No outono de 2003, estreou o filme “Kill Bill vol. 1” e o mundo ficou a conhecer The Bride, a protagonista anti-heroína, violenta, injustiçada e injusta, cuja história de vingança o realizador Quentin Tarantino usou para fazer a sua ode à cultura pop, e aos géneros cinematográficos da sua infância.
No verão de 2022, a personagem de espada samurai em riste dá o mote ao mais recente espaço a abrir na Rua de São Paulo, o Bloody Mary.
O protagonista, aqui, é Miguel Mouzinho, cara conhecida de outros filmes, como Má-sá, Jaquinzinho, The Burger Factory ou Original, e que de novo mergulha no seu universo gustativo e afetivo para dar corpo a outro projeto na cena gastronómica de Lisboa. É que Mouzinho viveu em Macau, tem negócios em Bali — a Ásia está-lhe no sangue. Mas o Bloody Mary não é um restaurante asiático.
O Bloody Mary, antes de mais, é um espaço aberto ao público, servindo refeições, entradas, sobremesas e cocktails, do meio-dia à uma (quarta e domingo) ou duas da manhã (quinta a sábado). Um espaço versátil.
O Bloody Mary é, também, o que se convencionou chamar um restaurante de fusão. Tal como em Kill Bill, onde Tarantino evoca a história do cinema asiático — da película ao anime, guerreiros samurai e heróis do kung fu pelo meio — o Bloody Mary de Miguel Mouzinho parte de uma sentida homenagem à rua asiática, com os seus perfumes e letreiros neon, a sua promessa de aventura — da carta à configuração do espaço. Mas, também como Tarantino, que na dramaticidade do Oriente injeta as anfetaminas do spaghetti western, do trash e dos filmes da blaxploitation — o melhor da subversão ocidental — também
Mouzinho e o Bloody Mary apresentam uma Ásia assumidamente apropriada, assumidamente sua, cinematográfica, televisiva, digital.
Uma Ásia subvertida por referências gastronómicas de outras latitudes. Às Batatas Bhaji com Queijo Puri e Papa Dum com Cominhos (7 euros e 5 euros), às Lascas de Robalo, servidas com citronela, tom yum e arroz negro (17 euros), aos Dim Sum (de vaca, com chalota e cebolinho, ou recheados de camarão e bambu, 9,5 euros e 10 euros por quatro unidades), aos Bao (de vazia, daiko e salsa, 9 euros, ou camarão, coentros, kimchi e pickle de cenoura, 10 euros), às Gyosas (11 euros por seis unidades), ao Ramen (de vaca, 15 euros, camarão 14 euros), Caril (de 14 euros a 16 euros) e Noodles (14 euros a 17 euros), que nos transportam às ruas e praias do Oriente, do Japão ao sudeste asiático, a proposta do Bloody Mary soma Ceviche (13 euros a 15 euros), Tacos (7 euros a 9 euros) e um Tártaro de Novilho (15 euros), todos executados com profundo conhecimento e que fazem do Bloody Mary uma experiência gastronómica alucinante. Um east meets west que pode ser experimentado num único prato: o Arroz de Carabineiro e Lima (23 euros) é estrondoso.
A carta está organizada não por origens culturais ou geográficas, mas sim técnicas de cozinha, com categorias como Cru, Tacos, Vapor, Quente e Noodles.
A entrada do Bloody Mary, para a Rua de São Paulo, faz-se pelo edifício do Elevador da Bica. Uma placa da Carris anuncia que, no Bloody Mary, verdadeiramente se senta à mesa de um monumento nacional.
O espaço é composto por quatro áreas. Um longo bar, à entrada, é o pouso ideal para aperitivos e digestivos. A carta de bebidas do Bloody Mary dá especial destaque ao Sake e os originais cocktails que lhe servem de montra (11 euros a 13 euros). Além dos sakes, menção de honra para o cripto punch - um cocktail de mezcal, lima e maracujá que, apesar das cores vibrantes dos ingredientes, lhe chega à mesa (ou balcão) completamente transparente, fruto de um processo de filtragem.
Ao amplíssimo e luminoso pé-direito do bar segue-se uma sala de cozinha aberta, íntima e bem iluminada, através de pequenos candeeiros de luz quente, nas mesas. Grandes redes de arame, cozidas a leds azuis, transformam o teto num quase céu estrelado, de repente mais Wong Kar Wai que Tarantino.
A azáfama controlada dos cozinheiros, as cadeiras trazidas de bali e as grandes prateleiras de madeira sólida, bem trabalhada, tornam este, ao mesmo tempo, o espaço mais acolhedor e mais “exótico” do Bloody Mary.
Subindo um lanço de escadas, uma sala privada, apontada a tapetes de “chinoiserie” e banquetas autenticamente chinesas — se bem que, no Bloody Mary, essa nunca é bem a questão. O critério é sempre o do prazer e da volúpia da viagem.
A última sala do Bloody Mary é, de certa maneira, o melhor sítio para começar ou acabar a noite. Numa mezanine com vista para o bar, o da entrada, um conjunto de mesas para dois servem de âncora perfeita a uma longa de noite de conversa, enquanto se vê entrar pelas portas do Bloody Mary o Mundo inteiro da Rua de Paulo, e à nossa volta rodopiam os sabores e aromas de pelo menos três continentes. Uma caravana gastronómica que segue ao som da batuta da descoberta, da partilha, da diversão gregária e que nos lembra, afinal, do que são feitas as novas rotas da seda.
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