Finda a Segunda Guerra Mundial, a japonesa Toyota implementou no seu processo industrial um método de gestão e organização do trabalho destinado a melhorar o desempenho da empresa. Uma otimização dos processos, reduzindo o tempo gasto em tarefas sem valor acrescentado. A Filosofia Lean, assim foi apelidada, tornar-se-ia nas décadas seguintes um modelo organizacional exportado e adotado por empresas norte-americanas e europeias. A linguagem universal da redução de custos ou desperdícios para trazer ganhos em lucro ou em tempo, fala com os mesmos códigos independentemente do lugar, da natureza e da escala das operações. Esta, pode ter a dimensão de um núcleo familiar ou do nosso posto de trabalho.
Sem que nos exija um grande exercício de imaginação, percebemos que se aplicada nas finanças pessoais, o Lean permitirá gerir melhor um orçamento familiar. Controla as despesas e os gastos e permite ainda poupanças todos os meses. Cria processos que, uma vez instituídos, têm benefícios a médio e longo prazo. É fácil de ser implementado e com o tempo transforma-se numa rotina da família e numa filosofia para a vida. Na prática, tem por base pequenos gestos ou medidas concretas, todos muito simples, que eliminam dos orçamentos familiares as chamadas “gorduras”.
O Lean é concebido de forma pensada e estruturada, apta para responder a perguntas concretas como: qual a saúde do meu orçamento familiar? Que objetivos tenho? Como fazer face às despesas correntes e conseguir poupar? Perguntas que, num primeiro momento, obrigam a que saibamos desligar a capacidade de complicar, o “complicómetro” como apelida Ricardo Ferreira de Mascarenhas, fundador da RM CONSULTING, consultora de Aveiro, nascida em 2004, especializada na implementação da cultura Lean.
A melhoria continua como uma ferramenta de gestão
Antes de percebermos como pode uma solução de gestão nascida na Ásia da década de 1950, favorecer o nosso quotidiano familiar e profissional deste século XXI, fiquemos a conhecer o nosso interlocutor, licenciado em Engenharia Mecânica pela Universidade de Aveiro, nas palavras do mesmo: “cresci com amigos dos oito aos 80, com várias experiências pessoais e profissionais, com a sorte de estar durante a semana a 1000 metros das ondas e ao fim de semana no meio das serras e dos pinhais. Sei que os ovos não nascem nas caixas, nem as ervilhas nas latas [risos]. Sou alguém que decidiu muito cedo, por volta do sétimo ano de escolaridade, que queria ser engenheiro dada a paixão pelos carros. Fui tirar engenharia mecânica e, quando acabei o curso tive a sorte de ir parar à Toyota. Aí, tive o primeiro contacto com aquilo que é conhecido como Toyota Production System, a melhoria continua, que na altura não tinha muita expressão na Academia nem no setor empresarial em Portugal, apesar da longa história que já trazia. Essa sorte que referi, aliada a uma certa forma de estar, fez-me perceber rapidamente as virtudes da filosofia implementada na Toyota”. Para Ricardo Ferreira de Mascarenhas, os processos introduzidos na Toyota “rapidamente tornaram-se no meu modelo de trabalho”.
“Em termos pessoais, estou um pouco fora do sistema, sou um tipo clássico, acredito no modelo de família tradicional, gosto de livros, de vinhos, de coisas analógicas. Brinco com muitos amigos e conhecidos que querem estar sempre na ‘crista da onda’, a aguardar a última moda. Digo-lhes: ‘as boas coisas da vida são analógicas como um bom vinho, um bom livro, o convívio’”.
A tecnologia faz tudo, mas tem de trabalhar para nós. E para o fazer, temos de ter pessoas capacitadas para atuar sobre os processos que conduzem a um propósito bem definido.
“A tecnologia tem de trabalhar para nós”
O responsável da RM CONSULTING e autor do livro Gestão Lean nos Serviços (2013) contraria uma certa ideia de digital atualmente veiculada e explica-nos os porquês: “as tecnologias são ferramentas e, um erro que infelizmente ainda se vê com alguma frequência, é o de apostar tudo na tecnologia. Nos anos de 1990, nas primeiras décadas deste século, as pessoas achavam que se comprava um computador e este fazia tudo. Hoje, acontece um pouco isso com as aplicações e software. A tecnologia faz tudo, mas tem de trabalhar para nós. E para o fazer, temos de ter pessoas capacitadas para atuar sobre os processos que conduzem a um propósito bem definido. Isso permite que a tecnologia venha, seja adotada e que tiremos dela o máximo proveito, tirarmos as máximas oportunidades e até dar saltos quantitativos e qualitativos nas organizações. Nesse sentido, as tecnologias são fundamentais, ajudam-nos a crescer e a ganhar qualidade de vida. Quando é ao contrário, quando se implementa a tecnologia e a deixamos à sua sorte, é como tentar fazer uma plantação no deserto. Um dia poderá correr bem, por sorte. A analogia não surge por acaso: os israelitas conseguem fazer isso. Como o fazem? Não chegam, plantam, vão-se embora e esperam que as plantas cresçam. Ficam lá e acompanham os processos”.
Na vida de Ricardo Ferreira de Mascarenhas, a RM CONSULTING nasceu como uma “ideia ainda no ensino secundário. Começou pela parte de projetos de estruturas, pois tirei mecânica, ramo de produção, o que acabou pouco antes de 2010/2012. Nessa altura já tinha estado na Toyota, com a cultura empresarial que referi. A partir de 2013, vinculei-me à consultoria. É um projeto que surge de uma história familiar e pessoal de empreendedorismo. O foco prende-se sempre em tentar aliar e dar ao tecido empresarial português a capacidade de ser robusto. Sempre foi uma empresa de pequena dimensão, embora sempre tenhamos pensado grande. Contamos com clientes nacionais e internacionais. Como qualquer empresa de serviços sofreu com a pandemia. Mas também foi um tempo de tenacidade e de crescimento. No ano de 2022, os resultados foram francamente positivos com novos clientes internacionais na Europa, na América do Sul e na Ásia e em áreas como a cerâmica, a metalomecânica, os bens de consumo, os setores automóvel, químico, dos combustíveis e da energia”.
Podemos trabalhar no domingo à tarde e que podemos, numa terça-feira à tarde, sair com os filhos ou ir a uma consulta.
Lean: melhoria continua e respeito pela componente humana
“A frase não é minha, é de Kiyoshi Suzaki: ‘viver de tal forma que não haja barreiras entre os dias de semana e o fim de semana’. Isto não significa que vamos trabalhar os sete dias da semana. Significa que vamos ter uma forma de vida fluída em que vamos equilibrar os aspetos pessoais, profissionais, familiares ao longo dos sete dias e 24 horas por dia que todos temos igual. Significa que podemos trabalhar no domingo à tarde e que podemos, numa terça-feira à tarde, sair com os filhos ou ir a uma consulta”, sublinha Ricardo Ferreira de Mascarenhas.
Para o gestor, “em termos técnicos, o Lean é uma filosofia de gestão na qual se procura aumentar a eficiência dos processos pela identificação e eliminação ou redução dos desperdícios e pelo melhor uso possível do tempo. Se olharmos aos finais dos anos de 1940, a discussão dentro da Toyota tinha a ver com isso. A norte-americana Ford fazia 3000 carros por dia e a Toyota 7000 por mês. Outro pilar importantíssimo da gestão Lean passa pelas pessoas, o respeito por estas e a sua capacitação, com o bem-estar no posto de trabalho”.
Crescer com os erros
Para Ricardo Ferreira de Mascarenhas, “em Portugal só se falava do sucesso, o que me causava uma certa estranheza. Voltando às analogias, é altamente improvável que um jogador de basquetebol concretize cem cestos em cem lançamentos. Aceitamos isso no desporto como algo normal. O que interessa é que a equipa ganhe, ou que o jogo nos dê prazer. Se fazemos isso no desporto, porque não fazê-lo na atividade profissional? As pessoas têm de ganhar a consciência de que são pagas para resolver problemas. Logo, as pessoas devem pensar nisso e em dois aspetos simples: devo investir, no mínimo, 3% do meu tempo para melhorar o meu posto de trabalho, os meus processos, o meu desempenho. Repare, são 15 minutos do meu dia. Logo, vou tentar trabalhar para ter duas ou três horas por semana para crescer como profissional. Ouvir os outros colegas, ler um livro, acompanhar um podcast. Tempo para aprender e atuar sobre o nosso trabalho”.
E como podemos aplicar nas nossas casas? A resposta surge natural a Ricardo Ferreira de Mascarenhas: “Marie Kondo, especialista em organização pessoal, enfrentou um problema quando teve três filhos e descobriu que aquela organização que preconizava não dava [risos]. Quando fiquei a par desta questão disse: ‘agora que começava a ter graça é que desiste?’ Também tenho três filhos. É difícil ter uma casa arrumada como ela promovia quando se tem três filhos. Podemos pensar: todos nós temos rotinas. Pergunto às pessoas qual é a primeira coisa que fazem de manhã: umas dizem-me que é acordar, outras que é levantarem-se. Na realidade é abrirmos os olhos. Todos temos uma rotina e nem sempre nos é favorável. A máquina do café pode estar no pior sítio da cozinha, a roupa das crianças numa ordem caótica. Há inúmeras ineficiências. Podemos começar a olhar para a nossa casa e pensar: como faço? quanto tempo passo com isto? Ou podemos seguir passos simples: fazer compras online e alocar um espaço em casa para arrumar cada bem. Se conseguir ter uma despensa organizada, poderei medir os meus consumos, onde estou a gastar mais ao longo do mês, ajustar as compras. Posso fazer uma análise logística das rotas que faço para ir buscar os pequenos à escola.
Comentários