Hoje, Dia Mundial de Consciencialização do Angioedema Hereditário, o Prof. Doutor Manuel Branco Ferreira, assistente graduado sénior do Serviço de Imunoalergologia do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte e diretor da Clínica Universitária de Imunoalergologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, alerta para o impacto desta doença rara na qualidade de vida dos doentes e a necessidade de valorizarem todas as crises, mesmo as mais ligeiras: «por vezes, as crises que só afetam as extremidades ou parte da face são sub-valorizadas pelos doentes e sub-reportadas aos seus médicos assistentes, o que depois tem implicações nas decisões terapêuticas médicas».
HealthNews (HN) – O que é o angioedema hereditário (AEH)?
Manuel Branco Ferreira (MBF) – O angioedema hereditário é uma doença genética rara em que os doentes têm deficiência na produção de uma proteína do sangue (C1 inibidor) que, como o próprio nome indica, vai ter uma ação inibitória da ativação de vários sistemas do nosso organismo, incluindo o sistema do complemento, o sistema da coagulação e o sistema que leva à produção de bradicinina.
É o aumento descontrolado e súbito da bradicinina no organismo que leva aos episódios de angioedema que são recorrentes, de frequência variável entre uma a duas vezes por semana ou apenas alguns episódios por ano, e que podem atingir qualquer parte do corpo.
HN – Qual é a prevalência desta doença rara no nosso país e quantos doentes poderão existir ainda por diagnosticar?
MBF – A prevalência descrita na literatura situa-se à volta de um caso por cada 50.000 habitantes, o que no caso de Portugal daria 200 doentes no total. No entanto, nós já temos identificados mais doentes e, portanto, estimamos que deverão existir cerca de 250 a 350 doentes no nosso País. Cremos que poderão ainda estar por diagnosticar cerca de 50 a 100 doentes, que deverão ter formas mais ligeiras e que, por isso, poderão passar mais despercebidos.
A Unidade de Angioedema Hereditário do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte tem diagnosticadas cerca de 120 pessoas com Angioedema Hereditário e tem vindo a realizar periodicamente reuniões de doentes, em parceria com a Associação de Doentes com Angioedema Hereditário, sendo que será realizada uma reunião no dia 16 de maio de 2023, dia em que também se assinala o dia mundial desta doença.
HN – Como se manifesta o angioedema hereditário?
MBF – Como disse atrás, a apresentação típica são episódios repetidos de edema que surgem subitamente e que demoram três a sete dias a desaparecer completamente, para depois se voltarem a repetir. Estes episódios de edema podem afetar qualquer parte do corpo mas as localizações mais frequentes são: na face, onde causam marcada deformidade (“pareço um monstro” é uma frase muitas vezes proferida pelos doentes) e consequente retração social; nas extremidades (mãos ou pés), onde causam marcada incapacidade para pegar em coisas, escrever ou calçar-se; na região genital ou nas nádegas com um edema que causa grande desconforto; na parede abdominal (com grande aumento do volume abdominal) ou na região cervical.
Para além destas regiões visíveis, é também frequente o edema atingir a parede intestinal, causando dores e cólicas abdominais extraordinariamente intensas e incapacitantes, e que muitas vezes se associam com vómitos que os doentes não conseguem parar. Sendo a dor tão intensa e com grande dor à palpação superficial (simulando reação peritoneal), muitas vezes confunde-se com um abdómen cirúrgico e os doentes são operados sem necessidade.
O edema pode também atingir a parede da laringe e a glote, com dificuldade respiratória que pode levar à morte por oclusão da via aérea se o doente não for prontamente assistido e eventualmente intubado e ventilado. Este é o maior receio dos doentes com angioedema hereditário: a morte por asfixia.
HN – Qual é o tempo médio para o diagnóstico?
MBF – Aqui, há a considerar duas situações distintas: quando é o primeiro caso na família e quando já existem casos de doença no seio familiar.
Se o doente for o primeiro caso diagnosticado na sua família, o que acontece em até 25% dos doentes, porque são mutações que surgiram de novo naquele indivíduo ainda durante a sua gestação, o atraso no diagnóstico pode ser de mais de 10 a 20 anos. Por um lado, porque ninguém se lembra do diagnóstico desta doença rara e, por outro, porque as manifestações que descrevi acima podem ser facilmente confundidas com reações alérgicas, que são muito mais comuns do que esta doença rara. Assim, estes doentes ficam durante muito tempo rotulados como tendo “uma alergia qualquer”, ainda que nunca seja evidente qual é essa “alergia”. E também o tratamento para essa “alergia” como corticoides e anti-histamínicos é pouco ou nada eficaz…. Ou seja, após uma série de episódios, já existem pistas suficientes para se colocar em causa o diagnóstico de alergia nestes doentes, mas a realidade é que muitas vezes esse rótulo persiste, o que impede a procura de outras causas e o achado do diagnóstico correto.
E o diagnóstico correto até é fácil de fazer na grande maioria dos casos. Basta pedir os doseamentos qualitativos e quantitativos de C1 inibidor no sangue, o que é um exame laboratorial que se faz em praticamente todos os laboratórios de análises clínicas.
Se já existirem casos desta doença na família, o diagnóstico é muito mais rápido e habitualmente é feito em menos de um ano após surgirem as primeiras crises, já que quando estas se tornam nítidas para os familiares, esses doentes são logo encaminhados para o médico alergologista que segue estes doentes e que rapidamente faz o diagnóstico da situação. Inclusivamente, em alguns casos o diagnóstico é feito mesmo antes de se iniciarem quaisquer sintomas, já que são os pais que pedem para saber se a sua criança tem ou não a alteração laboratorial que condiciona a doença e isso é algo muito fácil de fazer.
HN – Quais são os desencadeantes habituais das crises? Qualquer crise, mesmo ligeira, deve ser sempre valorizada pelos doentes e pelos médicos?
MBF – Os desencadeantes mais habituais das crises são o stress, os traumatismos (da vida comum mas também os traumatismos que alguns procedimentos médicos e cirúrgicos implicam) e as infeções. Mas há vários doentes que têm crises sem desencadeantes aparentes.
Outros desencadeantes possíveis são os dois grupos de fármacos que estão contraindicados nestes doentes: os estrogénios e os inibidores do enzima de conversão da angiotensina (IECAs) mas nesse caso os doentes são instruídos para cessar de imediato essa terapêutica e não a retomar no futuro.
A valorização das crises é importante. Claro que as mais graves são as que são mais valorizadas pelos doentes e pelos médicos, pelo risco de vida ou pelo risco de crises abdominais incontroláveis. E, por vezes, as crises que só afetam as extremidades ou parte da face são sub-valorizadas pelos doentes e sub-reportadas aos seus médicos assistentes, o que depois tem implicações nas decisões terapêuticas médicas.
Nesse sentido, é importante haver um registo exaustivo de todas as crises e um auxílio precioso de instrumentos (digitais ou em papel) que permitam efetuar de forma fácil e prática esse registo, com o objetivo de ser partilhado com o médico assistente em consultas seguintes. Só assim é que o médico poderá ter uma real perceção do impacto da doença naquele doente em particular. De igual forma, é importante avaliar regularmente questionários de controlo da doença (AECT – angioedema control test) e questionários de qualidade de vida (AEQoL – angioedema quality of life). Tudo isto serve para o médico ter dados objetivos para tomar as melhores decisões terapêuticas para os seus doentes.
HN – Qual o impacto das crises, mesmo as mais ligeiras, e a sua imprevisibilidade, na qualidade de vida dos doentes, do ponto de vista social, profissional e também mental, uma vez que se trata de uma doença que pode ser transmitida aos filhos?
MBF – A qualidade de vida destes doentes está francamente afetada, não só pelo impacto individual de cada crise (absentismo escolar, laboral, incapacidade de efetuar tarefas no dia-a-dia, vergonha, retração social e, nas crises mais graves, necessidade de ida ao hospital por dor incontrolável, vómitos ou dificuldade respiratória aguda e intensa) mas, fundamentalmente, pelo receio da próxima crise e das suas implicações.
Este receio, que obviamente tem a ver com a imprevisibilidade das crises, faz com que os doentes se limitem mesmo em período sem crises: se limitem na capacidade de efetuar deslocações/viagens para sítios onde não sabem se haverá capacidade médica para os ajudar em caso de crise; se limitem nas profissões que podem escolher, pois profissões com exposição significativa não são compatíveis com deformidades faciais ainda que transitórias, ou profissões que impliquem algum tipo de trauma ou de stress frequente também não podem ser escolhidas livremente pois associar-se-ão a maior número de crises, etc.
Até a própria escolha de ter ou não filhos é impactada, uma vez que se sabe que metade da descendência irá estar afetada pela doença, já que esta é uma doença com transmissão genética autossómica dominante, ou seja, basta ter um dos cromossomas afetado para se ter a doença. Portanto, a probabilidade é 50/50, tal como se fosse atirar uma moeda ao ar….
HN – A realidade em Portugal já vai ao encontro das guidelines internacionais, no sentido de que os objetivos terapêuticos sejam um total controlo da doença e uma vida normal para os doentes?
MBF – Tal como em todas as outras doenças crónicas, nunca se conseguem implementar a 100% os objetivos. Principalmente quando estamos a falar de atingir uma vida normal para doentes que têm uma vida tudo menos normal…. e em que, muitas vezes, quer os doentes, quer os médicos já se dão por muito satisfeitos se não existirem crises graves ou necessidade de recurso ao serviço de urgência.
No entanto, a tendência atual quer das guidelines internacionais, quer das orientações nacionais da Norma 009/2019 da DGS vão neste sentido, ou seja, de se tentar ter um bom controlo da doença e uma vida normal para os doentes, senão nos 365 dias no ano pelo menos na grande maioria dos dias.
A consciencialização de que estes objetivos são possíveis e devem ser procurados, é algo que se vai construindo, tanto do lado dos doentes como do lado dos médicos. E, algumas vezes, o estímulo para uma maior consciencialização destes objetivos terapêuticos por parte dos médicos pode ser uma maior exigência por parte dos doentes, através da partilha das suas crises, das suas expectativas de vida e das suas necessidades insatisfeitas (unmet needs).
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