“Foram identificados traficantes suspeitos de cerca de 150 nacionalidades, ilustrando o facto de que o crime contra a vida selvagem é verdadeiramente uma questão global”, diz-se no relatório, que foi hoje apresentado em Viena, na Áustria, e que foi elaborado pelo Gabinete das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, na sigla original).

Quatro anos após o primeiro relatório da ONU sobre crimes contra a vida selvagem, afirma a organização que o tema tem aumentado de importância na agenda política e na opinião pública “à medida que se torna claro que o crime contra a vida selvagem tem implicações negativas para as alterações climáticas, preservação da biodiversidade, segurança e saúde pública”.

Os autores do documento lembram por exemplo que a pandemia de covid-19 tem mostrado que o crime contra a vida selvagem “é uma ameaça não só para o ambiente e biodiversidade como para a saúde humana, o desenvolvimento económico e a segurança”.

Alerta a ONU que as doenças zoonóticas (causadas por agentes patogénicos que se transmitem de animais para humanos) “representam 75% de todas as doenças infecciosas emergentes”.

E explica que o tráfico de animais, como pangolins, aves, tartarugas, tigres ou ursos, e os produtos que deles resultam para consumo humano, não passa por qualquer controlo higiénico e sanitário, e por isso representa riscos ainda maiores de infeção.

A utilização, consumo e comércio de espécies da fauna selvagem deve ser avaliada cientificamente e só deixando de se traficar animais se pode ajudar a prevenir futuras situações como a atual pandemia de covid-19, avisa a ONU.

No relatório admite-se que há hoje mais controlo dos mercados de fauna e flora selvagens, nomeadamente por regras mais apertadas da Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Fauna e da Flora Silvestres Ameaçadas de Extinção (CITES), que estabelece regras para o comércio de mais de 35.000 espécies protegidas e exige vigilância por parte dos Estados. Mas há milhões de espécies não listadas pela CITES que podem ser ilegalmente exploradas e comercializadas, além de que a CITES não controla os mercados domésticos, adverte a ONU.

De acordo com os dados agora divulgados no relatório, entre 1999 e 2018 foram apreendidas quase 6.000 espécies, de mamíferos a répteis, corais, aves ou peixes.

A ONU salienta a complexidade deste comércio, que vai mudando ao longo dos tempos, que tem objetivos diferentes até para o mesmo animal (uma serpente pitão pode ser animal de estimação, pode ser para comer ou pode ser para se aproveitar a pele), e que evolui. Até 2013 havia muito tráfico de pau-rosa, mas em 2018 tinha diminuído, sobressaindo então o tráfico de rinocerontes e pangolins.

E depois é um comércio que pode ser “altamente especializado”, que aproveita lacunas na lei e legislações permissivas, que é flexível e que por vezes se mistura com o comércio legal. Mas a verdade, diz a ONU, é que não há um comércio legal para chifres de rinocerontes nem para produtos de pangolins, mas “volumes crescentes” destes produtos são apreendidos todos os anos.

No extenso relatório a ONU traça tendências de tráfico de produtos como pau-rosa, marfim e corno de rinoceronte (em queda), de pangolins (apreensões de escamas de pangolins aumentaram 10 vezes de 2014 para 2018), de répteis (apreensões também aumentaram), de grandes felinos (todas as partes do tigre são comercializadas, especialmente para medicina tradicional), e de enguias, o chamado meixão em Portugal, cujo consumo na Ásia está a provocar forte pressão nas espécies.

Afirmando que “os crimes contra a vida selvagem envolvendo grupos criminosos organizados são crimes graves” e que nenhum país lhes escapa, seja como fonte, de trânsito ou de destino, a ONU diz que todos os países têm um papel na prevenção. E identifica a Nigéria como um dos locais importantes no tráfico de marfim, corno de rinoceronte, pangolim e pau-rosa, com o Vietname a emergir como país de destino de marfim e de pangolins.

Depois alerta ainda para os vários níveis de corrupção que envolvem este tipo de crimes, para a necessidade de aplicar as legislações, e para a também necessidade de cooperação, formação e de investigação dos crimes, muitos deles praticados hoje através da internet. Sem esquecer, acrescenta, que é necessário envolver as comunidades locais na luta contra o tráfico, e reduzir a procura deste tipo de fauna e flora.