Daniel Hurst, autor de A Mulher do Médico (edição Singular) nasceu no noroeste da Inglaterra. “Uma parte do mundo famosa pelos seus comediantes, pastéis e clima terrível”, assim escreve o autor na nota biográfica que o apresenta no seu site. De acordo com o próprio, antes de enveredar na carreira de escritor, “foi empregado em vários papéis glamorosos, incluindo barman e administração de compras”. Hurst também se afirma como um viajante, “nalguns dos lugares mais exóticos do planeta, como Bolton, Preston e South London”.
Humor à parte, Daniel Hurst conta atualmente com um grupo leal e dedicado de leitores e, regularmente, tem vários livros no top 100 na categoria de thriller psicológico na Amazon. O seu título The Passengertornou-se, dentro do género thriller, o livro mais vendido no Reino Unido em outubro de 2021. O seu título mais vendido até ao momento é A Mulher do Médico (The Doctor's Wife no original).
No livro, o Dr. Drew Devlin julga-se excelente a guardar segredos. Porém, a sua mulher há muito que descobriu a verdade...“O meu marido é médico. É inteligente e encantador e todos confiam nele. Todos, menos eu. À primeira vista, parece que tenho tudo: o casamento perfeito, o marido perfeito, a vida perfeita. No entanto, a verdade é completamente diferente”, cogita a protagonista.
O Dr. Drew Devlin não é a figura respeitável que finge ser. O casal mudara-se para uma nova casa. Fê-lo com a necessidade de enterrar o passado. Para ambos, devia ter sido um recomeço. Porém, o Dr. Drew anda novamente a mentir. Está a usar o seu estatuto para conseguir aquilo que quer, doa a quem doer.
Só há um pormenor com o qual ele não contou: a sua mulher. “Ele não imagina o que o espera...”
De A Mulher do Médico, publicamos o excerto abaixo:
Capítulo Um
Fern
Um milhão de pensamentos passa-me pela cabeça quando o carro em que viajo como passageira para no amplo caminho de acesso à minha idílica casa nova. Para mim, o dia em que um adulto se muda para uma casa nova não é muito diferente do dia em que uma criança começa a estudar numa escola nova. Há um certo nervosismo e a preocupação de saber se se está a fazer a coisa certa. Sente-se uma dor surda de ansiedade no fundo do estômago, causada pelo arrependimento de deixar ficar velhos amigos para trás e a possibilidade de que talvez seja mais difícil fazer novos amigos neste novo ambiente. E, acima de tudo, há a inegável certeza de que, aconteça o que acontecer a seguir, a vida nunca mais será a mesma.
Como é que eu poderia descrever este novo lugar? Para começar, diria que é muito diferente da casa de onde me mudei, embora isso não seja necessariamente mau. Quer dizer, quem é que se pode queixar de se mudar para uma casa maior, não é? Mas o tamanho não é tudo na vida, como as mulheres gostam de relembrar aos homens, de maneira que fui sempre suficientemente inteligente para ver mais além e atentar nos pormenores.
Tecnicamente falando, esta propriedade é uma bela estrutura: um edifício de dois pisos caiado de branco, com quatro quartos, duas casas de banho, uma cozinha como sempre sonhei ter e o tipo de sala de jantar que é perfeita para receber convidados. E isto sem ter mencionado ainda a espaçosa sala de estar e o magnífico jardim das traseiras, que parece não ter fim. Mas por muito bom que seja tudo isso, o mais importante é aquilo que está à frente da casa, que é ainda mais impressionante do que o que há dentro ou atrás dela. Porque a propriedade não podia estar situada num local mais idílico. Construída junto à estrada logo em frente da praia e do mar, a casa tem vista para o Solway Firth, um braço de mar entre a Inglaterra e a Escócia que faz parte da fronteira entre os dois países. E que fronteira magnífica é. Num dia de bom tempo, como hoje e ontem quando vim inspecionar a propriedade, as vistas são incríveis: uma visão desimpedida ao longo de quilómetros junto à orla marítima e também em linha reta, o que significa que uma pessoa pode estar de pés plantados num país e ao mesmo tempo estar a olhar para outro.
É incrível poder ver a Escócia num dia claro, ou as «Bonnie Banks» (Em escocês, bonnie significa «atraente, belo, querido» e, portanto, Bonnie Banks seriam as «belas margens»), como lhe chamavam muitas pessoas no passado. Tudo isto pode soar muito atrativo e agradável, mas isto aqui é o Reino Unido, de maneira que falta saber como será em dias de mau tempo. Felizmente, ainda não passei por um dia assim aqui, mas tenho quase a certeza de que este lugar é bastante diferente quando o Sol está encoberto, com as nuvens envolvendo a paisagem e a areia na praia a ser salpicada por gotas de chuva gelada a desabar do céu.
Mas não é a perspetiva de tempo inclemente que me preocupa ao ter-me mudado para aqui, nem a propriedade em si, porque é realmente um lugar impressionante, onde qualquer pessoa sortuda gostaria de viver. Não, há outra razão para as reservas que sinto em relação ao que estou a fazer enquanto continuo sentada no carro a pensar neste novo futuro do qual concordei fazer parte, e a forma mais simples de descrever o meu estado de espírito neste momento é a seguinte:
Dividida por dentro.
Basta perguntar por aí, pois de certeza que há muitas pessoas que fui conhecendo ao longo dos anos que de bom grado se prestariam a descrever-me. Mas se tivesse de me descrever a mim própria, resumia-o em quatro palavras.
Uma rapariga da cidade.
É isso mesmo. Adoro a selva de betão. Os arranha-céus. Os cafés em cada esquina. Os bares e restaurantes que ficam abertos até altas horas da noite e os cafés que abrem de manhã cedo. Os centros comerciais e os parques. Os teatros acolhedores e os recintos enormes. A oferta de supermercados e a variedade de transportes públicos. E as pessoas, oh, tanta gente. Trabalhadores pendulares. Estudantes. Comerciantes. Empregados de bar. Empregados de mesa. Artistas de rua. Praticantes de jogging. Pessoas a passearem cães. Tudo a fervilhar de atividade e agitação, com sítios onde ir e pessoas para ver. Gente a acotovelar-se a bordo de comboios ou postando-se uns atrás dos outros numa fila para comprar um café.
Energia. Vivacidade. Vida.
Vivi sempre na cidade. Sobretudo em Manchester, que foi onde cresci e passei a maior parte da minha vida de adulta, apenas com um interregno de três anos enquanto frequentei a Universidade de York e um emprego que tive durante dois anos na maior cidade de Inglaterra, Londres. Essas experiências significam que não conheci outra coisa senão ruído e ação e cheiros estranhos a toda a hora e a possibilidade de encontrar qualquer sítio aberto para desfrutar de uma bebida, fosse às três da tarde ou às três da manhã; e embora algumas pessoas possam detestar isso, no meu caso simplesmente adoro.
Para mim, uma cidade não é só um enorme conjunto de edifícios; é, na verdade, um organismo vivo, constituído pelas pessoas que lhe chamam «lar», e eu sempre fui uma dessas pessoas.
Até hoje.
Agora já não sou mais uma habitante da cidade. Em vez disso, sou uma pessoa que tem de procurar consolo em espaços abertos, em silêncios prolongados e, acima de tudo, na solidão. Mudei-me de uma cidade com mais de dois milhões de habitantes para um lugar com apenas quinhentos residentes, e tenho quase a certeza de que esse número também inclui as ovelhas nas colinas circundantes.
Adeus, Manchester.
Olá, Arberness.
Disseram-me que a maior parte das pessoas que vive nesta aldeia tinha parentes que viveram aqui antes delas. Houve várias gerações das mesmas famílias que viveram aqui, e poucas foram as que deixaram a aldeia em busca de pastos maiores e mais movimentados, tendo preferido permanecer porque se orgulhavam da sua região remota e viam a beleza de viver num lugar menos apinhado de gente do que as cidades e vilas em redor. Mas alguns dos habitantes não nasceram aqui nem tinham qualquer ligação anterior à aldeia antes de se instalarem cá. Trata-se simplesmente de pessoas que fugiram dos grandes centros metropolitanos à procura de uma vida tranquila enquanto vão envelhecendo num lugar em que há seguramente sossego em abundância.
Não há qualquer dúvida quanto a isso.
Demora algum tempo até uma pessoa se acostumar.
– Se calhar devíamos sair e dar uma mão aos tipos da empresa de mudanças.
A voz do homem sentado ao meu lado no carro arranca-me bruscamente do meu transe e, quando me viro para ele, reparo que me está a sorrir. É um sorriso simpático. Um sorriso atraente. O mesmo tipo de sorriso que me encantou tantos anos atrás, quando o vi brilhar pela primeira vez na minha direção, e é o mesmo sorriso que lhe vi quando caminhava para o altar no meu vestido branco. Nessa altura, o seu sorriso era amplo, e certamente continua a sê-lo ainda hoje, mas nunca o vi tão largo como naquele dia, seis meses antes, em que concordei em deixar para trás a nossa vida antiga e mudar-me para este lugar remoto, para começar de novo com o homem com quem me casei.
Sim, esta mudança foi ideia do meu marido. Vou deixar isso bem claro agora, para o caso de tudo vir a dar para o torto em breve, o que é uma possibilidade bem real. É essa a verdade: mudarmo-nos para aqui, para o meio do nada, foi ideia e sugestão do Drew Devlin, ou Dr. Drew Devlin, como ele gosta de se apresentar às outras pessoas.
«Não andei aqueles anos todos na faculdade de medicina só para ser mais outro Drew qualquer», disse-me ele uma vez quando voltávamos para casa depois de um jantar festivo e lhe perguntei porque é que insistia em usar o seu título profissional fora do local de trabalho. «É importante incluir essa pequena palavra extra a anteceder o meu nome. Trabalhei muito para o conseguir e, quanto mais não seja, sempre serve para iniciar uma conversa.»
Não me dei ao trabalho de o contradizer relativamente a isso, embora tivesse implicado um pouco com ele por mera diversão. E também lhe fiz saber que não me importava se ele era o Dr. Drew, o dentista Drew ou mesmo o simples e aborrecido Drew, porque ele era o meu homem e estava orgulhosa dele, independentemente do trabalho que fizesse.
Mas embora eu não costumasse dizer ao meu marido o quanto apreciava o facto de ele ser um médico plenamente habilitado e em exercício de funções, porque o seu ego não precisava certamente de validação adicional, a verdade é que adoro o que ele faz para ganhar a vida. É uma profissão muito respeitada e muito importante, já para não falar que é bem paga, além de que é bastante conveniente sempre que tenho algum sintoma que possa precisar de uma rápida opinião avalizada.
Nunca preciso de esperar por uma consulta quando posso simplesmente levantar a T-shirt e perguntar ao homem ao meu lado na cama se o novo sinal que me apareceu pode vir a dar problemas. Pode não ser o meu gesto mais sexy, mas quando se está a chegar aos quarenta, como no meu caso, ser sexy está muito abaixo na lista de tarefas.
Porém, nem tudo é diversão quando se é a mulher de um médico. Porque a profissão de médico exige dedicação, diligência e, acima de tudo, a vontade de trabalhar longas horas para atender todos os pacientes que têm doenças e maleitas que requerem cuidados e atenção especiais. Simplesmente não é possível para um médico fazer o seu trabalho sem empenho e convicção. É tudo ou nada: ou se providencia grandes cuidados ou cuidado nenhum. E o Dr. Drew sempre se orgulhou de dar aos seus pacientes os melhores cuidados possíveis. O problema era que ele tinha demasiados pacientes irritantes, e foi daí que nasceu a ideia de se mudar da cidade e continuar a sua carreira num lugar um pouco mais calmo.
«Imagina só. Tendo menos pacientes para ver todos os dias, posso acabar de trabalhar às cinco da tarde, ou até mesmo mais cedo», disse-me o Drew quando me veio com essa ideia. «Não é o que sempre quiseste? Mais tempo juntos? Bem, aqui isso nunca vai ser possível. Mas se nos mudarmos, pode tornar-se realidade.»
Ainda me lembro da expressão na cara dele quando me dirigiu essas palavras – ou melhor, lembro-me daqueles seus olhos azuis penetrantes fixos nos meus, fazendo-me sentir como sempre me faziam sentir: uma pessoa especial. Ele teve sempre esse poder sobre mim, como suponho que todos os homens bem-parecidos têm sobre as mulheres, em que um simples olhar pode fazer derreter o coração e levá-lo assim a conseguir o que pretendia. O facto de ele exibir uma linguagem corporal relaxada também ajuda. Nunca se mostra rígido ou inseguro. Age como se estivesse completamente confiante do que diz, e quer-me parecer que é esse o caso na maior parte das vezes.
«Sabes bem que eu gostava que acabasses o trabalho mais cedo», concordara eu, pois preferia de longe ter o meu marido em casa a uma hora decente do que vê-lo entrar às sete ou às oito da noite, a resmungar acerca de uma série de cartas de referenciação em atraso e uma sala de espera apinhada. «Mas é um passo demasiado extremo mudarmo-nos para tão longe, não achas? Quer dizer, temos aqui tudo do que alguma vez pudéssemos precisar. Família, amigos, todos os nossos sítios preferidos. E o que é que teríamos lá?»
«Oh, não sei. Que tal paz? Tranquilidade. Ar fresco. Quilómetros de espaço aberto para descontrair. Longas caminhadas pela praia. Festas populares da aldeia. Fazer parte de uma comunidade real em vez de sermos mais uma estatística confinada numa zona sobrepovoada do país. E, mais importante ainda, pela primeira vez na minha vida, e no nosso casamento, um equilíbrio adequado entre o trabalho e a vida pessoal.»
Tive de dar o braço a torcer ao Drew. Ele tinha apresentado um argumento convincente sobre porque deveríamos pensar em mudar-nos. Mas ele teve de aperfeiçoar e refinar esse argumento durante vários dias até que eu começasse finalmente a aceitar a sua linha de pensamento.
«Vejo que encaras isto muito a sério», disse-lhe eu uma noite depois de ele chegar a casa novamente mal-humorado após mais um dia cansativo. «Sabes bem que tenho as minhas reservas a respeito disso. Mas se é mesmo o que queres, então, estou contigo. Aceito mudarmo-nos. Mas com uma condição. Temos de encontrar a casa perfeita. Se vou viver em nenhures, rodeada de mais nada a não ser ovelhas a balir e aldeões avariados da cabeça, quero pelo menos uma boa cozinha. Prometeste-me uma mesa de pequeno-almoço quando ficámos noivos e ainda estou para ver quando é que isso vai acontecer.»
A mesa de pequeno-almoço era apenas uma das muitas grandiosas ambições que eu acalentava desde que tinha iniciado uma relação séria com o Drew. Nos tempos iniciais do nosso romance, muitas vezes ficávamos deitados na cama durante horas a falar de todo o tipo de sonhos, alguns deles sensatos, outros um pouco mais loucos. Lugares que queríamos visitar. Carros que queríamos conduzir. O que queríamos fazer quando chegássemos à idade da reforma. É com agrado que digo que muitos desses sonhos se tornaram realidade. Mas, como sempre na vida, alguns deles ficaram pelo caminho.
Nunca vi o Drew tão feliz como na noite em que concordei em mudar-me de Manchester para Arberness, um lugar que ele escolheu, disse-me ele, porque já lá tinha estado um par de vezes ao voltar de viagens à Escócia com amigos, e aquele sítio sempre lhe tinha cativado a imaginação. Mas eu ainda não estava tão convencida como ele de que aquela minúscula aldeia era o melhor local para iniciarmos o capítulo seguinte das nossas vidas; contudo, assim que concordei, os planos para a mudança começaram a sério. A nossa casa foi posta à venda no mercado por um preço muito vantajoso, e entretanto apressámo-nos a procurar uma nova casa naquela aldeia. Só precisámos de um par de viagens até ao Norte para encontrarmos a casa que queríamos.
«É perfeita», garantiu-me o Drew antes mesmo de eu lhe ter sequer posto a vista em cima; mas assim que a vi, senti o mesmo. Como qualquer pessoa casada sabe, estar de acordo com algo é apenas metade da batalha, porém, neste caso não tivemos de discutir mais. A casa era perfeita. O tamanho, a localização, o preço. Cumpria todos os requisitos que tínhamos referido no primeiro contacto que tivemos com o agente imobiliário. E aqui estamos nós agora, com os homens da empresa de mudanças a carregarem as caixas com as nossas coisas para o interior da casa.
E assim, quando eu e o Drew saímos do carro, a coisa tornou-se oficial. Agora vivemos aqui. Já não na cidade, onde tudo era familiar e de fácil acesso, mas sim aqui, onde tudo é novo, disperso e cheira de maneira estranha, como se as minhas narinas não conseguissem perceber porque é que o ar é tão limpo e não cheio de fumos de escape.
Fiz a coisa certa ou cometi um erro? Vou gostar disto aqui ou vou acabar por me ressentir? Vou fazer novos amigos ou a minha única companhia durante a semana de trabalho será qualquer ovelha tresmalhada que vagueie junto ao muro ao fundo do nosso jardim? E será que me vou apaixonar pela vista da praia em frente à nossa casa, ou a areia vai começar a atormentar-me com o passar do tempo, fazendo-me ansiar pela sensação familiar do betão duro das ruas da cidade onde costumava caminhar com tanta confiança?
Acho que só o tempo o dirá. Mas quando entramos na nossa nova casa e pensamos em dar início à tarefa de desempacotar todas as caixas que já começam a acumular-se no corredor, sei que pelo menos uma coisa é bem certa.
O meu marido está muito, muito feliz por estar aqui.
Talvez um pouco demasiado feliz.
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