"É o único caso relatado [de gémeas transexuais submetidas a esta cirurgia juntas] no mundo", diz o médico José Carlos Martins, que realizou as operações que duraram quase cinco horas, com intervalo de um dia.
Uma semana após o procedimento, as jovens sorriem, brincam e também choram ao relatar o caminho de adaptação que percorreram desde a infância, quando se consciencializaram sobre o seu corpo.
"Percebi que sempre amei o meu corpo, mas não estava satisfeita com os meus órgãos genitais (...) Soprava os dentes-de-leão e sempre pedi ao pai do céu que me transformasse numa menina", diz Mayla, que diz ter chorado de emoção ao ver-se pela primeira vez após a cirurgia.
Um alívio
Mayla e Sofia nasceram em Tapira, cidade mineira de apenas 4.000 habitantes. "O medo dos nossos pais não era do que a gente é, era que a sociedade nos maltratasse", disse Mayla durante entrevista à AFP, realizada por videochamada.
O seu avô paterno vendeu uma propriedade para pagar as cirurgias, que custaram quase 100.000 reais (cerca de 4 mil euros).
"Quando se assumiram, foi um alívio para mim (...) Nem me lembro que um dia foram eles, para mim sempre serão elas", diz a sua mãe, Mara Lúcia da Silva, 43 anos.
Mara levou Mayla e Sofia a psicólogos e médicos desde pequenas. "O meu coração sempre soube que elas eram meninas e que estavam a sofrer", diz.
Mãe de duas outras filhas, esta secretária escolar apoiou-as durante as terapias hormonais e os tratamentos cirúrgicos e psicológicos, mas ainda sente alguns remorsos. "Sofro como mãe por não ter lhes dado bonecas e vestidos, por não ter feito elas mais felizes quando eram crianças".
"Quando passávamos por alguma situação difícil na rua, o que mais queríamos era chegar em casa, contar à minha mãe e que ela nos abraçasse, porque ela era como uma leoa, sempre nos protegeu com unhas e dentes", explica Mayla.
Orgulho de serem mulheres transexuais
Sofia estuda Engenharia Civil em São Paulo e Mayla cursa Medicina na Argentina. Atualmente solteiras, já tiveram relacionamentos passageiros.
Elas pretendiam fazer a cirurgia na Tailândia, mas Mayla descobriu uma clínica em Blumenau, Santa Catarina.
Deus criou as almas e não os corpos
O Transgender Center Brasil foi fundado em 2015 pelos médicos José Martins e Cláudio Eduardo para atender pacientes vindos do estrangeiro.
"Os pacientes da Europa e dos Estados Unidos ainda predominam, mas atualmente 30% são locais", afirmou à AFP Martins, que também destaca o aumento de pacientes jovens, como as gémeas e da terceira idade.
Cirurgia permitida a partir dos 18 anos
A redesignação de sexo pode ser feita no Brasil a partir dos 18 anos. A cirurgia está incluída na rede pública de saúde por lei desde 2011, mas apenas cinco hospitais realizam o procedimento. A longa espera incentiva a alternativa privada.
A procura permitiu que o Transgender Center Brasil crescesse mesmo durante a pandemia, mas Martins esclarece que, estatisticamente, "3% a 5% [das pessoas transexuais] têm necessidade ou indicação de cirurgia genital".
Com 175 pessoas transexuais assassinadas em 2020 (uma a cada dois dias), o Brasil lidera o ranking mundial da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
O saldo divulgado em janeiro mostra um aumento de 41% em relação a 2019. "Estou indignada. Vivemos no país mais transfóbico do mundo", lamenta Sofia.
O medo, diz ela, é uma constante para as irmãs e família. "Tenho orgulho de ser uma mulher transexuail. Vivi com medo da sociedade e o que peço é respeito", acrescenta Mayla, que carrega uma imagem de São Sebastião, presente do seu avô.
Sofia, que também é religiosa, acredita que "Deus criou as almas e não os corpos", e espera que a sua história sirva para enfrentar preconceitos: "Quero ajudar as pessoas a verem que também somos seres humanos".
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