HealthNews (HN) – Que campus está a ser construído pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa em Torres Vedras? De que tipo de oferta estamos a falar?

João Eurico da Fonseca (JF) – Estamos a falar da criação do chamado Medicina ULisboa Campus de Torres Vedras, um novo campus da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, em Torres Vedras, que resultou de um conjunto de oportunidades, consequência da passagem da gestão do antigo hospital Dr. José Maria Antunes Júnior para a Câmara Municipal de Torres Vedras, algo que foi mediado pelos Presidentes da Câmara Municipal de Torres Vedras, em dois mandatos diferentes, com um compromisso de manter o espaço desse antigo hospital como uma área ligada à saúde, com uma ponte estabelecida com a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.

HN – Um acordo firmado em 2019.

JF – Exatamente. Acabou por haver uma colaboração muito boa entre as duas instituições. Nesta fase inicial, a Câmara Municipal de Torres Vedras tem sido absolutamente decisiva na reabilitação pela sua própria mão de uma área antiga, associada à capela e ao claustro, que datam do século XVI, e que permitiu desde já que a faculdade tenha começado a dinamizar este espaço com sessões de formação em áreas diversas, como, por exemplo, a medicina humanitária e de catástrofe. Por outro lado, há uma equipa sediada na Câmara Municipal com elementos das duas instituições, que é liderada pelo nosso Professor da Faculdade de Medicina Joaquim Ferreira e que está neste momento a efetuar o planeamento arquitetónico, o plano de obras de reabilitação, o plano estratégico de execução e de desenvolvimento científico e, também, a preparar as candidaturas a financiamento (público e privado) para o desenvolvimento de todo o projeto, que nós esperamos que esteja pronto em cerca de cinco anos.

Teremos como primeiro passo a colocação de uma Unidade de Saúde Familiar académica. Esperamos ser capazes de a pôr em funcionamento em 2024. Teremos uma unidade de cuidados interdisciplinares em doenças crónicas, com particular ênfase na patologia cardiovascular, neurológica e do aparelho locomotor, esta área com uma necessidade maior de intervenção de reabilitação e, portanto, com mais tempo de início de funções e logística de recursos humanos mais complexa; um centro de investigação clínica com capacidade para promoção de estudos observacionais e, também, de ensaios clínicos; um centro de investigação em tecnologias de saúde, com parceria com outras escolas da Universidade de Lisboa, nomeadamente a Faculdade de Ciências e o Instituto Superior Técnico; um centro académico com formação pré e pós-graduada para dar formação aos nossos alunos de Medicina e de Nutrição e, também, a médicos e outros profissionais de saúde já na sua atividade clínica plena. Por fim, temos também uma oportunidade que nos surgiu num acordo com a Universidade de Harvard, que é criamos um centro de medicina humanitária e de catástrofe, fazendo parte de uma rede de centros promovida pela Universidade de Harvard. Estes centros visam criar condições para treinar profissionais de saúde para reação a cenários de catástrofe. Temos as condições ideais, porque há espaço. Há espaço para montar tendas de hospitais de emergência, há espaço para estarem ambulâncias, para helicóptero, há espaço e condições apropriadas para busca e salvamento em construções degradadas, em ruínas, etc., e é uma necessidade não preenchida na região Sul de Portugal. Depois, teremos também uma área de alojamento que dará suporte aos participantes em formação, bem como aos alunos em estágios de Medicina Geral e Familiar, aos alunos de Medicina e aos de Nutrição da nossa faculdade.

HN – Estamos a falar de uma grande oferta deslocada da capital que poderá envolver centenas de profissionais?

JF – É verdade. Quando todo o projeto estiver a funcionar, admitimos que cerca de 400 pessoas possam estar a trabalhar neste centro. A Faculdade de Medicina tem estado sempre apostada em formar mais e melhores profissionais de saúde, e sempre com foco no desenvolvimento científico e no benefício para a comunidade. Mas este novo centro, o Medicina ULisboa Campus de Torres Vedras, representa uma oportunidade de a faculdade sair de entre paredes de um grande hospital terciário e poder preparar melhor os seus alunos na abordagem de problemas clínicos da comunidade.

É uma enorme oportunidade para iniciar um novo ciclo da própria faculdade e a sua visão de ação e, também, da sua capacidade de intervir na comunidade. E também nos permite ir para campos onde estamos menos à vontade dentro deste universo de Centro Académico de Medicina de Lisboa, onde vivemos, onde está o hospital, a faculdade, o IMM. Porque vamos para um espaço onde se torna mais viável o ensino e a investigação em áreas como a saúde pública, os cuidados de saúde primários, a prática da medicina interdisciplinar, a saúde planetária ou global. Só há saúde se o ser humano estiver em equilíbrio com o seu meio ambiente; um equilíbrio entre o homem, as plantas e os animais que seja adequado, porque senão nenhum deles vai ficar bem.

É uma zona de grande produção hortofrutícola, com produção pecuária, também. É uma população exposta a fatores de risco ambientais muito próprios. De certa forma, a população que vai ser acompanhada neste centro de saúde pode ser objeto – claro que com o acordo e interesse da população – de uma avaliação sobre a sua saúde neste meio ambiente bem determinado e particular que é a região de Torres Vedras. Isto tem interesse para as populações, mas também para a comunidade em geral e para a ciência.

HN – Recorrentemente, quando são abordados vários problemas do SNS, há sempre uma luz ao fundo do túnel: a qualidade dos profissionais de saúde, reconhecida no resto do mundo. A FMUL tem aqui um papel determinante. Esta oferta, este sair da zona de conforto como descreveu, também mostra que a FMUL quer evoluir na qualificação dos nossos profissionais de saúde? Ou seja, este campus vai ao encontro de novas ambições da FMUL na formação?

JF – Eu acho que a formação médica tem alguns aspetos que são difíceis de tornear. Ou seja, é necessário uma grande base de preparação científica, é necessário uma capacidade instalada mental de vários anos de entendimento do que são as vias fisiopatológicas das doenças, do que é que causa as doenças, como é que as doenças se manifestam. Isto é um processo que tem um componente teórico e vai tendo um componente prático progressivo. Tradicionalmente, a medicina era ensinada com um processo, basicamente, de autoaprendizagem, de consulta de livros, de assistir a aulas teóricas e, depois, com um componente prático progressivo, com uma aproximação progressiva aos doentes.

Com o evoluir da realidade, da modernidade, passou a ser progressivamente um pouco mais difícil que os alunos de Medicina tivessem todos esse grau de proximidade com os doentes. Isso é um problema internacional. Acontece porque os serviços públicos de cuidados de saúde estão sobrecarregados, porque os médicos estão sobrecarregados, porque os doentes, progressivamente, deixaram de estar tão disponíveis para falar com os alunos, porque estão saturados, também, porque são muitos doentes, são muitos médicos, são muitos alunos, é tudo muito confuso e por vezes perturbador para um doente que esteja em ambiente hospitalar. Por isso a aprendizagem tem vindo a ter uma componente diferente, mais tecnológica, na fase de aproximação à prática clínica: ambientes de simulação em realidade virtual; ambientes ligados a simulação em manequins; treino digital com base em plataformas informáticas que permitem algum grau de simulação das situações clínicas e da decisão médica, preparando o aluno a um nível mais elevado, mas também mais interativo e num ambiente controlado, antes de estar junto dos doentes. Esta foi uma alteração nos últimos tempos. Mas, ao acontecer isso, aumenta-se o risco de haver uma distância entre o estudante de Medicina e o doente, que é o fulcro de toda a cultura e de toda a preparação do médico, e nós nunca poderemos perder a base da medicina, que está orientada por uma série de valores e princípios que podem ser lidos e estudados, mas têm que ser experienciados na interação com os doentes. Estou-me a referir a coisas básicas como a empatia, o respeito pelo próximo, o respeito pela diferença, a capacidade de comunicação. Todos esses aspetos que gradualmente os médicos vão ganhando, uns com mais facilidade, outros com menos.

Ao levarmos os alunos para um outro ambiente, mais calmo, com mais disponibilidade de interação humana, queremos também trazer isto para os alunos. Causar-lhes uma pausa. Estiveram ali pressionados, num ambiente altamente tecnológico do Centro Académico de Medicina de Lisboa, onde está a faculdade, com um hospital altamente diferenciado como o é o de Santa Maria. Tudo muito intenso; com muita gente a circular; com muita exigência; com centros de simulação para muitos alunos. Tudo a funcionar em grande e, depois, os alunos são estimulados a fazerem uma espécie de arrefecimento e voltarem a ter um momento de calma, de interação com o doente, com mais disponibilidade. Doentes que estão menos expostos a alunos de Medicina e, portanto, menos saturados de ambientes clínicos de ensino. Onde eles possam estar com mais calma na interação com o doente numa realidade de ambulatório.

Outra das grandes diferenças que aconteceu na medicina nos últimos 20/30 anos é que se tem transformado progressivamente numa medicina mais de ambulatório e menos de internamento. Atualmente só se internam os doentes mais graves. Quando tem uma cirurgia para fazer, o grande desafio é tentar que seja em ambulatório, ou com um internamento mínimo de um dia. Quando temos qualquer doença, o desafio é mantermo-nos em consulta, no máximo em hospitais de dia – onde se vai, faz-se a terapêutica e vai-se embora. Nós só somos internados, felizmente, quando estamos mesmo mal. Tudo mudou, porque ao termos que preparar médicos que têm que viver mais profissionalmente em ambiente de ambulatório, mais em contacto com os doentes fora do ambiente hospitalar, ainda mais estes aspetos se tornam importantes na formação; e por outro lado ainda mais os hospitais estão desviados do que é a maioria da prática clínica. Os hospitais estão muito focados no internamento, e na verdade a medicina está cada vez mais a funcionar em ambiente de ambulatório. Estas são algumas das realidades que procuramos ver refletidas neste projeto e que ajudem os nossos alunos a serem melhores.

HN – Podemos aprofundar um pouco mais o plano para os cuidados de saúde primários? Quais são os vossos objetivos para o ano de 2024?

JF – A primeira questão é como é que podemos garantir que este projeto dos cuidados de saúde primários seja bem-sucedido. Nós acreditamos que a fixação de médicos também está relacionada com as condições, com os estímulos, com a perspetiva de podermos atingir excelentes resultados de saúde, e nós cremos que ali vamos criar as condições para fixação de profissionais de saúde. E a articulação que está a ser feita entre a Câmara Municipal e o Serviço Nacional de Saúde para permitir a abertura de uma Unidade de Saúde Familiar penso ser absolutamente decisiva para o sucesso disto tudo. Acreditamos também que, com o início desta área de cuidados de saúde primários, se tudo correr como prevemos, poderemos garantir a pelo menos 9000 utentes na área de influência da zona do Barro e de Torres Vedras que estão sem médico de família que passem a ter um médico de família. Na verdade, a capacidade de envolver a comunidade será bem superior a 9000 pessoas, mas pelo menos resolver o problema dessas 9000 pessoas, que já é algo bem concreto e que trará, sem dúvida, um benefício imediato.

HN – Muito se tem falado da necessidade de salvar o SNS. Qual é o papel da academia e da FMUL no desenvolvimento do Serviço Nacional de Saúde que queremos ter?

JF – Penso que é mesmo muito importante o papel dos centros académicos clínicos. Falo nos consórcios que se têm formado entre faculdades, hospitais e institutos de investigação. O primeiro centro académico clínico criado em Portugal foi o Centro Académico de Medicina de Lisboa, o chamado CAML, em 2009, que junta a Faculdade de Medicina, o Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte e o Instituto de Medicina Molecular. O ambiente que se gera nestes centros académicos é diferente porque os médicos recebem outros estímulos e outras oportunidades. Estão, em primeiro lugar, em ambientes onde é mais fácil fazer investigação; onde, aliás, é expectável que se faça investigação; e onde estão também estimulados pelo ensino pré-graduado, porque estão ali alunos, mas também pelo ensino pós-graduado, porque estão imensos internos em formação.

Estes hospitais têm centenas e centenas de médicos em formação. Portanto, os médicos que escolhem estes centros para o seu desenvolvimento têm o estímulo do ensino e o estímulo da investigação, e têm também carreiras que estão orientadas para isso, porque a faculdade e também o IMM estão à espera de dar oportunidades a estes médicos para o seu desenvolvimento. Evidentemente que nem todos os médicos estarão interessados nisto, mas aqueles que estão interessados neste ambiente encontram aqui um fator diferenciador de outras realidades, e um fator decisivo, muitas vezes, para os influenciar na sua opção de continuar no Serviço Nacional de Saúde em opção a uma atividade exclusivamente no setor privado ou, numa decisão mais extrema, saindo do país.

A grande diferença para o setor privado, em relação a um centro académico como este, é que a maior parte das estruturas clínicas vive paredes meias com o ensino e com a investigação, sendo que têm flexibilidade para permitir que, em condições apropriadas, os profissionais façam o seu desenvolvimento científico e clínico. É muito difícil ter esta realidade no mundo da atividade clínica privada, onde efetivamente as remunerações são melhores, mas em que a estrutura está a pensar num outcome financeiro. As opções de emigração que os médicos têm são múltiplas e os médicos, como disse há pouco, formados nas faculdades de Medicina portuguesas são muito bem considerados e têm lugar em qualquer sítio do mundo. Isso está mais do que provado. Têm lugar, mas têm lugar em máquinas clínicas que têm como outcome, em princípio, também a produção clínica. Evidentemente que alguns se podem localizar mais em projetos académicos e ter vidas e atividades académicas extremamente recompensadoras para quem procura uma carreira científica. A minha opinião é que nada será comparável a poderem ter a experiência de um desenvolvimento clínico, académico, científico no contexto de um grande centro académico português, contribuindo para o Serviço Nacional de Saúde, contribuindo para o desenvolvimento do país. Esta experiência global é, na minha opinião, diferenciadora, por isso acredito que os centros académicos são pilares importantes da manutenção de um conjunto fundamental de clínicos altamente motivados e que permitam que o Serviço Nacional de Saúde se mantenha com a qualidade que tem.

HN/RA

Aceda a mais conteúdos da revista #17 aqui.