António Correia de Campos, ex-ministro da Saúde, escreveu um livro para “ajudar os decisores, os políticos, os dirigentes associativos a olharem para a saúde de um modo informado sobre a história passada, o que é muito importante”. “Quem não sabe história não sabe preparar o futuro. Esse é o objetivo essencial deste trabalho. Atrevo-me a escrever sobre matérias com que convivi durante 50 anos por reconhecer não ver à minha volta muita gente que esteja nas circunstâncias em que me encontro: ter reunido o material e as peças indispensáveis a poder com fidedignidade relatar esta breve história de reformas da saúde”, disse o autor de “Gaveta de Reformas” em entrevista ao HealthNews.
HealthNews- Porquê agora?
António Correia de Campos (ACC)- Estava a escrever as memórias. Já tenho praticamente tudo pronto e dispunha até de um contrato de edição do primeiro volume. Entretanto, os acontecimentos precipitaram-se. A Covid foi um grande choque. Por outro lado, a queda do Governo anterior, seguido do aparecimento de um novo governo de maioria absoluta, e a ideia de que se pode reformar a saúde através de leis de bases determinaram a minha decisão. Tinha materiais escritos que gostaria de ver publicados, como um estudo que realizei com Ricardo Mestre e Teresa Oleiro sobre a dedicação plena, em 2019. E outras peças que me pareciam importantes. Dediquei-me a olhar para as leis de bases, por não acreditar nelas como fator de reforma. Grandes reformas da saúde foram feitas fora de leis de base. Senti que o país tinha passado um ano e meio ou dois anos a debater uma lei de bases e que se arriscava a prolongar uma discussão pouco produtiva, agora com o estatuto e, depois, com a direção executiva. Foi essa uma das razões.
HN- Na obra, não há nenhuma exaltação na crítica…
ACC- A idade conta muito. Já não estou em idade de militâncias. Se quero ser útil, ajudar o país e ajudar o sistema de saúde a aperfeiçoar-se, tenho que ser persuasivo. Não posso ser impositivo. Procurei ser o mais independente possível.
HN- Começa na regulamentação da lei Arnaut e, quando chega à parte da direção-geral dos cuidados de saúde primários, fala num semifracasso por estarmos a apenas 9 anos após abril de 74. Depois, ao longo dos anos, há uma repetição de semifracassos.
ACC- O problema aí foi fundamentalmente meu. O ministro da altura convenceu-me a preparar a lei, ouvindo toda a gente, porque a lei era importante e necessária para juntar as antigas “caixas” com os centros de saúde. Estava tudo disperso. Eram duas instâncias completamente separadas. Duas direções-gerais, uma com bastante dinheiro, outra com muito pouco dinheiro; uma (DGS) com uma linha orientadora, mas com poucos recursos, a outra (SMS da Previdência) com escasso pensamento, puramente operativa, mas muito prática.
Convenci-me, erradamente, de que estava a preparar uma legislação que eu próprio iria executar. Foi um erro grave. Não acreditava que o ministro me nomeasse diretor-geral, embora ele me tivesse prometido o cargo. Eu não era médico e, tradicionalmente, a direção-geral de saúde é dirigida por médicos.
Fui preparando a legislação como se ela fosse executada por uma pessoa capaz de “pegar no touro pelos cornos”. Acontece que não foi isso o que aconteceu. A possibilidade de fundir 1.200 funcionários num serviço de 400 e depois disseminar o resto do pessoal por serviços próximos das respetivas residências (centros de saúde ou hospitais) parecia uma ideia de interesse para todos. Tentei criar um mecanismo voluntário de colocação das pessoas, através de um processo muito simples, mas que, salvo erro, só registou quarenta ou cinquenta pedidos. As pessoas que executaram a reforma eram certamente bem-intencionadas e competentes, até com características pessoais muito agradáveis, mas tinham tudo menos espírito reformista.
HN- Relativamente aos cuidados de saúde primários, também se queixa de ser uma reforma que não foi concluída. Como é que isto se explica?
ACC- A explicação habitual é de que não há dinheiro para pagar aos médicos de família do modelo USF. Mas os decisores não fazem contas. Há, pelo menos, dois ou três estudos que demonstram que uma unidade de saúde familiar, comparada com unidades correspondentes convencionais, permite poupar em medicamentos e em meios complementares, conforto do doente e qualidade do acompanhamento do cidadão e sua família o suficiente para compensar o acréscimo de encargos com o pessoal. Os políticos sofrem muitas vezes de miopia. Não acreditam nessas contas. Mesmo que as encomendem, sentem dificuldade em acreditar nelas.
HN- Aponta que o principal problema do SNS são os recursos humanos. Face a este novo enquadramento do SNS, com a introdução da direção executiva, quem é que tem a tutela?
ACC- Ainda não está clarificado. Não sabemos onde é que se vai situar a direção executiva. Se a direção executiva se inserir na cadeia normal de comando e controlo, dependerá do gabinete ministerial e transmitirá ordens e instruções aos serviços atualmente existentes, nomeadamente à administração central do sistema de saúde (ACSS) e às administrações regionais (ARS), hospitais e ACES. Não se conhece ainda o figurino final.
Confesso a minha estranheza perante o modelo adotado. Acho muito bem a direção executiva, mas a direção executiva devia fundir-se com a administração central e com os serviços partilhados (SPMS), todos órgãos executivos ao nível central. Os SPMS detêm a responsabilidade pelo sistema de informação, a ACSS pelo pessoal, financiamento, instalações de equipamentos e contratualização com o setor privado. Se fosse este o organograma, não havia dúvidas.
Como é que o modelo proposto vai funcionar? Não sei. Também não estou muito preocupado. Na minha experiência, já vivi com estruturas muito bem desenhadas, com uma arquitetura muito transparente, mas com péssimos executantes. E ao lado delas, estruturas muito complicadas, muito pouco racionais, mas com grandes executantes. E eram estes últimos que “levavam a carta a Garcia”. Portanto, não me preocupo com essa situação. Até ao ponto em que não haja conflito de competências. Também acredito que esses conflitos serão minimizados, porque as pessoas se dão bem entre si. Pertencem quase todas à mesma geração e até ao mesmo grupo. Transportam um excelente relacionamento entre si. Podem surgir problemas, mas eles serão certamente minimizados pelo facto de as pessoas se entenderem bem, terem a mesma linguagem, desejarem o mesmo para o Serviço Nacional de Saúde, terem a mesma visão de que o setor privado é necessário, útil e complementar. Comungam valores comuns. Se me perguntarem se acho que o organograma devia ser imediatamente revisto, eu sugeriria que esperássemos seis meses ou um ano. Ao fim dessa experiência, talvez haja melhor conhecimento para aperfeiçoar o modelo.
Há fatores positivos na nova orgânica, alguns até inovadores. Recordo que as redes de prestação de serviços no Serviço Nacional de Saúde e, depois, as contratações ao setor privado foram surgindo um pouco por adição, sem nunca ter havido nem planeamento, nem perfeita integração. Por isso é que nunca conseguimos articular devidamente a rede hospitalar com a rede dos centros de saúde. A integração dos centros de saúde com os postos das caixas tinha resultado de um esforço enorme, parcialmente relatado no meu livro. Trabalhos de clarificação e de integração sempre tiveram que ser necessários no nosso sistema de saúde.
Teria preferido um organograma mais límpido. No entanto, há algo de importante nesta situação. As redes foram surgindo cada uma de seu modo. Primeiro a rede hospitalar, depois a rede dos cuidados primários e, finalmente, as redes dos cuidados continuados e paliativos. Essas quatro redes estão desintegradas. Uma das atribuições da direção executiva será integrar esse sistema. Como é que isso se faz? Pode até haver métodos não tradicionais de o realizar – uma gestão por projetos, por exemplo. Nunca falei com o Professor Fernando Araújo sobre este tema, mas pode haver um funcionamento por projetos. Por exemplo, integrar mais intimamente os centros de saúde com as ERPI. AS ERPI (Estabelecimentos Residenciais para Pessoas Idosas) têm uma escassa componente de saúde. Não fazem parte dos cuidados continuados integrados, mas são importantíssimas, porque todas as semanas tem que lá ir um médico e tem que lá estar também uma enfermeira. Em muitas ERPI, o médico vai lá predominantemente para passar receitas e observar os idosos carecidos de uma consulta médica, ocasionalmente portadores de infeções urinárias, de problemas respiratórios e outros, e nessa altura ele recomenda a ida à urgência hospitalar. Mas não existe sistema de referência organizado para enviar aquele paciente para o hospital da área.
A direção executiva terá a seu cargo este tipo de questões: articular as ERPI com os centros de saúde e com os hospitais; articular unidades de saúde familiares, ACES e hospitais; criar meios complementares de diagnóstico junto dos ACES, recorrendo a pessoal do SNS ou ao setor privado por concurso ou em parceria. Não tenho qualquer reserva a que os meios de diagnóstico que venham a ser criados sejam geridos ou diretamente pelo SNS ou mediante cessão de exploração, através de concurso público organizado, regionalizado ou nacional, a pessoas ou empresas com qualidade e experiência. O pior seria criar redundâncias que funcionam deficientemente, gastando mais recursos, por ex. gerando falhas no reaprovisionamento de reagentes, escassa ou fraca manutenção do equipamento ou demora escusadas no atendimento, obrigando o SNS a recorrer ao setor privado, gastando duas vezes para um só serviço.
HN- Ainda relativamente aos cuidados primários, temos o problema do número de médicos que se estão a reformar.
ACC- Nesta década, os anos críticos são de 2022 até 2027 ou 2028, em que o saldo é negativo. Quer dizer, reformam-se mais médicos do que os alunos que terminam o curso.
HN- A solução passa pelo médico indiferenciado…
ACC- Eu próprio recorri a essas soluções, a médicos cubanos e a médicos do Uruguai. Conheço os argumentos e a sua validade. Da parte das associações dos médicos de família, no sentido de que a lista de utentes só deve ser atribuída a pessoas com graduação em Medicina Geral e Familiar. Entendo que esses argumentos são válidos. Não vamos destruir uma coisa que levou tanto tempo a construir. Há outras soluções: trazer médicos para onde eles têm sido mais necessários, nas urgências; organizar com os hospitais algum mecanismo de treino para eles poderem ser bons urgencialistas; existe, também, a possibilidade de cursos rápidos para um período transitório. Lembremo-nos do que aconteceu com os auxiliares de enfermagem e os enfermeiros em 1974/75. Criou-se um curso de 9 meses, no Instituto Ricardo Jorge, organizado com muito rigor, frequentado por auxiliares de enfermagem que tivessem já o antigo quinto ano do liceu. Era um curso exigente. A sua aprovação conferia a título excecional o diploma de enfermagem, o que suscitou imensos remoques iniciais dos enfermeiros, das escolas de enfermagem, considerando a solução como um abastardamento da qualidade profissional. É compreensível esta reação. A verdade é que hoje já ninguém se lembra disso. Tudo passou. Os candidatos de então foram acolhidos no sistema. Houve profissionais de enfermagem oriundos dessa fileira que, ao longo dos anos, assumiram papéis de grande responsabilidade. Os Estados, por vezes, têm que recorrer a este tipo de mecanismos, desde que sejam bem montados, exigentes e transitórios. Não podem é ser eternos. Se isso se vier a fazer, terá que ser com conta, peso e medida.
Quantos são os anos de défice de médicos? São cinco anos? Então o sistema vai funcionar durante cinco anos. E não mais. É preciso ter uma organização capaz de os treinar, acompanhar e ajudar. Estudemos a forma como eles podem coadjuvar médicos de família até que passem a ter alguma possibilidade de receberem delegação de certas funções. Creio não ser impossível realizar um processo exigente e temporário, com a concordância dos próprios médicos de família.
HN- Também aborda a questão da exclusividade, uma coisa de que se fala há imensos anos e que deixou de existir.
ACC- Temos um capítulo inteiro sobre essa matéria no meu livro. Trabalho voluntário, sem que ninguém mo pedisse. Com a colaboração de Ricardo Mestre e Teresa Oleiro. Elaborei o estudo sem de nada informar o Governo. Conhecia as reticências que as Finanças tinham em relação ao custo da dedicação plena, percebia a vontade que o Governo tinha de regressar a ela de uma forma mais aperfeiçoada e também sabia que a dedicação plena de antigamente estava longe de ser perfeita.
Fez-se questão de o processo ser gradual, com metas pouco ambiciosas. Em quatro anos, dispor de apenas 40% de médicos e de enfermeiros em dedicação plena e dos correspondentes apoios em hospitais, recorrendo ao modelo dos centros de responsabilidade integrados. Vinte e cinco por cento no primeiro ano, depois aos poucos, até 40% em quatro anos. Identificámos o que se poderia poupar com a internalização de serviços hoje requisitados ao setor privado e quanto custaria a diferença para a dotação regular atual. Ofereci o trabalho ao gabinete ministerial, solicitando que a autoria fosse anónima. Se aparecesse como um trabalho meu, isso iria contaminar, eventualmente, qualquer discussão. E recomendava que o estudo fosse escrutinado, revisto e criticado por quem o Governo entendesse, aproveitando o que de válido restasse. Nunca ouvi falar do estudo, a não ser mais tarde numa campanha eleitoral em que um membro do Governo mencionou a ideia, que me era obviamente familiar, de em quatro anos termos pelo menos 40% dos médicos e dos enfermeiros em dedicação plena, através de centros de responsabilidade integrados. Foi o único feedback que colhi.
HN- O que não viria a acontecer.
ACC- Pois, porque mudou o Governo. Não sei se o novo gabinete consegue aproveitar o material elaborado. É possível que sim, embora esteja desatualizado. O estudo é de 2019, a partir de dados de junho desse ano, portanto, “já muita água correu debaixo da ponte”. Além da sua atualização e afinação, será indispensável conversar com as Finanças, saber se o modelo tem pés para andar, falar com as organizações médicas. Há todo um trabalho político a fazer, além do técnico, obviamente.
HN- Uma nota final…
ACC- A minha nota final é agradecer à HealthNews este contacto. Esta entrevista não é uma reprodução da totalidade, nem de uma pequena parte, das ideias contidas no livro. Mais do que ideias, o livro traz sobretudo experiência. Uma experiência de 50 anos de reformas, umas conseguidas, outras não conseguidas. E foi escrito para ajudar os decisores, ajudar os políticos, ajudar os dirigentes associativos a olharem para a saúde de um modo informado sobre a história passada, o que é muito importante. Quem não sabe história não sabe preparar o futuro. Esse é o objetivo essencial deste trabalho. Atrevo-me a escrever sobre matérias com que convivi durante 50 anos por reconhecer não ver à minha volta muita gente que esteja nas circunstâncias em que me encontro: ter reunido o material e as peças indispensáveis a poder com fidedignidade relatar esta breve história de reformas da saúde.
Entrevista de MMM
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