Depois de sucessivos alertas nacionais e internacionais para o aumento injustificado de cesarianas, e de haver um compromisso desde o Plano Nacional de Saúde de 2004 no sentido de reduzir a taxa nacional para 25 por cento, os hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS) continuam a ter luz verde para realizarem partos desta natureza acima do que é considerado aceitável, avança o jornal i.

 

Uma análise do i a dados disponíveis no site da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) revela que este ano há 14 hospitais que têm como meta taxas superiores a 30 por cento e dois em que foram negociadas taxas na casa dos 40 por cento. O atual modelo de financiamento permite mesmo que hospitais com melhor desempenho sejam penalizados, enquanto outros que negociaram metas mais altas são favorecidos.

 

Desde 2012 que as regras de contratualização de cuidados no SNS referem que cesarianas feitas acima das metas negociadas são pagas como partos vaginais, mais baratos, o que significa que há um desincentivo financeiro a quem ultrapasse os objetivos. Mas apenas sete hospitais têm metas próximas do patamar considerado adequado pelas boas práticas: totalizarem 20 a 25 por cento dos partos.

 

As metas são negociadas entre os hospitais e as Administrações Regionais de Saúde, sendo depois validadas pela ACSS. Este organismo esclareceu ao i que a postura é de «melhoria contínua», no sentido de em 2015 se normalizar o objetivo de 25 por cento. Mas do ano passado para este, analisou o i, dez hospitais negociaram objetivos menos ambiciosos.

 

Júlio Bilhota Xavier, presidente da Comissão Nacional de Saúde Materna, disse ao i não ter a perceção de que havia hospitais com metas negociadas acima de 40 por cento e admite que há muito existe preocupação em reduzir taxas, considerando que deveria haver uma meta nacional única e não o atual cenário de negociação regional. «Continua a não a haver uma visão nacional», lamentou.

 

Ainda assim, explica que o contexto dos próprios serviços pode ser desfavorável a metas adequadas, sobretudo com aposentações de especialistas em que não tem havido substituição. Foi o que explicou ao i o Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro, que apresentava em agosto a segunda taxa de cesarianas mais elevada no SNS, de 40,5 por cento. Este é um dos casos em que houve recuo da meta face a 2012. No ano passado tiveram um teto de 38 por cento e este ano pediram 42,9 por cento, valor que já está a ser usado como referência nos balanços da ACSS, mas que o hospital diz ainda não estar fechado. «Com frequência temos equipas de urgência de obstetrícia com menos médicos que o desejável, o que pode levar a uma prática clínica mais defensiva aumentando, assim, o número de cesarianas», disse fonte oficial desta unidade. O centro hospitalar diz que a meta do ano passado foi «demasiadamente ambiciosa» e impossível de cumprir, informando contudo haver preocupação com esta realidade e estarem a implementar um plano com vista a redução das taxas.

 

Mas os hospitais que negociaram taxas mais baixas e não as estão a cumprir, mesmo tendo melhores resultados que Trás-os-Montes, terão as penalizações financeiras que este hospital teve no ano passado. É o caso, por exemplo, da Unidade Local de Saúde de Castelo Branco, que está a fazer 26,4 por cento de cesarianas, mas tem uma meta de 22 por cento. Júlio Bilhota Xavier admite uma situação de injustiça mas acredita que esta situação só se resolverá quando, por um lado, avançar a reforma hospitalar na área da saúde materna e, por outro, se o Estado começar a pagar mais por partos vaginais do que por cesarianas. «Temos metade dos blocos com menos de 1500 partos e nove com menos de mil, é natural que tenham menos pessoal e adotem uma postura mais defensiva. Tem de haver concretização política da reforma. Por outro lado, os partos vaginais são mais dispendiosos e menos remunerados. Esta situação devia inverter-se no sentido de haver mais incentivos».

 

A mesma ideia tem Diogo Ayres de Campos, que coordenou os trabalhos da Comissão para a Redução de Taxas de Cesariana, criada em março pelo Governo. O responsável admitiu ao jornal i que não tinha perceção das discrepâncias na contratualização e disse que, no âmbito das suas competências, a comissão vai propor à tutela a fixação de um objetivo de 25 por cento para os hospitais gerais e 27 por cento para os que tenham apoio perinatal diferenciado, ou seja, que sigam gravidezes de risco. Este responsável admite que a transição poderá ser acelerada também com incentivos financeiros.

 

No Hospital de Loures, aquele que tem melhor desempenho a nível nacional, bastou a meta. Questionado sobre o que leva a terem o melhor resultado (uma taxa de 22 por cento de janeiro a agosto), fonte hospitalar explicou que isto resulta de terem contratado com o Estado um teto de 25 por cento, a partir do qual tem de justificar todas as cesarianas.

 

Para Miguel Oliveira da Silva, presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida é uma «vergonha» que hoje o Estado, através das ARS e sem critérios clínicos de base, aceite como objetivos valores de cesarianas na casa dos 35 a 40 por cento, quando esta opção é prejudicial para o recém-nascido. O especialista assinala contudo que deve haver preocupação com os partos no sector privado, onde a média de cesarianas supera os 60 por cento. A mesma ideia é defendida por Júlio Bilhota Xavier.

 

Diogo Ayres de Campos, que irá entregar o relatório pedido pela tutela até ao final do mês, diz que para já não se pronunciaram sobre este sector, informando que há uma proposta na Ordem dos Médicos no sentido de os profissionais que exerçam no privado serem remunerados da mesma forma caso façam um parto vaginal ou por cesariana, algo que hoje ainda não acontece. Júlio Bilhota Xavier e Miguel Oliveira da Silva são perentórios em relação a isto: para a situação nacional melhorar, e o país deixar de ser dos piores a nível mundial e europeu nesta área (segundo o último balanço da OMS, tem o 12.º pior resultado nesta área), o sistema terá de ser encarado como um todo.

 

 

Maria João Pratt

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