Para um omnívoro, folhear este livro é como descobrir uma nova forma de viver. Para um vegetariano, é uma lufada de ar fresco com novas receitas, novos ingredientes e novas formas de cozinhar. Olhar para as fotografias já é uma festa, com todo o cuidado e carinho que Gabriela Oliveira põe em cada prato. Lendo um pouco, constatamos que é possível seguir uma alimentação perfeitamente equilibrada sem produtos de origem animal. Estão lá todos os dados sobre proteínas, vitaminas e minerais que necessitamos para sermos saudáveis. Mais importante ainda, esta obra serve como manifesto contra uma alimentação demasiado processada e industrializada, que começa logo a fornecer demasiado açúcar nas primeiras papas do bebé. “Eu não compreendo, ou melhor, não aceito, que a indústria alimentar continue a incluir açúcar nas papas para lactentes”, diz a autora nesta entrevista.
Sei que tinha muitos pedidos para voltar a fazer um livro com receitas vegetarianas dedicado a crianças. Mas gostava de desfazer o preconceito que ainda existe quanto à alimentação vegetariana não ser completa. Como explicar que se pode dar uma alimentação saudável às crianças sem produtos de origem animal?
Como eu refiro no livro, o importante na alimentação dos adultos ou das crianças, e nos bebés em particular, é ter presente o conjunto de nutrientes que eles necessitam. E nós podemos encontrar esses nutrientes em diferentes alimentos, nomeadamente nos alimentos de origem vegetal. Há sempre uma grande preocupação dos pais em relação às proteínas, e é explicado detalhadamente no livro onde podemos ir buscar essas proteínas de uma forma completa, e também como é que nós podemos combinar as proteínas de origem vegetal de forma a serem melhor aproveitadas, como a questão do ferro, que é importante.
Um elemento que geralmente vamos buscar à carne…
Sim. Sabemos que há um leque alargado de alimentos de origem vegetal que é rico em proteínas, sobretudo no caso das leguminosas – e quando falamos em leguminosas, estamos a falar de feijão, de grão, das lentilhas, das favas, das ervilhas (secas ou congeladas) – e que são uma ótima fonte proteica e de minerais importantes como o ferro, o magnésio, o zinco e outros elementos. Para além das leguminosas, temos outra fonte proteica importante e de minerais, que são os cereais integrais, o tofu, o seitan e o tempeh, que são três alimentos característicos da culinária vegetariana. E depois também podemos complementar as refeições com as proteínas dos frutos secos. Toda a gama de frutos secos ou oleaginosas como as amêndoas, os pinhões, as avelãs, os pinhões, os cajus, que as pessoas habitualmente olham como snack, não como um alimento importante na refeição. Daí algumas receitas em que eu combino vários tipos de proteína, por exemplo bifinho de tofu com molho de caju: temos aqui dois alimentos proteicos, o tofu e o caju que, triturado, vai fazer um molho. O caju é especialmente rico em ferro.
Que outros exemplos pode dar de combinações de alimentos?
Falo várias vezes, ao longo do livro, da combinação fácil de uma leguminosa e um cereal, de forma a obter proteínas completas: arroz com feijão, massa com grão, rancho de grão com pleurotos (cogumelos). Que se consegue com ingredientes acessíveis, que as pessoas até terão na dispensa ou encontram em supermercados normais. E podem preparar refeições para as crianças e, ao mesmo tempo, também para os pais. Mesmo para aqueles pais que estão menos familiarizados com os alimentos típicos da culinária vegetariana podem recorrer aos acessíveis, às tais leguminosas, aos cereais, e preparar refeições que sejam apelativas, saudáveis, saborosas.
Tem-se falado muito sobre a quantidade enorme de comprimidos que as crianças tomam hoje em dia por causa da hiperatividade. Por um lado, são educadas de uma forma muito sedentária, estão sentadas o dia todo, não brincam na rua; por outro lado, têm uma alimentação muito rica em calorias. Como é que a alimentação pode prevenir este excesso de medicação que irá provocar problemas no futuro?
A alimentação pode ajudar a que as crianças tenham uma vida mais equilibrada, nas suas várias vertentes. O problema da hiperatividade tem a ver com vários factores, mas sabe-se que a alimentação pode ter um papel relevante. Mas como é que a alimentação pode contribuir para que as crianças fiquem mais calmas, mais atentas e com boa capacidade de reflexão e de atenção? Um dos pormenores é não dar em excesso hidratos de carbono refinados e evitar os açúcares, os aditivos e as gorduras saturadas. A dificuldade de atenção pode estar relacionada com o consumo excessivo dos hidratos simples e refinados e com o excesso de açúcar que está presente nos mais diversos alimentos e nas várias refeições ao longo do dia. E não é só das crianças em idade escolar, é logo no início, nos bebés. É uma coisa que eu foco bastante no livro, e aí este livro distingue-se dos outros, que é zero açúcar. Nós podemos, de facto, dar às crianças sobremesas, papas, cremes que sejam saborosos e doces mas sem adição de açúcar. É um grande erro da indústria alimentar e dos pais andar a oferecer constantemente alimentos preparados às crianças. E posso dar o exemplo: ao pequeno almoço consomem açúcar nos cereais preparados, que pode conter uma quantidade equivalente a dois, três ou quatro pacotes de açúcar numa simples taça de cereais. E se beberem um iogurte liquido a meio da manhã, que os pais acham que é muito bom e é prático, tem mais um pacote de açúcar lá dentro, pelo menos. Se depois comerem umas bolachinhas, já para não falar daquele pão…
O bolycao?
Sim. A quantidade exageradíssima de açúcar depois reflete-se no comportamento da criança e também no excesso de peso. Há crianças que até têm um peso tido normal, mas que na verdade é um peso inflacionado, porque é do açúcar que consomem. Ao consumirem esses alimentos açucarados, estão a tirar lugar a outros que não são ingeridos. Eles substituem a fruta, o pão simples. A criança vai-se desabituando dos sabores naturais e vai selecionado o seu paladar em função dos alimentos com açúcar.
Veja na página seguinte: intolerâncias e alergias alimentares
Isso cria um certo vício na criança. Estamos a falar nos cereais, no leite com chocolate…
Exatamente porque é algo intencional por parte da indústria alimentar.
Portanto, quanto mais cedo a criança se habituar a estes sabores naturais, melhor?
O que se espera é que os bebés façam a introdução alimentar através de alimentos simples e preparados carinhosamente em casa, pela mãe, pelo pai, pelos avós. E o livro dá essas receitas mais básicas, mais simples, dos purés, das sopas. É evitar que os pais vão comprar comida industrial quando podem faze-la em casa, escolhendo os ingredientes e tendo a certeza do processo com que é produzido. E é muito rápido. Não demora a fazer purés de fruta, poderá demorar cinco, dez minutos. Há a ideia de não vale a pena fazer as papas em casa, que é complicado. Na verdade, nas várias páginas dedicadas à iniciação dos alimentos, mostro como podemos variar. Porque as papas industriais são praticamente papa de arroz sem glúten as primeiras, e depois a de trigo e pouco mais. Eu explico como se pode fazer com ingredientes muito diferentes, com quinoa, com millet, cevada, centeio, arroz, usando farinhas que são fáceis de adquirir nos supermercados e que são baratas. Pode-se fazer papas com diferentes frutas, em 10 minutos, de uma forma segura, que podem levar ou não o leite do bebé (materno ou artificial). Sobretudo, evitar as papas industriais açucaradas. Porque muitos pais não têm noção de que as papas aconselháveis nos primeiros quatro meses contêm sacarose e dextrose. Eu não compreendo, ou melhor, eu não aceito, que a indústria alimentar continue a incluir açúcar nas papas para lactentes, para bebés muito pequeninos a partir dos quatro meses. Não é aceitável que isto aconteça, mas sucede. Então os pais têm alternativa, ou procuram papas biológicas que também existem no mercado, ou melhor ainda, podem fazer em casa de uma forma bastante económica.
Há pouco falou no glúten, que é outra questão muito discutida hoje em dia. As intolerâncias e alergias alimentares ao glúten, à lactose, aos amendoins encontram alternativas neste livro?
O livro foi pensado para chegar o máximo possível a todas as crianças e bebés, a todos os pais, quer sejam vegetarianos ou não, com particular incidência nos casos de alergias. Este livro é zero lactose e a maioria das receitas também é zero glúten. Porque é relativamente simples fazer adaptações, das farinhas de trigo, espelta e outras que contêm glúten, substituir por outras. Fala-se muito também na diversificação dos alimentos, porque havia até agora um excesso de utilização do trigo para todos os alimentos. E na verdade não temos que usar apenas trigo, é apenas um num conjunto muito grande de cereais disponível.
É a indústria alimentar a levar-nos para alimentos uniformizados?
A questão é se nós ingerimos trigo em todas as refeições ao longo do dia, porque também não há muito essa noção. Quando os pais vão refletir, reparam que nos cereais da manhã a base é trigo, as bolachinhas a meio da manhã é trigo, o pão ao lanche é trigo, se comeram massas ao almoço é trigo, e à noite, se for um couscous, é trigo novamente. A dificuldade muitas vezes não tem a ver com uma intolerância ao trigo mas com a sobre exposição ao trigo, que faz com que o organismo fique cansado. Dai também o meu cuidado em dar diferentes opções, não só a pensar nas crianças com intolerâncias ou alergias alimentares, mas também para aqueles pais que já estão conscientes e alertados e que têm interesse em diversificar ao máximo as fontes de nutrientes e escolher as fontes de cereais para preparação das receitas.
Veja na página seguinte: A experiência de uma família vegetariana
A Gabriela tem três filhos que também são vegetarianos. Se algum dia eles um deles lhe pedir para experimentar um hambúrguer com os amigos, ou um lanche igual ao que os outros meninos comem na escola, é tolerante a esse ponto, deixa-os experimentar?
Essa questão ainda não se colocou e não é por eles ainda não terem idade para pedir, porque o mais velho já tem 16 anos. Porque eles têm liberdade de pedir e de provar, a partir de certa idade; poderiam fazer essa escolha se quisessem. Mas nunca quiseram, porque uma criança que cresce numa família vegetariana olha para os animais de uma forma diferente, com cuidado, com atenção, com carinho, não os quer ver no prato. Então o entendimento de um hambúrguer de vaca para eles não é comida, é algo que não lhes apetece provar. Isso não impede de conviver com amigos, nunca impediu de ir a festas de aniversário, a saídas, a marcar jantares com os colegas; não os impede de ter uma vida social igual às outras crianças. Simplesmente eles estão mais atentos àquilo que comem. Se vão a uma festa de aniversário, os outros pais sabem que são vegetarianos e vão ter alternativas vegetarianas. É muito fácil de ter uma pizza, algo que eles possam comer.
E são a prova viva que eles crescem bem e são saudáveis, sem nunca terem precisado de consumir carne ou peixe.
Sim, porque até muitas vezes o que acontece é o inverso. Muitas crianças, ao conviverem com crianças vegetarianas, ficam muito curiosas e gostam de provar a comida que eles levam. Em festas de escola em que há uma coisa que se põe na mesa que é vegetariano, as outras crianças vão lá provar. Eu costumo não dizer, só digo “trago aqui uma coisa muito boa!”. E só depois de comerem e gostarem é que eu digo que é vegetariano.
Este livro surge na sequência do “Cozinha Vegetariana Para Quem Quer Poupar” e “Cozinha Vegetariana Para Quem Quer Ser Saudável”. Pode resumir o conceito?
Este livro surgiu na sequência de um outro que eu tinha publicado dez anos atrás, que na altura teve bastante procura e acabou por esgotar. Dá sugestões aos pais que queiram produzir refeições vegetarianas e fazer uma alimentação saudável para os filhos, podendo variar e com um leque de opções. Explica como é que se podem fazer papas caseiras para os bebés, utilizar os cereais integrais sem açúcar, como é que se podem fazer sopas completas sem usar a carne ou o peixe, utilizando as leguminosas, o tofu; e a partir de que idade é que podemos dar essas proteínas vegetarianas aos bebés. Para crianças mais crescidas, explica como é que podemos preparar refeições atrativas e saborosas e incentivá-las a comer mais legumes, mais fruta e mais leguminosas. E também tem a preocupação de dar sugestões de receitas sem açúcar, utilizando nomeadamente as tâmaras para sobremesas e snacks saudáveis. A ideia com que fiquei, ao longo destes anos, foi que havia realmente uma preocupação dos pais, nas festas de aniversário do bebé, no primeiro, segundo ano, com o bebé a querer comer o bolo e não poder, porque está cheio de açúcar e conservantes. Foi mesmo para dar a ideia de que sim, podem preparar uma mesa completa, bonita, saudável, em que o bebé pode provar de tudo, porque afinal ele é que é o aniversariante. E ao mesmo tempo, isso é bom para a família porque tem oportunidade de experimentar e preparar sobremesas que também são saudáveis, mesmo para nós, adultos.
Há realmente nas festas de aniversário infantis, talvez não no primeiro ano mas nos seguintes, um excesso de alimentos açucarados: refrigerantes, gomas, chocolates…
Há uma sobre-exposição das crianças aos açúcares sob diferentes formas, nas bebidas, nos refrigerantes, nos bolos, nas bolachas, nos snacks. É em excesso e muitas vezes os açúcares estão associados às gorduras saturadas. O que não é bom, e os pais sabem que não é bom. Mas tem tendência a ceder à pressão da criança.
Porque é um dia de festa, mas depois todas as semanas há festas na escola, nos avós...
A Organização Mundial de Saúde está a alertar para a taxa de obesidade crescente cada vez mais precoce no Ocidente e, por outro lado para todas as doenças associadas ao excesso de peso e à vida sedentária. É também nesse sentido que se nós promovermos hábitos saudáveis, desde que as crianças nascem, nós estamos não só a assegurar uma boa saúde na infância mas também a dar as bases, os alicerces, de uma vida saudável no futuro. Uma criança que cresça com hábitos regulares de consumo de fruta, vegetais, cereais integrais irá interiorizar a ideia e esses princípios irão manter-se na vida adulta. Claro que pode haver exceções, pode haver desvios, pode haver muita coisa, mas a base ficou. O inverso também acontece: se nós, na infância, oferecermos continuadamente alimentos açucarados, processados, hipercalóricos e com excesso de gordura, mesmo que a criança aparentemente não mostre um excesso de peso, a possibilidade de vir a ter problemas no futuro são grandes. E isto não é uma afirmação minha, são estudos, são factos de há bastantes anos que mostram isso.
Ana César Costa
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