
No arquivo do Liceu Camões, agora designado de Escola Secundária Camões, estão reunidos vários volumes de atas que se referem à “gripe espanhola”, uma pandemia que atingiu o mundo em 1918 e que, só em Portugal, causou entre 50 mil a 70 mil mortos.
Francisco Pereira, professor de História nesta escola e responsável por este arquivo escolar, considerado “o mais antigo e mais volumoso do país”, mostrou à agência Lusa algumas dessas atas, que contam uma parte do passado deste estabelecimento de ensino, inaugurado em 1909, embora fruto de aspirações republicanas.
Esta gripe, também conhecida como pneumónica, porque a doença evoluía para uma pneumonia, na maioria dos casos, mortal, chegou a Portugal em maio de 1918, mas teve uma segunda e mais mortífera onda em outubro, pouco depois do início do ano letivo.
Nesta altura faleciam pessoas às centenas, nem havia como enterrá-las
Devido às faltas de alunos e professores, que aos poucos iam sendo atingidos pela gripe, o primeiro período foi atípico e, segundo contam as atas que constam do arquivo escolar, não teve notas, pois “praticamente não se deram aulas”, afirmou Francisco Pereira.
“Houve professores que morreram, professores, alunos. Nesta altura faleciam pessoas às centenas, nem havia como enterrá-las”, disse o professor de História, sublinhando que nos documentos é referida a epidemia em curso, mas nunca se atribuía as faltas dos professores ou dos alunos à doença, o que considera “curioso”.
Nunca se fala na epidemia espanhola
“Nas atas, refere-se a falta das pessoas, mas não se diz porquê. Dá-se conta da morte de alunos, mas não se diz de quê. Fala-se da necessidade de ser usado o liceu por causa da epidemia, mas não se diz de que epidemia se fala”, observou.
O agravamento da pandemia obrigou as autoridades a medidas excecionais e o Liceu Camões foi transformado em hospital improvisado, uma decisão para a qual contribuiu as instalações modernas e amplas, desenhadas pelo arquiteto Ventura Terra.
“Os doentes eram em tal número que houve necessidade de procurar instalações hospitalares de improviso e o liceu fechou na altura para ser transformado em hospital”, recordou Francisco Pereira.
Por aquelas instalações passaram cerca de 500 doentes. Um dos espaços mais usados foi o ginásio, construído em consonância com “as mais modernas conceções do que devia ser um espaço para a prática desportiva”.
Construído com uma forma tridente, as três alas paralelas que compõem o Liceu Camões, e que são hoje espaços de salas de aula, além do ginásio (ala central), foram ocupadas pelos “epidemiados”, assim designadas as pessoas atingidas pelo vírus da gripe, que na altura ainda não tinha sido identificado.
Os doentes masculinos ocuparam o ginásio e as salas de aula do primeiro andar, enquanto o piso térreo e as salas de aula da ala sul acolheram as doentes.
Devido a esta situação, prosseguiu Francisco Pereira, “o período letivo praticamente não começou, teve muito pouco tempo de aulas, porque em outubro já estava instalado aqui o hospital”.
Além das características arquitetónicas, o facto de o liceu estar construído numa zona afastada, onde apenas existia um matadouro, terá contribuído para a sua utilização como hospital improvisado. Atualmente, a Escola Secundária Camões está em plena zona urbana de Lisboa.
Questionado sobre a principal marca desta pandemia, que em todo o mundo terá custado a vida de 50 milhões de pessoas, Francisco Pereira escolheu “o silêncio”.
“Procura-se por uma espécie de manto. É uma coisa velada. Não se fala”, disse.
“Eu próprio tenho histórias da doença na família, de pessoas que morreram da epidemia e ainda hoje a minha mãe não gosta que se fale nisso”, referiu.
A pneumónica matou mais pessoas do que a I Grande Guerra (1914-1918). É também conhecida por gripe espanhola, porque foi nesse país que surgiram as primeiras notícias sobre a doença, uma vez que nos outros países, em guerra, existia controlo da informação.
A origem da infeção ainda hoje não é conhecida, existindo várias teorias.
Comentários