Fala sobre pão e as variedades de cereais como estamos habituados a ouvir enólogos e especialistas a falar sobre vinho e as suas castas, mas afirma divertir-se a amassar pão.

Estudou nas melhores escolas de cozinha na Suíça e trabalhou em restaurantes com três estrelas Michellin, como o The Fat Duck, em Londres. Quando regressou a Portugal para trabalhar no Vila Joya, restaurante em Albufeira também galardoado com duas das famosas estrelas, e fazer o mestrado em Ciências Gastronómicas, começou a juntar os ingredientes para abrir a primeira loja da Gleba, em dezembro de 2016, e resgatar a tradição do pão e dos seus cereais.

Hoje, já existem quatro lojas em Lisboa (Alcântara, Alvalade, Avenidas Novas e mais recentemente no Mercado de Campo de Ourique) e vários pontos de venda pelo país. O SAPO Lifestyle foi conhecer melhor este apaixonado por cereais, pão e sustentabilidade.

Como cresce este interesse pelo pão e pela sustentabilidade? 

Nos restaurantes em que trabalhei, notava-se cada vez mais esta consciência de consumir mais localmente, de apoiar os pequenos produtores e de criar uma relação de maior proximidade. Essa revolução chegou aos restaurantes e foi chegando ao pão. No The Fat Duck, em Inglaterra, estavam a desenvolver o próprio pão, com farinhas locais moídas em mós de pedra, com processos de fermentação longos e naturais. Já fazia pão em casa e comecei a intensificar a minha prática e obsessão por pão. Entretanto, quando voltei para Portugal, surgiu-me a ideia de abrir uma padaria diferente.

Temos uma cultura maravilhosa de pão, receitas ótimas, mas fui constatando que toda essa cultura estava a ser mal representada e negligenciada.

Há bons padeiros e padarias, mas com as pessoas a comprarem pão nos supermercados, com muitas das padarias tradicionais a terem de aldrabar um bocado para terem preços competitivos, o pão foi perdendo qualidade.

Eu vi aqui uma oportunidade de fazer uma padaria diferente, mas para mim só fazia sentido com cereais portugueses, com a ligação aos agricultores e aliada à parte da sustentabilidade.

Rapidamente, cheguei à conclusão de que não se cultivam cereais para pão em Portugal. Somos autossuficientes em arroz carolino, por exemplo, cultiva-se muitos cereais estrangeiros para alimentação animal, mas no que diz respeito a cereais panificáveis, sobretudo trigo, não se cultiva assim tanto. Foi muito difícil encontrar o primeiro agricultor que cultivasse trigo. Depois, o primeiro trouxe o segundo e terceiro e as coisas foram-se construindo.

Porque é tão importante essa produção de trigo nacional para a sustentabilidade? 

É importante dizer que o trabalho da Gleba é transformar cereais e que trabalhamos exclusivamente com agricultores portugueses. Isto é muito revolucionário.

Portugal importa 99% dos cereais que transforma. A maior parte dos cereais panificáveis em Portugal são produzidos noutros países e logo aí temos uma enorme pegada ecológica associada. 

Nós usamos apenas cereais cultivados no nosso país, grande parte no Alentejo, a menos de 200 quilómetros das nossas lojas. Além da proximidade, temos também uma relação muito próxima e pessoal com os agricultores.

Por outro lado, a forma como os nossos cereais são cultivados também é muito importante e garantimos que os agricultores têm práticas agrícolas responsáveis. Temos a sorte de trabalhar com agricultores que cultivam em modo biológico ou de produção integrada. É discutível qual é o método mais sustentável, a maior parte das pessoas poderia dizer que seria o biológico, mas também poderia responder que depende. O biológico tem mais restrições em relação aos produtos usados, mas em anos mais difíceis, com mais doenças e pragas, é preciso usar mais desses produtos e isso pode ter desvantagens. Portanto, acredito que faz sentido esta aposta nos dois meios mais sustentáveis.

Temos a sorte de viver num país quente, em que a presença de doenças, nomeadamente no Alentejo, é muito inferior ao que acontece em países mais húmidos.

No Alentejo, temos condições de produzir cereais de alta qualidade de forma sustentável. Os verões quentes e o clima seco permitem que na altura das colheitas os cereais sequem ao sol e ficam prontos a serem armazenados.

Noutros países, há necessidade de secar os cereais em secadores industriais, que gastam imensa energia, e funcionam muitas vezes com combustíveis fósseis.

E quais são as variedades de cereais que usam e porquê essa escolha?  

Escolhemos variedades adaptadas ao local. Por exemplo, não faz sentido cultivar no Alentejo uma variedade que seja altamente exigente em termos de água. Temos outras culturas que estão muito na moda e são muito lucrativas, como o amendoal ou o olival superintensivos mas que são muito exigentes em termos hídricos.

Usamos variedades portuguesas. Quando começamos quase não se cultivavam variedades portuguesas e agora felizmente cultivamos o trigo roxo – é uma variedade que foi desenvolvida no Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária (INIAV), considerando o clima e as exigências locais e que foi desenvolvida no e para o Alentejo.

Como foi a procura pelos agricultores? Já havia essa produção ou começaram a trabalhar em conjunto?

Trabalhamos com alguns agricultores que não cultivavam cereais e que agora o fazem porque veem uma mais-valia e a valorização desse trabalho. Por outro lado, também trabalhamos com agricultores que já tinham uma notável experiência no cultivo dos cereais.

Estamos acompanhados por agrónomos que fazem o acompanhamento de grande parte das nossas searas, garantindo que sejam cultivadas da forma o mais sustentável possível.

Este conceito de sustentabilidade parece recente, mas ao mesmo tempo usa práticas bastante ancestrais. Como é a reação dos agricultores mais tradicionais a estes novos termos? 

Alguns agricultores tiveram de alterar uma série de práticas de modo a mudar os seus modos de produção, mas há muitos agricultores que já tinham essa consciência ambiental.

Muitas vezes são agricultores que estão ali há muitas gerações e são famílias que veem o impacto a longo termo das suas boas e más decisões. E quando falamos de solos e de sustentabilidade estamos a falar de questões que têm impacto daqui a muitos anos.

Mesmo quando falamos de trigo, estamos a falar de um ano inteiro de trabalho. Desde que está na terra são oito meses de babysitting constante.

Há pouco falávamos da falta de cereais nacionais para fazer os pães tradicionais. Com uma cultura à volta do pão tão forte, quem compra pão tem essa noção? 

Não é raro um português dizer que temos o melhor pão do mundo e de facto temos bom pão e uma ótima tradição.

Acho no mínimo discutível que se possa chamar pão de Mafra ou pão alentejano a pão feito com cereais da Polónia ou da China.

As receitas evoluíram a partir dos cereais que existiam na região. Não fazemos pão sem cereais e também não fazemos um determinado tipo de pão com um cereal que não existe na região. Ao longo da história o pão alentejano era feito com os cereais disponíveis na região, que tinham grandes particularidades. O facto de importar cereais de um país que não tem uma cultura de pão minimamente comparável com a nossa descaracteriza o produto.

Seria impensável fazer-se um vinho do Douro com uvas da Polónia.

Como continua a existir o pão de Rio Maior ou o de Mafra, etc., acho que as pessoas não têm essa consciência. Em muitas aldeias chamava-se aos cereais pão e muitos dizem ainda que cultivam o pão. É que o pão é feito apenas de cereais, água e sal.

E como se fazem os pães na Gleba? 

Começaram por se basear em receitas ancestrais. Usamos fermento natural e essa é a forma ancestral de o fazer – apenas farinha e água, que em certas condições começa a fermentar naturalmente. Esta fermentação é muito mais complexa e ganha aromas únicos que o pão fermentado de forma convencional não tem.

Diogo Amorim

Nutricionalmente, há uma degradação do glúten e faz com que o pão seja mais fácil de digerir. Há pessoas que não consumiam pão há dez anos e agora comem o nosso.

Também introduzimos coisas novas, por exemplo, o processo de amassadura é feito em amassadeiras mecânicas, porque amassar o pão todo o dia à mão não faz sentido para os funcionários. É fantástico e eu adoro fazê-lo em casa aos fins de semana com os meus filhos, mas não é viável a nível profissional. Também para enfornar temos soluções mais ergonómicas. É importante realçar que não usamos a tecnologia para aldrabar o processo de produção do pão ou para o tornar mais rápido ou mais barato, queremos um pão autêntico, verdadeiro.

Usamos apenas cereais, água, sal marinho e fermento natural. É a receita de há seis mil anos, em que o pão é cozido em fornos de pedra e isso mantém-se. Usamos a tecnologia para produzir com a eficiência que se exige no século XXI.

Depois, há uma certa personalização nas nossas receitas, são únicas e a minha inspiração vem do que os agricultores dão. Um exemplo muito prático: há milhares de variedades de trigo e nós temos de fazer o melhor pão possível a partir daquele cereal fantástico. Há cereais que absorvem mais água, outros mais elásticos, outros que deixam a massa mais quebradiça e essa diversidade tem de ser respeitada.

Além da preocupação com a origem e a forma de produção dos cereais, na padaria há outros critérios em que se procura a sustentabilidade? Como gerem o desperdício, por exemplo? 

As pessoas querem um produto fresco. Temos a sorte de ter um produto que tem uma capacidade de conservação fantástica – dura uma semana, é um pão à antiga, mas claro que não o vendemos com uma semana, vendemos pão do dia em que foi cozido. Queremos vender ainda mornos. Portanto, as pessoas querem um produto fresco e nós correspondemos, mas isso faz com que haja desperdício.

Às vezes pode faltar pão e às vezes sobra e é muito importante a responsabilidade relativamente ao pão que sobra. O desperdício da Gleba é zero.

Não deitamos pão ao lixo, de todo. Temos um projeto de fazer pão ralado com pão de sobra ou tostas. Além disso, doamos o pão que sobra diariamente a instituições de solidariedade. Diariamente, vêm recolher pão à Gleba. Se houver algum dia em que as instituições que trabalham connosco não conseguem absorver a quantidade de pão que temos de desperdício, trabalhamos também com produtores de animais e o pão é vendido para alimentação animal e é reintegrado neste ciclo.

Quais são as expectativas para o futuro da padaria? 

Neste momento, temos quatro lojas e o nosso objetivo é democratizar o pão artesanal em todo o seu valor, histórico, cultural, nutricional.

Diogo Amorim

É um facto que o pão que fazemos são pagos acima do valor, há um processo natural, demora um dia a fazer. É o produto artesanal e ligeiramente mais caro do que o pão dos supermercados, mas vale claramente o preço e é essa a consciência que queremos criar nas pessoas. Também sabemos que isso significa tornar o nosso pão mais conveniente e acessível. Temos a loja online e entregamos em todo o país.

Como padeiro, como é que olha para o interesse sobre o pão na pandemia, principalmente durante o primeiro confinamento geral? 

Eu acho que é uma excelente atividade e trouxe maior consciência sobre o processo. Fico muito contente por as pessoas fazerem o seu próprio pão. Eu também já fiz o meu.

A Gleba na altura da pandemia lançou a linha de farinhas, porque em Portugal não há boas opções no que diz respeito a farinhas a partir de cereais portugueses e moídas em mós de pedra. Acho que havia essa lacuna e tem resultado bem. De vez em quando, também abro um saco de farinha e faço pão em casa porque é superdivertido.