Entre slogans motivacionais, aplicações de bem-estar e idealizações digitais, o envelhecimento foi capturado por uma lógica de desempenho e autoaperfeiçoamento que mascara a fragilidade, culpabiliza o sofrimento e destrói silenciosamente a dignidade.

Vivemos num tempo em que envelhecer deixou de ser apenas uma parte inevitável da vida para se tornar um projeto de performance. Já não basta viver mais anos; é preciso vivê-los com “atitude positiva”, “mente ativa”, “corpo funcional” e, se possível, “com impacto nas redes”. O envelhecimento, esse processo complexo, corporal, relacional e inevitavelmente vulnerável, é agora reconfigurado como oportunidade de crescimento pessoal, autoaperfeiçoamento e empreendedorismo sénior.

Este discurso parece positivo, mas é precisamente por isso que é perigoso, é sedutor, entusiasta e moralmente apelativo. Mas por detrás das palavras “inteligente”, “ativo”, “bem-sucedido” e “mindful” esconde-se uma transformação silenciosa, cultural e ética, que merece ser denunciada, alertada.

O envelhecimento foi colonizado por uma nova forma de moralidade neoliberal, que transforma a vida tardia numa obrigação de desempenho, assim o envelhecimento se torna uma tarefa individual de gestão de riscos, otimização e positivismo, a dignidade é a primeira a sofrer.

A nova moral da performance

A ideologia do “envelhecimento ativo” não surge no vazio, inscreve-se num imaginário social mais vasto, que vê a saúde como um dever, a fragilidade como falha e o sofrimento como sinal de má gestão da própria vida. Nessa lógica, o indivíduo é responsável por tudo: pelo seu corpo, pela sua saúde mental, pelos seus níveis de energia, pela sua aparência e, cada vez mais, pela sua longevidade.

É o triunfo da “responsabilização individual” em detrimento da solidariedade estrutural, algo já denunciado por Joan Tronto na sua ética do cuidado, ao apontar o perigo de deslocar a vulnerabilidade humana do espaço público para o privado, como se fosse falha pessoal e não condição universal (Tronto, 1993).

Importa, porém, sublinhar que a crítica a esta moralidade da performance não significa desprezar a importância da promoção da saúde, da prevenção da doença ou da educação para estilos de vida saudáveis: Promover o exercício físico, uma alimentação equilibrada, o abandono do tabaco e a literacia em saúde, tudo isso é necessário e desejável.

Mas é imperativo reconhecer que essas escolhas não ocorrem num vácuo ético ou social.

Não podemos falar de hábitos saudáveis sem falar de condições de habitação, acesso a cuidados, mobilidade urbana, solidão estrutural ou insegurança económica. A mudança de comportamentos não é apenas um ato racional: é um processo relacional e socialmente condicionado. Não basta dizer “cuide-se” a quem vive com uma pensão mínima, num bairro sem passeios, sem sombra e sem acesso a fruta fresca.

A ética da prevenção tem de caminhar lado a lado com a justiça social, caso contrário, transforma-se em mais uma forma de exclusão moral.

O positivismo digital e a velhice filtrada

As redes sociais amplificam e radicalizam esta tendência (Instagram e LinkedIn…) estão cheios de “seniores inspiradores” a correr maratonas, a escrever livros, a fazer podcasts sobre longevidade, a praticar ioga ao pôr-do-sol e a repetir mantras de gratidão. O corpo envelhecido, domesticado e otimizado é exibido como um troféu: “se eu consigo, tu também consegues”.

Esta estética do sucesso envelhecido é, no fundo, uma negação da velhice real, uma censura da vulnerabilidade. A performance constante, o sorriso persistente e a narrativa de superação permanente tornam-se normas implícitas. E quem não se encaixa nelas começa a sentir-se não apenas invisível, mas culpado.

Byung-Chul Han chama a isto a “sociedade do desempenho”, onde a coerção deixa de vir de fora (como proibição) e passa a ser interiorizada como autoexploração permanente (Han, 2010). Mesmo o envelhecimento se torna trabalho: um trabalho de manter aparência, atividade, positividade.

Uma violação subtil da autonomia e da dignidade

Do ponto de vista ético, esta cultura do envelhecimento performativo é profundamente problemática, porque ao promover uma única forma “aceitável” de envelhecer, ativa, positiva, funcional, independente, acaba por violar a própria autonomia que diz proteger.

Autonomia não é obedecer a um novo ideal, por mais bem-intencionado que seja. Autonomia é poder escolher, inclusive escolher o descanso, o silêncio, o recuo, a fragilidade, o direito de não ser exemplar, o direito de não ter de provar nada a ninguém.

Este modelo também fere o princípio da beneficência: substitui o cuidado concreto por slogans motivacionais, retira recursos públicos à atenção à fragilidade e canaliza investimentos para o mercado privado do bem-estar.

A Organização Mundial da Saúde (OMS), apesar de promover o conceito de “envelhecimento ativo”, tem vindo a reconhecer que “a exclusão digital e social de pessoas com perda funcional deve ser combatida com políticas intergeracionais e infraestruturas inclusivas” (OMS, Global Report on Ageism, 2021).

Já Giorgio Agamben sublinhou como o valor da vida humana não pode ser medido por critérios funcionais ou biopolíticos de utilidade, uma vida “inoperosa” pode ser justamente a mais humana (Agamben, 1995).

Cuidar é o contrário de exigir

Na prática clínica, esta ideologia começa a ter efeitos concretos, vejo idosos com vergonha de depender, pessoas com doenças crónicas a sentirem-se fracassadas, cuidadores exaustos a tentarem manter uma aparência de resiliência.

A ética da performance infiltrou-se no próprio coração da relação terapêutica.

Mas cuidar é precisamente o contrário de exigir, é reconhecer o outro como digno mesmo quando já não tem energia, mesmo quando perdeu capacidades, mesmo quando já não tem discurso positivo nem corpo funcional.

Cuidar é estar presente quando tudo falha, é sustentar sentido onde já não há projeto.

Precisamos de uma ética da fragilidade, como a sugerida por autores contemporâneos como Cynthia Fleury ou Emmanuel Falque: uma ética que reabilite o corpo vulnerável, o tempo lento, a dignidade silenciosa, uma ética que veja no envelhecimento não um problema a resolver, mas uma expressão profunda da condição humana.

Conclusão:

“Nem coaching, nem filtros, só humanidade”

O envelhecimento não precisa de slogans, nem de filtros, nem de gurus, precisa de humanidade, de presença, de espaço para ser o que é. De condições materiais e sociais que permitam viver com sentido, mesmo quando a vida se torna mais curta, mais frágil, mais dependente.

O desafio não é ensinar os idosos a envelhecer com sucesso, mas sim, ensinar a sociedade a reconhecer valor onde já não há sucesso, a ver dignidade onde o corpo falha, a cuidar onde já não há plano de carreira, nem rede social, nem maratona a correr.

Talvez o verdadeiro envelhecimento inteligente comece quando deixarmos de o chamar assim.