Em fevereiro de 2008 recebeu aquele que, possivelmente, representa o maior medo de muitas mulheres: ser diagnosticada com cancro da mama. Antes de se confirmar que tinha um tumor maligno, foi vítima de duas negligências médicas e foi graças à insistência da sua mãe que pediu uma terceira opinião. Qual foi o seu primeiro pensamento ao receber a notícia?
Em relação ao diagnóstico do carcinoma da mama, obviamente que foi terrível. Tinha acabado de ter a minha segunda filha e estava toldada pelas alterações hormonais, físicas e emocionais relacionadas com um parto. Nunca me passou pela cabeça que estivesse perante tal enquadramento clínico. O mundo ruiu naquele momento. O pior é mesmo o momento em que se recebe o diagnóstico. A partir daí é solucionar. Mas cada um de nós terá o seu método de encarar estas e outras questões. Não existem fórmulas mágicas. Para nada. Agora, efetivamente, foi a minha mãe que não deixou cair esta dúvida e não deixou que eu descansasse. Em boa hora o fez, ou não estaríamos agora aqui a falar.
Como foram as semanas e meses que se seguiram ao diagnóstico? Aceitou de imediato a doença ou passou por diferentes fases, como é o caso da negação, da revolta e da ansiedade?
Temos diversas fases e penso que passei um pouco por todas estas que colocou aqui, no entanto, sou por natureza uma mulher otimista e muito combativa. Penso no que está para a frente e não no que está para trás. Procuro quase sempre soluções e quase nunca problemas. As semanas e meses seguintes foram de seguir à risca o protocolo clínico, assente em muito apoio familiar, uma ótima alimentação e descanso. Cuidar da família ocupou muito a cabeça. O melhor a fazer. E deixar que a equipa médica que nos segue, dê o seu melhor.
Sou por natureza uma mulher otimista e muito combativa
O cancro da mama é uma das principais causas de morte nas mulheres. Teve medo de morrer?
Claro que sim. Acho que a todas as pessoas confrontadas com esta situação, lhes passará esse pensamento pela cabeça.
Receber um diagnóstico destes aos 34 anos e dois meses após ser mãe deve pôr muita coisa em perspetiva e ser uma experiência transformadora a todos os níveis. Deduzo que devem existir duas versões diferentes da Fernanda Serrano: uma antes do cancro e outra depois do cancro. Como é que definiria cada uma delas?
Curiosamente não existe uma Fernanda antes e uma depois desse episódio na minha vida. Apenas uma mulher com os pés ainda mais assentes na terra. Com mais cuidados e perspetivas diferentes de vida. Valorizo muito mais coisas tão simples e rotineiras da vida e do dia a dia, do que há 15 anos.
Muitos doentes não conseguem verbalizar a palavra cancro. Isto foi uma realidade para si?
Eu não consegui verbalizar essa palavra durante muitos anos. Por muito estúpido que possa parecer. Como se de algo supersticioso se apoderasse de nós. Como se não falando, não se atraíssem más energias. Para que a lei do esquecimento também se apropriasse da nossa consciência, enfim... Mas agora, e com este distanciamento, sim, consigo falar, verbalizar, tratar de assuntos relacionados com. Esquecemo-nos de quase tudo na vida. De bom e de mau.
Curiosamente não existe uma Fernanda antes e uma depois desse episódio na minha vida. Apenas uma mulher com os pés ainda mais assentes na terra
Na ficção, mais concretamente na telenovela “Queridas Feras” gravada em 2004, rapou o cabelo ao interpretar Mónica Rodrigues, uma arquiteta diagnosticada com cancro da mama. Apesar de ter historial de cancro na família, alguma vez imaginou que poderia vir a passar por algo semelhante?
Não. Nunca me passou tal possibilidade. Mas a realidade é que parecendo ainda assim perverso, acabou por ser uma preparação para o que aí viria.
Um diagnóstico deste tipo resulta em mudanças significativas no estilo de vida do doente, assim como a nível familiar e profissional. Sentiu que a sua vida ficou em suspenso?
Sim, claro que sim. Tudo aquilo que planeamos, seja a curto ou até longo prazo, fica em stand by porque a prioridade é tratar, é cuidar. A única coisa que nos vem à cabeça é tratarmo-nos, é curarmo-nos. Ficamos focados em seguir à risca todas as indicações médicas, alimentarmo-nos bem, termos calma e perseverança. E claro, ter uma estrutura familiar fabulosa, que eu tive a sorte de ter, fez toda a diferença. Tudo o resto fica assim adiado, pelas razões óbvias.
À semelhança de muitos doentes oncológicos, refugiou-se no amor da sua família e dos seus amigos. O apoio deles foi o seu salva-vidas e quem lhe deu forças quando não tinha?
É fundamental sentirmo-nos apoiados e sabermos que temos quem nos ame e nos cuide. Por vezes basta apenas “estar”, sentirmos a presença de quem nos ama, não querendo estar constantemente a falar da doença. Queremos sim distrairmo-nos com risos, festividades, com as coisas boas da vida. O amor salva sempre tudo.
Eu não consegui verbalizar essa palavra durante muitos anos. Por muito estúpido que possa parecer
Em 2008 submeteu-se a uma tumorectomia, que consiste na remoção do tumor e preservação da mama. Lembra-se da primeira vez que se viu ao espelho após a cirurgia?
Recordo-me bem da primeira vez que me vi após a cirurgia até porque estava preparada para os diferentes cenários, como penso ser prática comum, e lembro-me de que assim que acordei pude confirmar que era efetivamente uma tumorectomia, o que me deixou contente. Senti que tinha sido “um mal menor”, dentro de todo o enquadramento clínico a que estava a ser submetida. No fundo foi ao encontro do que era a minha expectativa, aliás, a minha e da equipa médica.
Em seguida deu início aos tratamentos oncológicos, com seis ciclos de quimioterapia e 33 de radioterapia. Este é um processo solitário e pautado por alguma incompreensão? Como é que os tratamentos a afetaram em termos físicos?
Não é um processo solitário pois estamos sempre acompanhados pela equipa clínica. Para além da queda de cabelo, ficamos sem energia e sem vitalidade, com perda de apetite. Consegui combater alguma dessas coisas, não todas, obviamente, mas os tratamentos deixaram-me bastante debilitada. Mas é importante manter um espírito combativo e esperar que tudo passe. Devemos viver um dia de cada vez, sabendo que os primeiros dias da quimioterapia são os piores, mas que com o passar do tempo vão melhorando. Sinto que foi importante encarar o tratamento desta forma.
É fundamental sentirmo-nos apoiados e sabermos que temos quem nos ame e nos cuide. […] O amor salva sempre tudo
De que forma é que esta doença impactou a sua autoestima e imagem corporal? Sente que pôs em causa a sua feminilidade e identidade enquanto mulher?
Claro que sim! Existe uma fase de tempo bastante extensa em que perdemos o cabelo e que estamos parcialmente mutiladas. Há mulheres que decidem manter as suas cicatrizes, o que não foi o meu caso, pois passados alguns anos decidi fazer a reconstrução mamária, uma decisão que a soberania assiste só à paciente. Cada mulher deve decidir sobre o seu corpo. Já tive oportunidade de partilhar este testemunho com outras mulheres que lutaram contra a doença: eu senti que nunca mais ia recuperar o que era antes, mas não só recuperei como sinto que fiquei ainda mais forte, vital, mais energética e mais bonita.
Durante os meses de tratamento, de que forma é que ocupou o seu tempo? Que mecanismos encontrou para lidar com tudo o que se estava a passar e os seus dias não serem dominados por esta doença?
Cada pessoa tem o seu mecanismo e o seu método e todos os dias nos sentimos de forma diferente. Existem dias bastante mais cinzentos do que outros, e eu acionei todos os mecanismos que tinha disponíveis. Fiz tudo aquilo que sempre quis fazer e nunca tinha tido tempo: cuidei de mim, organizei álbuns, dediquei-me por completo à minha filha Laura, que tinha apenas dois meses, brinquei muito com o meu filho, que tinha três anos na altura, fiz jardinagem, vi filmes e li imensos livros que nunca tinha tido tempo para ver ou ler. No fundo dediquei-me a fazer tudo aquilo que vamos sempre adiando, pois a rotina do dia a dia nem sempre o permite. Ocupar a nossa cabeça acho que é mesmo o melhor método para avançarmos.
Devemos viver um dia de cada vez, sabendo que os primeiros dias da quimioterapia são os piores, mas que com o passar do tempo vão melhorando. Sinto que foi importante encarar o tratamento desta forma
E de que forma é que impactou a sua saúde mental? Na época sentiu necessidade de procurar algum tipo de acompanhamento psicológico para gerir as suas emoções?
Não senti necessidade para pedir apoio psicológico. Achei que tinha uma série de prioridades - que eram seguir à risca o protocolo desenhado para a minha situação, estar em família e serena - e para mim isso foi suficiente. Com este método sinto que consegui lidar com esta “viagem” na minha vida de forma bastante harmoniosa, por incrível que pareça dizer isto.
Decidiu tornar pública a sua doença apenas após a cirurgia. Como é que lidou com a exposição pública que se seguiu num momento tão delicado com esse?
Eu decidi tornar pública a minha doença apenas após a cirurgia e porque eu soube que, de uma forma ou de outra, ela iria ser tornada pública. Tentei controlar o tema, emitindo um comunicado de imprensa para todas as redações, garantindo desta forma que a informação veiculada era verídica e que nada seria redimensionado, e utilizado de forma indevida. Após este período inicial da doença e depois de terminado todo o protocolo de tratamentos, promovi uma conferência de imprensa, respondendo a todas as questões que me foram colocadas, não havendo necessidade de abordar mais este assunto, pois já estava tudo explicado.
Eu senti que nunca mais ia recuperar o que era antes, mas não só recuperei como sinto que fiquei ainda mais forte, vital, mais energética e mais bonita
Teve receio que a sua perceção pública mudasse e que o público a tratasse de forma diferente a partir daí?
Claro que não. Nunca tal me passou pela cabeça. O que aconteceu foi uma identificação ainda maior por parte de tantas pessoas que comigo se cruzam no dia a dia.
Em 2009, num período pós-tratamento, descobriu que estava grávida pela terceira vez. Esta gravidez era algo que nunca deveria ter acontecido, apesar de ter um DIU. Pode explicar o que aconteceu?
Descobri que estava grávida já com 17 semanas de gestação, num período de pós tratamento, em que grande maioria das mulheres ficam inférteis e tendo um dispositivo intrauterino (DIU). O que de facto aconteceu foi uma segunda neglicência médica, ao terem-me colocado um DIU quando estava grávida de um mês, pois não fizeram o exame complementar habitual sempre que o aparelho é colocado.
Fiz tudo aquilo que sempre quis fazer e nunca tinha tido tempo. […] Ocupar a nossa cabeça acho que é mesmo o melhor método para avançarmos
Contra todas as recomendações, decidiu avançar com a gravidez considerada de alto risco. Na época tinha consciência dos riscos que isso representava para si e que poderia ser fatal? Que cenários equacionou na sua cabeça?
Eu não fui contra todas as recomendações médicas, fui contra algumas recomendações que recebi, muitas delas divergentes, e teria de optar por uma com alguma celeridade. Após ter sido realizada uma comissão ética no Hospital de Santa Maria e na Maternidade de Alfredo da Costa, junto do Prof. Jorge Branco (profissional de saúde que durante mais de 30 anos lidou com todas as situações possíveis e imaginárias) tomei a decisão de avançar com a gravidez. Até porque interrompê-la com 20 semanas de gestação não seria inócuo para o bebé e para mim também. Não era uma possibilidade. Felizmente, em boa hora, pois tenho a Maria Luísa comigo, uma menina especial, uma “fura-vidas” já com 13 anos.
Em abril de 2013 lançou ‘Também Há Finais Felizes’ onde relatou a sua batalha contra a doença e falou abertamente sobre o tema. Escrever este livro foi uma espécie de catarse para si?
Foi. Decidi fazê-lo cinco anos após ter terminado o protocolo clínico e com o devido distanciamento físico e emocional. Mas fi-lo sobretudo para esclarecimentos vários, sobretudo sobre a neglicência médica. Se eu tivesse ficado pela primeira indicação médica, de que “não seria nada”, se eu tivesse confiado nessa indicação, certamente não estaria aqui a responder a estas questões. Percebi mais tarde, ao falar com outras pacientes, que não é uma prática isolada. No fundo, este livro teve como propósito alertar para esta situação, que pode acontecer a outras mulheres. Continuo a acreditar, de forma cega, na investigação, na medicina, nos médicos, em todas as equipas médicas com quem me cruzei, mas por vezes, contactamos com alguém que avalia o tema de forma despretensiosa e leve, e não com a seriedade que ela deve ter. E nós, enquanto pacientes, não devemos nunca ficar com dúvidas, apenas com certezas.
Não era uma possibilidade [interromper a gravidez]. Felizmente, em boa hora, pois tenho a Maria Luísa comigo, uma menina especial, uma “fura-vidas” já com 13 anos
Passados 14 anos, ainda tem de ter acompanhamento médico regular e submeter-se a exames de rotina?
Sim, obviamente, e nunca o deixarei de o fazer. Acho muito importante manter a rotina, manter o acompanhamento médico muito regular, fazer todos os exames disponibilizados, pois a prevenção é a maior ferramenta que temos ao nosso dispor. É fundamental fazer sempre os rastreios, policiarmo-nos, pois isso pode mudar a nossa vida. Eu faço os exames com a regularidade que é necessária e que estão estabelecidos, não deixo passar.
Qual o maior ensinamento que retira daquele que, provavelmente, foi o período mais duro e difícil da sua vida?
Que o improvável provavelmente pode vir a acontecer. Que não somos imortais. Que não acontece só aos outros e que temos de estar preparados para tudo. Este foi um dos períodos mais difíceis, já tive outros tão duros e tão difíceis como este. Temos de encarar a doença como um obstáculo que temos de ultrapassar com determinação. Como tudo na vida, eu encaro desta forma todos os obstáculos. Espero manter sempre esta minha forma de estar, que tento passar para os meus filhos. Apostar numa boa qualidade de vida, numa boa alimentação, fazer algum exercício e apostar muito na prevenção é, para mim, uma prioridade. Rir muito e viver, aproveitar cada dia. Na altura do tratamento perguntei ao meu médico se a quimioterapia, que é tão agressiva para o nosso organismo, me iria retirar anos de vida, e obviamente que o médico me respondeu que não, que estes tratamentos nos dão anos de vida.
Se eu tivesse ficado pela primeira indicação médica, de que “não seria nada”, se eu tivesse confiado nessa indicação, certamente não estaria aqui a responder a estas questões
No mês em que se assinala o ‘Outubro Rosa’ foi escolhida para ser embaixadora da 5ª edição da campanha solidária da Ausonia, #UMAPORTODAS, a favor da Liga Portuguesa Contra o Cancro (LPCC). Por que motivo decidiu associar-se a esta iniciativa e quais os seus objetivos?
Identifiquei-me de imediato com o lema da campanha #UMAPORTODAS, uma mensagem forte e de união, imprescindível em todos os momentos, mas especialmente nesta causa que afeta tantas mulheres. Espero trazer positivismo e esperança a muitas mulheres que, tal como eu, enfrentam a doença, de ser uma voz ativa na sensibilização para a importância do rasteio do cancro da mama, permitindo um diagnóstico precoce e aumentando a probabilidade de cura, reduzindo o impacto da doença e dos tratamentos na mulher.
Esta campanha permite apoiar a LPCC na sua missão de prevenção do cancro e no estímulo à formação e investigação em oncologia, apoiando e consciencializando para a importância do avanço científico. De salientar que, com as campanhas de Ausonia #UMAPORTODAS realizadas nos últimos quatro anos, já foram entregues 525.000 minutos de investigação contra o cancro da mama, tempo correspondente a um ano de investigação, numa contribuição de mais de 60.000€ à LPCC.
É fundamental fazer sempre os rastreios, policiarmo-nos, pois isso pode mudar a nossa vida
Que mensagem gostaria de deixar a quem recebeu um diagnóstico de cancro da mama ou está prestes a iniciar tratamento oncológico?
Para quem está a receber uma notícia de diagnóstico de cancro de mama ou está prestes a iniciar o tratamento oncológico, gostaria de lhes dizer aquilo que para mim me ajudou bastante: pensar que o pior já passou, que é o momento em que recebemos a notícia. Para mim foi muito importante seguir à risca tudo o que me foi recomendado a nível de tratamentos. É pensar um dia de cada vez, se o dia de hoje não foi bom, o de amanhã será melhor. Eu acredito sempre no amanhã. Acreditar que há muitos finais felizes.
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