L. é uma mulher de 35 anos diagnosticada com Autismo. Vive sozinha num quarto que faz parte de uma casa para integração de pessoas com dificuldades intelectuais. Privilegia o seu tempo a sós e parece ficar menos tranquila quando está com os seus pares por um período maior de tempo. Desde criança que apresenta inúmeros comportamentos ritualizados e obsessivos e sempre insistiu em ter as coisas em lugares específicos. Trabalha em part-time numa loja de roupa na área do armazém. Quando chega a casa, percorre o frigorífico, prateleiras e outras áreas da sua casa para garantir que nada foi mudado de lugar. Gosta de criar menus de refeição, ler e desenhar acerca da vida selvagem e tem volumes de livros médicos que lê e relê de forma constante (…).
R. é um professor universitário de filosofia que vinha a sentir um aumento de dificuldades no relacionamento social no seu local de trabalho. Sempre foi uma pessoa produtiva no seu trabalho académico, não obstante a sua luta diária durante muitos anos com a ansiedade e a depressão. O aumento das responsabilidades administrativas no seu departamento e o número crescente de reuniões parece ter aumentado as suas dificuldades com as tarefas sociais e de organização. A sua ex-mulher sugeriu que fosse avaliado para despistar Síndrome de Asperger (SA) ao que ele acedeu. O diagnóstico foi confirmado para SA, mas também uma Ansiedade Social e Depressão Major. Foi-lhe proposto uma terapia individual dirigida às suas dificuldades. No presente momento a sua filha está também a ser avaliada para despistar SA (…).
T. é um homem de 40 anos que se mudou recentemente para um apartamento de integração social dentro de uma instituição para pessoas com dificuldades intelectuais. Sitio onde ele próprio tem estado integrado desde os seus 4 anos de idade. Vive neste apartamento com mais três pessoas com uma supervisão de 24 horas. As suas refeições são preparadas e ele recebe assistência nas suas atividades diárias. Tem uma história de inúmeros episódios de autoagressão e tem beneficiado de um programa de intervenção comportamental para o ajudar a gerir os mesmos. T não fala, mas comunica através de alguns gestos e imagens. Apesar de ter noção da presença dos seus colegas de apartamento, na grande maioria do tempo, não demonstra interesse por eles. Foi-lhe diagnosticado, quando tinha 6 anos de idade, uma grave dificuldade intelectual e Autismo (…).
E. é uma jovem mulher de 19 anos, estudante universitária que se tem confrontado com várias dificuldades nas tarefas académicas. Estuda numa universidade afastada da sua terra de origem e tem sentido bastantes dificuldades na adaptação às rotinas do quotidiano. Gosta de ler romances de forma compulsiva. Ao fim de algum tempo procurou uma avaliação psicológica nos serviços da universidade. Foi-lhe referido a possibilidade de ter uma Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção. Em criança foi-lhe diagnosticada uma Dificuldade de Aprendizagem Específica e beneficiou durante alguns anos de intervenção psicológica tendo sido integrada nas Necessidades Educativas Especiais. Apesar das dificuldades ao nível da socialização ainda mantém alguns amigos próximos que datam da infância. Foi conseguindo enfrentar as dificuldades sentidas nas relações sociais, principalmente durante o Ensino Secundário. Diz ter a noção que a entrada e continuidade na universidade apenas foi possível com ajuda profissional. Ao fim de algum tempo de intervenção na universidade foi-lhe diagnosticado SA (…).
Num primeiro olhar os quatro casos anteriormente descritos parecem ter pouco em comum. No entanto, todos eles apresentam um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo (PEA). Uma das dificuldades associadas ao seu reconhecimento parece derivar da forma heterogénea da sua apresentação clínica. E no caso das pessoas adultas o surgimento de outros problemas psiquiátricos associados (e.g., depressão, ansiedade, perturbação obsessivo-compulsiva, etc.) acabam por mascarar algumas das características das PEA.
As PEA são uma condição de surgimento precoce e que acompanha a pessoa ao longo do seu ciclo de vida. A sua natureza é neurobiológica e caracterizam-se por um compromisso na comunicação e interação social, associado a interesses restritos e comportamentos repetitivos. Apresentam diferentes níveis de gravidade. Cerca de dois terços dos casos diagnosticados apresentam um défice cognitivo associado e dificuldades na linguagem.
No entanto as pessoas com SA na sua grande maioria apresentam um perfil cognitivo dentro da média ou acima desta e um maior nível de funcionalidade. Podem ter outras dificuldades a nível neuropsicológico, tais como, dificuldade em reconhecer ou compreender as emoções e intenções dos outros, mas também na tendência que parecem demonstrar para se focar no detalhe, que também pode ser entendido como uma vantagem, e dificuldade no planeamento e execução de tarefas.
Apesar de se referir que a prevalência de diagnóstico de PEA é de cerca de 4 rapazes para cada 1 rapariga, parece não haver consenso e são muitos os investigadores e clínicos que referem uma diferença menor. A manifestação comportamental das características da SA nas raparigas/mulheres parece ser diferente e o comportamento de camuflar algumas das suas características associado a uma maior capacidade de aprendizagem de determinadas competências sociais parece levar a uma maior dificuldade no seu reconhecimento. Há inúmeras situações de pessoas com SA, que devido a apresentarem uma maior capacidade a nível cognitivo e sem dificuldades marcadas na linguagem, em que se torna mais difícil a sua identificação.
Nos casos mais graves de PEA, nomeadamente aqueles que apresentam um défice cognitivo associado e dificuldades na linguagem, o diagnóstico é efectuado mais precocemente. E as pessoas beneficiam de uma intervenção ao longo de um período maior de tempo. Assim como de terapias empiricamente validadas para as suas características e perfil de funcionamento. A intervenção junto da família e da escola é cada vez mais uma realidade. Estes indicadores levam a que as pessoas com este diagnóstico possam estar mais capacitadas ao nível social e pessoal, e como tal consigam alcançar um conjunto maior de etapas fundamentais ao longo da vida.
A transição para a vida adulta (e.g., entrada na Universidade ou mercado de trabalho, início/fim de um relacionamento amoroso, etc.) parece traduzir-se num aumento dramático de dificuldades. Estes momentos parecem apresentar uma dificuldade acrescida nas pessoas com PEA, em parte devido às suas dificuldades em flexibilizar e adaptar a novas situações. Não que as pessoas com estas características não o consigam mas os custos associados e o impacto ao nível do bem estar psicológico parece ser mais grave.
Para além dos casos de PEA que vão transitando de um serviço de acompanhamento pediátrico para um serviço especializado em adultos, continuamos a verificar o surgimento de novos casos de PEA diagnosticados pela primeira vez na vida adulta. Homens e mulheres continuam a receber um diagnóstico tardio e a não beneficiarem de terapia num período mais alargado e fundamental da sua vida.
Assim, é essencial sensibilizar a sociedade acerca das características das PEA e dificuldades associadas, bem como sensibilizar os profissionais de saúde, nas mais variadas áreas de atuação, para estarem atentos a estes sinais e encaminharem as pessoas para uma ajuda específica, nomeadamente, uma avaliação de despiste de PEA. Esta ajuda poderá abrir um caminho para o esclarecimento de dúvidas, alívio de angústias vividas durante anos por não compreenderem efetivamente o que se passava consigo e receber um suporte e terapia adequados.
Pedro Rodrigues | Psicólogo clínico | Núcleo de Perturbações do Espectro do Autismo |
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