A fatura de 45 milhões de dólares por três milhões de doses da vacina Covaxin, do laboratório indiano Bharat Biotech, chegou no dia 18 de março à mesa de Luis Ricardo Miranda, responsável do departamento de importação de medicamentos do Ministério da Saúde.
A vacina ainda não tinha sido entregue. Mas o que intrigou Miranda, que se recusou a autorizar o pagamento, foi que o contrato (no valor total de 300 milhões de dólares) a que correspondia aquela fatura não mencionava a Madison Biotech, empresa de Singapura que a enviou e que seria de fachada.
Houve vários sinais de alerta, segundo Miranda, que testemunhou na sexta-feira perante a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), instalada há dois meses pelo Senado para definir as responsabilidades do governo na gestão da pandemia que já deixou mais de 500 mil mortos no Brasil.
Uma operação ainda mais estranha porque Bolsonaro, que regularmente desvaloriza os conselhos de especialistas sobre a pandemia, tinha recusado anteriormente ofertas de vacinas mais baratas e eficazes.
Em sequência, Miranda disse ter recebido telefonemas dos seus chefes, exercendo o que chamou de pressão "atípica e excessiva" para aprovar a transação. Logo depois surgiram outras irregularidades no acordo e o governo acabou por cancelar a operação.
Segundo o jornal O Estado de S.Paulo, a Bharat Biotech inicialmente cotou a dose do imunizante em 1,34 dólares, mas o Brasil concordou em pagar 15 dólares pelo produto, mais do que qualquer outra vacina que comprou.
Miranda expressou as suas preocupações ao irmão, o deputado Luis Miranda (DEM-DF), apoiador do Bolsonaro, que teria recebido ambos no dia 20 de março na sua residência em Brasília.
De acordo com o que os irmãos Miranda contaram na CPI, Bolsonaro garantiu que iria transmitir o caso à Polícia Federal. Algo que ele aparentemente nunca fez, o que pode levar a CPI esta semana a denunciar o presidente ao Ministério Público por "prevaricação".
A oposição convocou protestos na quarta-feira e no sábado para exigir um 'impeachment' do chefe de Estado.
A trama complica-se
Segundo o deputado Miranda, na reunião de 20 de março, Bolsonaro expressou preocupação com o impacto político do caso e as suas suspeitas sobre o autor do esquema. "'Se eu mexo nisso aí, você sabe a merda que vai dar. Isso deve ser coisa de 'fulano'", contou o deputado.
Pressionado pelos senadores a identificar o "Fulano", o deputado insistiu que não se lembrava, até que, à beira das lágrimas, finalmente revelou o nome: Ricardo Barros (PP-PR), um poderoso deputado que chefia a bancada governista.
"Vou ser perseguido, já perdi todos os espaços, já perdi tudo o que eu tenho. Eu sei o que vai acontecer comigo", disse Miranda, que chegou à sessão com um colete à prova de balas.
Barros, ex-ministro da Saúde, negou ter cometido qualquer ilegalidade, assim como Bolsonaro, que alega que o contrato acabou rescindido e acusa os irmãos Miranda de uma campanha de difamação contra ele.
"Foi a primeira grande bomba" que veio à tona nos dois meses de trabalho da CPI, disse à AFP Geraldo Monteiro, cientista político da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
"A gente tem vários depoimentos que mostram, com clareza, negligência e negacionismo do governo federal, todos os erros cometidos no combate à pandemia, mas sem ter algum facto muito grave que pudesse ser a marca da CPI e contribuir para um possível impeachment do presidente".
A investigação parece, portanto, caminhar para a esfera penal, embora os observadores considerem improvável que o procurador-geral da República, Augusto Aras, aliado de Bolsonaro, solicite a abertura de uma investigação no Supremo Tribunal Federal.
O problema mais imediato para o presidente, em queda acentuada de popularidade, é Barros.
Se o proteger, Bolsonaro arruinará a plataforma anticorrupção que o ajudou a chegar à Presidência em 2018. Se o abandonar, corre o risco de romper a sua aliança com o 'Centrão', um grupo heterogéneo de partidos conservadores especializados em negociar vantagens orçamentárias.
Essa aliança protegeu o presidente da abertura de qualquer um dos mais de cem pedidos de impeachment que se acumulam contra ele na Câmara dos Deputados.
"Barros pode começar a pressionar o partido dele a romper com Bolsonaro. Bolsonaro vai perdendo popularidade, o impeachment vai ganhando força", disse Michael Mohallem, professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas.
À espera de um desenlace da trama, a hashtag #CovaxinGate tornou-se popular nas redes sociais. E uma mensagem viralizou: "Vacina Covaxin é tão forte que vai derrubar o Bolsonaro".
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