Se há uma constante na nossa sociedade é a nossa tendência para criar conflitos entre diferentes gerações. O setor da saúde não é alheio a este fenómeno. Se, por um lado temos, “no meu tempo” e “os médicos de hoje em dia”, por outro lado, temos “os tempos mudaram” e “eles já não sabem”. Estas expressões exemplificam o discurso dos mais velhos ao criticar a forma de agir, viver e trabalhar dos mais jovens, assim como o sentimento de combate e revolta dos mais jovens que querem suplantar os que vieram antes de si.
Um artigo recente no The Wall Street Journal “Young Doctors Want Work-Life Balance. Older Doctors Say That’s Not the Job” explora a questão “Será a profissão médica um emprego ou uma vocação?”. O artigo começa por desconstruir como durante décadas, os médicos aceitavam trabalhar longas horas, acreditando que era o seu dever sacrificarem-se em nome da prestação de cuidados de saúde. Efetivamente, o termo “resident” no contexto da carreira médica, tem a sua origem na construção dos planos de formação dos Estados Unidos da América e Europa Ocidental, onde era expectável que os médicos residissem nos Hospitais durante a sua formação. Embora essa realidade tenha vindo a mudar com a definição de limites de horas extraordinárias e não se verifique esta permanência quase total em contexto hospitalar, a verdade é que, em muitos locais de Internato e especialidades, o mais frequente é que sejam ultrapassados os limites de 40 horas semanais e de 150 horas anuais de trabalho suplementar.
É verdade que “neste tempo” que vivemos, “os médicos de hoje em dia” estão a afastar-se desta visão e a reclamar por tempo para a vida pessoal e social, mas importa refletir o que nos levou até aqui:
- Décadas de descontentamento e protesto da classe médica, de desvalorização social e de falta de reconhecimento e progressão na carreira médica;
- Evidência da elevada prevalência de burnout, nomeadamente exaustão emocional, despersonalização e diminuição da realização profissional, de forma transversal na classe médica e, em particular, nos médicos internos;
- Fatores sociais como a perda de poder de compra, inflação e aumento do custo de vida, sendo que, em certas cidades, uma formação de quase 13 anos para exercer medicina especializada já não traduz uma situação tão confortável de vida como no passado, devido à redução da remuneração efetiva;
Estes fatores são sobretudo evidentes no setor público, incapaz de apresentar soluções competitivas, face ao aumento da oferta no setor privado e social. Efetivamente, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) está refém de um processo de feedback negativo em que a saída de profissionais gera uma sobrecarga nos que ficam, com consequente saída de mais profissionais e agravamento do conflito geracional.
Todos estes fatores obviamente levam os jovens médicos a olharem para a carreira médica com um misto de vocação e profissão, procurando ter um equilíbrio entre a vida profissional e pessoal. A 3ª edição do Inquérito de Satisfação do Internato Médico, uma iniciativa desenvolvida pelo Conselho Nacional do Médico Interno da Ordem dos Médicos (CNMI), em parceria com o Conselho Nacional do Internato Médico (CNIM) e a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), revela isso mesmo “Mais de um terço (36%) dos médicos internos admite que não voltaria a escolher esta profissão por dificuldades em conciliar a carreira com a vida familiar, falta de tempo para estudar no horário laboral e condições de trabalho”.
Importa, no entanto, referir que apesar de os jovens médicos terem hoje uma visão diferente, não significa que os mesmos tenham, possam ou devam desvalorizar décadas de experiência e aprendizagem. Aliás, considero que esta transferência de conhecimento intergeracional torna a área da saúde — e, em particular, a profissão médica — única: os médicos mais velhos tentam ensinar técnicas, raciocínios e abordagens clínicas, transmitem uma perspectiva madura, experiente e humanística da arte da medicina e garantem a continuidade e sustentabilidade dos recursos humanos em saúde.
Concluindo, embora os “nossos tempos” estejam em constante mudança, mais do que fomentar discursos que gerem conflitos e criem um fosso geracional, devemos extrair o melhor das diferentes gerações: experiência e maturidade, com energia, criatividade e inovação. Seniores e jovens devem trabalhar em conjunto para melhorar as condições de formação e de trabalho de todos, que permita um equilíbrio entre a vida pessoal e profissional, pois só assim será possível garantir a sustentabilidade e qualidade da carreira médica.
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