e o facto de ainda se vedar o seu acesso a determinados locais, como é o caso de espaços comerciais ou restauração. “Já vivi em Itália e nos Estados Unidos e nenhum deles já tem, sequer, metade das regras que acontecem cá. No caso de espaços comerciais, se formos a Espanha ou Itália eles podem entrar em qualquer loja de roupa, podem entrar num restaurante e não há qualquer problema. Se se portarem mal são convidados a ir para o exterior,” elucida sobre este tipo de cultura mais inclusiva e amiga dos animais existente em outros países.
Apesar dos progressos que se têm feito nos últimos anos para uma maior consciencialização do papel, da importância e dos direitos dos animais, Filipe Matos acredita que ainda há um longo caminho a percorrer e que a principal mudança deve acontecer no mindset da sociedade portuguesa. "Eu acho que vai demorar muito, muito tempo a mudar, mas espero que isto seja uma pequena parte desta mudança", diz, explicando ser necessário uma maior compreensão das dificuldades daqueles que tem animais a seu cargo enfrentam diariamente e não se façam generalizações, especialmente face aos canídeos. “Há muito o preconceito de que o cão vai a algum sítio e vai sujar, morder, ladrar e estragar e não é necessariamente assim. Passa tudo por uma questão de educação.”
Mas que passos é que Portugal pode dar de forma a se tornar num país mais pet friendly? “A minha visão é que esta é uma daquelas situações em que o Estado pode, de certa forma, intervir e ajudar a levar-nos mais para o futuro, que já é o presente em outros países. E isto é criando leis e aliviando determinadas regras para, de facto, chegarmos lá”, colmata.
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