Este seu livro é uma reedição do título lançado em 2016. O que traz de novo?

Perante a necessidade de fazer-se mais uma edição do livro que estava quase esgotado, surgiu esta ideia de olhar de novo para ele e fazer uma edição revista. A edição original de O Livro de Magia das Mães tem já oito anos, fazia sentido revisitá-la e atualizá-la com o que é a evidência científica mais recente e o que de tanto mudou nos últimos anos em termos de recursos disponíveis para a parentalidade. Por outro lado, esta revisão permitiu-me ainda partilhar com os leitores a minha visão do amadurecimento do percurso do livro e dos seus temas, enriquecendo-o com essa partilha. Mas o objetivo nunca foi torná-lo um livro diferente, o espírito original da obra foi absolutamente preservado, como aliás tinha de ser.

Porque convida o leitor a ler o livro como um poema?

Porque não queria, como nunca quero, que os meus livros sejam lidos como manuais de instruções. Acredito verdadeiramente que o potencial de interferir negativamente na relação de uma mãe com um bebé é enorme quando nos dedicamos a dizer-lhe exatamente o que deve fazer com o seu bebé. O objetivo dos meus livros é sempre fomentar a observação, a confiança de cada mãe e pai para poderem tomar decisões, tendo em conta a realidade única de cada bebé e a ligação única que têm com ele. Ninguém no mundo conhece melhor aquele bebé, mesmo que os pais não acreditem nisso, é a verdade. Neste livro concretamente, porque é aquele em que faço partilhas mais pessoais e coloco também histórias muito bonitas de mães e bebés que acompanhei em todos estes anos, a proposta é mesmo que seja lido como um poema ou uma “mão estendida” para dar conforto, alento e inspiração nos momentos mais desafiantes que possam surgir. É um livro que pretende dar espaço para que a magia individual da relação e do amor entre nós e o nosso filho possa surgir e prosperar, daí também o seu título.

“À falta de bebés reais, a sociedade oferece-nos manuais de instruções. Estaremos verdadeiramente preparadas?”
“À falta de bebés reais, a sociedade oferece-nos manuais de instruções. Estaremos verdadeiramente preparadas?”

Sobre o livro a Constança também escreve: “este livro é como um colo de uma mãe”. Diria que o que lemos na obra é reconfortante e nos traz segurança?

Essa frase não é minha, mas sim de uma das leitoras que deixou a sua avaliação ao livro no site da Wook. O feedback ao livro deixa-me sempre muito feliz, mais ainda quando mostra que o grande objetivo do livro foi cumprido: o de trazer consolo, confiança e aconchego a cada mãe que o lê enquanto enfrenta o maravilhoso e desafiante caminho de cuidar e criar um bebé. Foi para isso que o escrevi e descreverem este livro como “o colo de uma mãe” é algo que me deixa verdadeiramente feliz.

O título do livro apresenta-nos a palavra “magia”. Contudo, logo na introdução lemos a frase “ser mãe é duro”. Como se articulam estas duas realidades?

Para mim a articulação é natural. Nada na vida é só uma coisa e, se tendemos a fugir da complexidade porque o nosso cérebro costuma gostar de conceitos claros, é impossível fugirmos da complexidade se quisermos ser honestos ao escrever sobre a maternidade. A magia que coloquei no título do livro é a magia que descobrimos no meio da adversidade, é a que vem como luz que passa na frincha de uma janela, é a de descobrirmos a nossa capacidade de nos ligarmos e relacionarmos e consolar o nosso bebé, os nossos filhos, mesmo que o façamos tantas vezes com medo de estar a falhar, de estar a fazer errado. Conto histórias neste livro de mulheres que acompanhei e que passaram momentos tão difíceis na sua descoberta enquanto mães e que ainda assim, entre esses momentos, conseguiram descobrir e fazer coisas incríveis consigo mesmas e com os seus bebés. É muito duro ser mãe, é um caminho que põe à prova a nossa confiança, o que achávamos ser certo, é exaustivo até do ponto de vista físico. Mas é também um caminho de incríveis descobertas. No fundo, acho que a verdadeira magia é a da beleza da relação, da capacidade, da confiança.

“À falta de bebés reais, a sociedade oferece-nos manuais de instruções" - Constança Cordeiro Ferreira
“À falta de bebés reais, a sociedade oferece-nos manuais de instruções" - Constança Cordeiro Ferreira
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Falar de maternidade é uma questão complexa, preencherá inúmeros volumes e páginas de Internet. Que critérios presidiram à seleção da informação que incluiu neste seu livro?

Não houve propriamente critérios. Sabia que queria escrever um livro sobre as mães, dirigido às mães, e muito assente no objetivo de que é absolutamente necessário o equilíbrio no atendimento das nossas próprias necessidades enquanto cuidamos das necessidades dos nossos filhos. Quando o escrevi só havia livros a ensinar aos pais o que fazer com os bebés, não havia um único que falasse da importância de os pais cuidarem de si mesmos enquanto o faziam. Nesse sentido, sabia que acabaria por incluir o que sentimos na gravidez, dos sinais de alerta para cuidarmos da nossa saúde física e mental, de sono, de amamentação, mas também de como é importante conseguirmos delegar e ter a ajuda de outros cuidadores nesta tarefa da criação humana. O livro está muito assente na partilha das minhas estratégias praticas a apoiar mães, pais e bebés ao longo de muitos anos, tem muita informação prática, mas está também muito assente no que nos diz a Antropologia, a própria Biologia, sobre o que é suposto ser a criação humana. E, como sempre que escrevo, assente em evidência científica que nesta edição revista é também atualizada, porque me proponho sempre a esse papel de divulgação de informação correta, também.

A Constança é crítica em relação ao endeusamento da maternidade. Porquê?

Porque as mães não são deusas, são mulheres. E as mulheres falham, não são perfeitas, estão cansadas, muitas vezes só querem sobreviver a mais um dia. Este endeusamento da maternidade é transversal a quase todas as sociedades e não se traduz nem em mais ajuda, nem em mais respeito para com as mulheres, apenas em mais pressão. Para além de tudo, as mulheres ainda sentem: ser mãe devia ser o mais maravilhoso da minha vida, em que é que estou a falhar para não me sentir assim? Lembra-me sempre a época vitoriana em que ser mãe era o ideal último da sociedade, mas ao mesmo tempo as mulheres pobres tinham de deixar os filhos pequenos em casa sozinhos, sem condições nenhumas e sendo que muitos não sobreviviam, tudo para ir fazer longos turnos nas fábricas. Muitas vezes, o endeusamento da maternidade está pejado de hipocrisia. Eu vejo tudo com mais naturalidade: ser mãe é duro, mas pode também ser maravilhoso. Eu sou mãe de três filhos, adoro ser mãe, e foi esse o meu desejo. Mas também me é perfeitamente natural entender que uma mulher não queira ter filhos, por exemplo.

Sobre Constança Cordeiro Ferreira

Constança Cordeiro Ferreira é Terapeuta de Bebés. Conhecida como a "fada dos bebés", trabalha com famílias desde 2008 e já ajudou milhares de mães e pais a compreenderem melhor os seus bebés e a superarem dificuldades no sono, amamentação, choro inconsolável, interpretação dos sinais do bebé e outros desafios da parentalidade.  A sua abordagem conjuga visões da antropologia, as descobertas das neurociências atuais e uma perspetiva instintiva da parentalidade, num profundo respeito pelo bebé e pela família.

Hoje, encontramos inúmeros podcasts, workshops, lives que alegam encaminhar a mulher no caminho da “mãe perfeita”. Concorda que tudo isto coloca pressão sobre as mulheres? O que traz de pernicioso?

Traz pressão, traz a ilusão de que é possível não falhar, traz uma ideia de que – se controlarmos todos os fatores – tudo vai correr bem. E isso é altamente pernicioso, arriscado até. Porque nunca é possível controlar tudo, nem os nossos filhos o querem. Falhar faz parte do processo. Nunca será possível controlar tudo. Nem tudo é assim tão importante, podemos dar 80% e guardar os outros 20 para nós. Winnicott [Donald Woods Winnicott, pediatra e psicanalista inglês] “fala da mãe suficientemente boa” e isso continua a ser absolutamente verdade e necessário. A antropologia mostra-nos que sobrevivemos enquanto espécie porque as mulheres souberam fazer uma boa gestão de recursos, não porque se esgotaram sem ficarem com mais nada para poderem manter-se de pé.

O seu livro é uma ferramenta de empoderamento das mulheres?

Tento sempre que o que escrevo contribua para o empoderamento das mulheres, mas também do homem enquanto pai. Precisamos desse empoderamento, dessa sensação de capacidade e dessa confiança em nós mesmos. Às cinco da manhã quando o bebé chora, somos nós que lá estamos.

Porque escreve que atualmente se profissionalizou quase todos os aspetos da parentalidade?

Porque se criaram respostas em jeito de manual de instruções para todos eles. E, se alguns aspetos da parentalidade são técnicos e podem ser ensinados, a maior parte deles são altamente individuais e a resposta certa vai passar pela observação e o conhecimento que temos de cada um dos nossos filhos. Não é algo que possa ser ensinado genericamente. Ao criarmos esta expetativa de “ensino” total da parentalidade estamos a limitar a importância da descoberta e do caminho individual, na verdade estamos a tornar tudo mais difícil. É preciso perceber também que esta “profissionalização” também vem de um movimento do mercado, tudo na parentalidade é hoje visto como oportunidades de mercado, criando-se necessidades que antes nem sequer existiam. É ótimo termos acesso a informação, principalmente se for boa informação, conteúdos que nos inspirem e que nos façam refletir. Principalmente sobre nós próprios. Mas eu acho importante dizer que no limite não era preciso saber mais do que quatro ou cinco coisas importantes para podermos ser mães. Eu escrevo livros e sou a primeira a dizer que não é preciso ler livros para sermos boas mães.

Também escreve que “é urgente recuperar o património partilhado de homens e mulheres que se ajudam uns aos outros na criação”. Em que momento se perdeu esta partilha e o que temos de fazer para a recuperar?
É fundamental sabermos isto: criar um mamífero humano até à independência é tão exaustivo que se hoje sobrevivemos à evolução foi porque o fizemos de forma coletiva. Sarah Blaffer Hrdy, uma antropóloga que estuda há décadas a parentalidade e que é uma das fontes que uso muito neste livro, descreve que para criar uma criança humana até à adolescência requer cerca de 13 milhoes de calorias maternas. É impensável fazê-lo sozinha, a criação humana é coletiva e é urgente pensá-la dessa maneira. Dicas em redes sociais ou livros não são braços, colos que se partilham ou comida feita para apoiar as mães depois de uma noite em claro. É preciso menos conversa e mais ajuda prática, mais a noção de que este – biologicamente- é um trabalho que precisa ser partilhado.

Refere a propósito do momento do parto em ambiente hospitalar que encontramos “um modelo que quer ajudar, mas que não confia nas mães”. Acrescenta mesmo que as infantiliza. Porquê?

Não me referia só especificamente ao parto hospitalar, mas a quase todos os aspetos que envolvem o relacionamento das instituições com as mães. Falo de escolas também por exemplo. É importante dizer que este livro foi escrito originalmente há oito anos e que felizmente nos últimos anos houve um grande progresso a este nível, também fruto de muito ativismo que tem vindo a ser feito. O plano de parto, por exemplo, que é um documento em que as mulheres e casais expressam as suas decisões informadas sobre o que consentem ou não durante o parto, normalizou-se e é hoje inclusivamente um documento que é recomendado pela própria DGS e já não é visto com a estranheza e animosidade que acontecia há uns anos. Mas também verdade que, se atualmente há um conhecimento maior sobre o que são os nossos direitos e acho que começamos a ter mães mais empoderadas, o excesso de informação e recomendações por exemplo nas redes sociais, continua a infantilizar as mães, tratando-as muitas vezes até como alguém que tem que ser ensinada em tudo, desde os sapatos que o bebé usa, até ao pormenor da marca da comida biológica, até ao número de minutos que o bebé tem que estar acordado. Enfim, continuamos a tratar as mulheres como se o potencial fosse de falharem em tudo. Como se estas questões que, na maior parte das vezes não teriam um impacto assim tão relevante, fossem questões de vida ou morte, quando não são.

Para terminar: que palavra melhor define ser-se mãe e porquê?

Ser mãe é duro, mas estamos preparadas. E é assim mesmo que começa o livro.