Artur Bordalo, para os mais próximos, Bordalo II para todos nós. Começou a pintar em criança, ao lado do avô, o pintor Artur Real Bordalo. Aos 11 anos já andava com latas de spray a pintar paredes. Na altura sem nenhum propósito específico. Frequentou o curso de pintura na Academia de Belas Artes, em Lisboa, mas não o terminou. “Mandaram-me embora por falta de aproveitamento”, conta descontraído sob o olhar atento dos jovens mestrandos da Escola Superior de Educação de Lisboa, e não fossem os alunos seguirem-lhe os passos, adiantou de seguida. “Mas aprendi muita coisa quando passei por lá”.

Relembra que tal como a Arte, também a Educação é um pilar da democracia e por isso todos os presentes têm de certa forma uma responsabilidade acrescida. “Se as pessoas não forem instruídas, não forem educadas, não tiverem noções básicas e sensibilidade, as coisas não funcionam”.

Quando ainda era apenas um puto com uma lata de spray não pensava em fazer o que faz hoje, mas os animais sempre o fascinaram. “Sempre tive interesse, desde pequenino, pela bicharada, sempre cresci com gatos, com cães, sempre gostei dos bichos, fui fascinado até pelos dinossauros. O fato de não haver dinossauros pra mim era uma coisa estranha, porque via os bonecos nos livros. E questionava-me muito por que é que esses animais já não existiam”, conta ao SAPO Lifestyle.

O questionamento sempre fez parte da sua vida e foi na extinção dos animais que encontrou a sua mensagem. “Lembro-me perfeitamente da primeira vez que comecei a usá-los. Fazia interpretações das mesmas paisagens que o meu avô fazia, só que aquilo parecia-me um bocado vazio. E houve uma peça em que eu me lembrei ‘e se eu pusesse aqui duas personagens?’. Era um acidente de carro e meti um rato com ar de maluco a conduzir, o outro a voar e um carro acidentado. Chamei-lhe ‘Crazy driver”, conta-nos.

A partir daqui os animais passaram a ser as personagens da sua crítica social. “Imagina: fazia a Torre de Belém, algo que o meu avô também faria, mas depois punha lá os camones a serem roubados por um carteirista, por exemplo. Comecei a criar algum humor, as peças começaram a ser sarcásticas e esse foi o momento em que eu percebi que havia a possibilidade de usar o meu espírito crítico nas peças”, explica.

Dos lixos se fizeram bichos

O projeto mais conhecido do artista é o “Big Trash Animals”, uma coleção de representações de animais com grandes dimensões construídas maioritariamente com lixo. A ideia é provocar uma reflexão sobre os hábitos de consumo da sociedade. “Nós humanos achamos que quando estragamos o habitat dos bichos é problema dos bichos, mas obviamente que aquilo que destrói a natureza, também nos destrói a nós”, alerta.

LUSA

No seu estúdio, um armazém em Lisboa, Bordalo tem um stock de materiais, o chamado lixo. Mais de 70% são plásticos de alta densidade, como ecopontos e caixotes do lixo em fim de vida, mas também utiliza chapas, pneus e para-choques que recolhe na rua, terrenos baldios, oficinas ou centros de reciclagem. “O que é o lixo? Porque é que este plástico estava no fim de vida? Estava mesmo no fim de vida? Afinal eu usei-o. Se eu o usei, não estava no fim de vida”, diz. Esta é a principal reflexão que nos deixa. “Basicamente começámos a utilizar os materiais que ajudam na contaminação e que vão destruir os habitats, a natureza e os animais para representar retratos e imagens dessas mesmas vítimas: os bichos”, explica.

Com o conceito pensado e o animal idealizado, já é fácil para o artista construir mentalmente a peça de arte. Os capacetes de plástico invariavelmente são usados para fazer os olhos dos bichos, mangueiras para os contornos ou para-choques para as bochechas. “Depois vai-se criando layers por cima de layers e juntando umas a seguir às outras para criar as texturas e os relevos”, esclarece.

“Para quem quer ter filhos e netos, acho que está na altura de começar a pensar que, se vão deixar cá uma geração, não lhes deixem o quarto por varrer e desarrumado”

Desde 2012, Bordalo II já criou mais de uma centena de esculturas de animais, com mais de cem toneladas de material reutilizado. Quem viajar pelo mundo pode deparar-se com as diversas espécies bordalianas tais como os ursos polares em França, o orangotango na Califórnia, o leão em Las Vegas, a onça em São Paulo, o esquilo na Irlanda, os papagaios no México, a baleia na Polinésia Francesa, o elefante na Tailândia. Entre muitos, muitos mais.

Quem ficar por Portugal, tem talvez o mais icónico, o gigante do Lince Ibérico, no Parque das Nações, em Lisboa, mas também pode ver um polvo gigante na Costa da Caparica, uma coruja em Coimbra, uma cegonha em Oliveira do Bairro, uma cabeça de burro no Montijo, alforrecas no Barreiro, um cagarro no Corvo ou ainda raposas, chimpanzés, ursos ou rinocerontes em Lisboa.

Altruísta na forma de pensar, Bordalo II rejeita viver numa sociedade onde a sustentabilidade não esteja na ordem do dia. “Para quem quer ter filhos e netos, acho que está na altura de começar a pensar que, se vão deixar cá uma geração, não lhes deixem o quarto por varrer e desarrumado”, diz numa tentativa de arrumar a cabeça de quem o ouve.

“Chateia-me muito o egoísmo, cada um no seu casulo”

Contudo, as questões ambientais não são as únicas preocupações do artista que tem também trabalhado muito na intervenção urbana para as questões sociais com os chamados provoc. Bordalo confessa que estes são os seus trabalhos preferidos e mesmo sem descrições ou audioguias a sua mensagem chega ao destino. “Eu acho que o espaço público é o espaço mais fácil que conseguimos para passar a mensagem”.

Nesta série de trabalhos mais provocativos, Bordalo interage com o mobiliário urbano para abordar uma pluralidade de assuntos que podem ir desde a poluição, exploração do corpo da mulher, violência policial, regimes ditatoriais, racismo, machismo e xenofobia ou a guerra.

Com o coração ao alto e a mente a fervilhar, Bordalo e a sua equipa, composta por dez elementos, utiliza passadeiras, carris, sinais de trânsito, muros ou tampas de esgoto como telas. A tarefa nem sempre é fácil, a prática pode ser interpretada como destruição do património, mas o artivista considera que o fim justifica os meios. “É um grande crime? Não, não é, é 'na boa'. Não fazemos nada propriamente grave e, na pior das hipóteses, digo que não fui eu, foi outro gajo qualquer”, ri-se. Por isso não esperemos ver uma passadeira autografada por Bordalo II.

Questionado sobre o que o chateia atualmente no mundo, Bordalo é perentório. “Chateia-me muito o egoísmo, cada um no seu casulo.” E apesar de, até à data da nossa conversa, não ter feito nenhum provoc sobre o tema, a habitação é um assunto inflamável. “Os senhorios gananciosos irritam-me muito. Tu tens uma casa que compraste há dez ou 20 anos por 100.000 euros e tiras a percentagem da renda que tens de pagar, mas de repente  achas que podes fazer 300% mais lucro só porque sim. E acho que isso cria uma desigualdade gigante em que para tu ficares muito melhor na vida, estás a lixar a vida a muita gente, especialmente os jovens que querem sair de casa.”

Quem olha para Bordalo reconhece-lhe o espírito inquieto e quem acompanha o seu trabalho percebe as suas crenças. Mostra-se desiludido com a sociedade que, acredita, ter-se tornado mais egoísta depois da pandemia. Rejeita regimes extremistas e vinga-se deles através da sua arte. “Eu acho que enquanto artista, ou enquanto personagem que tem alguma visibilidade, é importante dizer aquilo que penso. Se eu tenho visibilidade, não vou vender ténis e champôs e fazer stories no Instagram para ganhar uns trocos com isso. Acho que isso é muito poucochinho”, desabafa.

A polarização é algo que o preocupa também como artista, uma vez que transmite mensagens e sabe que nem todas vão ser entendidas como as idealizou. Bordalo recorda um provoc que fez sobre a polícia depois de uma reportagem de um canal de televisão ter denunciado uma série de polícias xenófobos e racistas. “As reações foram completamente polarizadas. Por um lado, ‘sim, sim, mata a bófia’; pelo outro ‘és contra a bófia, és um anárquico’. Completamente errado. Não era nada disso e fez-me entender que muitas vezes, quando se faz uma peça para provocar pode-se criar um campo de batalha em que as pessoas se afastam umas das outras e não é um bom resultado ou pelo menos não é o resultado que eu quero”, esclarece.

Independentemente do espectro político em que as pessoas se posicionam, Bordalo II acredita que a questão dos direitos humanos tem de ser superior, “tem que passar por cima daquilo que é mais à direita ou mais à esquerda”.

O projeto mais recente do artista chama-se Pixels em que as peças só conseguem ser percetíveis quando nos distanciamos. Literalmente. São peças construídas com o mesmo material, através da repetição de pedaços. Beatas de cigarros, máscaras cirúrgicas, pneus, garrafas ou latas são os mais utilizados numa alusão aos objetos que são deitados fora repetidamente todos os dias.

Também os animais são as personagens centrais e, por norma, a escolha não é inocente, como o caso das peças com a imagem de um macaco com beatas. “Tivemos a ajuda da Missão Beatão, que é uma organização que recolhe beatas, para a matéria em si porque nós descobrimos numa pesquisa que ainda hoje, por parte das tabaqueiras, são feitos testes em macacas grávidas. Metem-nas a fumar até à exaustão para descobrir o que é que acontece com o feto e com o macaco quando nasce. É absurdo e estúpido”, diz.

Bordalo II está atualmente com uma exposição em São Paulo, “Bicho Homem, na galeria Luís Maluf até dia 3 de maio.

Concluímos a nossa entrevista questionando Bordalo II sobre quantas dinastias de Bordalos seriam necessárias para acabar com o desperdício. “Eu acho que seria impossível. Acho que é impossível tu resolveres o problema a 100%. Sempre houve desperdício, mas se calhar no tempo do homem das cavernas, ou no tempo dos romanos, o desperdício era mais orgânico e hoje em dia os desperdícios são materiais feitos pela Humanidade que não desaparecem na natureza. E esse é que é o grande problema. Mas aqui precisas das grandes corporações. Elas têm um papel fundamental”, remata não tirando a responsabilidade de cada um de nós. “Mesmo que pareça pouco, vale sempre a pena fazer alguma coisa”.

Pode assistir à conversa completa através do site da Fundação EDP. O 3º ciclo das Conversas com Energia realiza-se entre abril e junho de 2023, no âmbito da exposição "Plástico: Reconstruir o nosso Mundo", uma co-produção do maat, do Vitra Design Museum e do V&A Dundee.