Bons pais, defende Eduardo Sá, são aqueles que crescem com a ajuda dos maiores educadores, as crianças. É o seu caso? Dá voz às crianças ao conceder-lhes um «Livro de Reclamações» (primeiro lançado nas livrarias e depois sob a forma de um programa de televisão), mas também fica do lado dos pais quando lhes concede o direito de não contar histórias e a quererem um fim de semana só para eles. É nesta harmonia, aparentemente cheia de más maneiras, que Eduardo Sá, psicólogo, ajuda os crescidos a serem bons pais e, consequentemente, a educar crianças mais felizes.

Que diferenças encontra entre as crianças de hoje e as de há 20 anos atrás?

Encontro sobretudo diferenças nos pais das crianças. Somos a melhor geração que existiu para as crianças. Damos mais colo num mês do que se calhar recebemos em toda a nossa vida e temos um conjunto de atenções fora do vulgar.

Pode dar-nos um exemplo?

Hoje os pais se pensam em divorciar-se procuram um psicólogo para planear essa separação e pedir conselhos em relação ao modo como hão de comunicar com os filhos. Isto era absolutamente inimaginável há 20 anos.

Estaremos psicologicamente preparados para sermos pais?

A única coisa para a qual estamos preparados é para sermos mimados. É claro que também somos capazes de mimar, mas somos sempre pais prematuros. Os grandes educadores da humanidade são as crianças. São elas que nos tornam mais atentos, tolerantes e capazes de desempenharmos o nosso papel. Por isso, só estamos finalmente aptos para sermos pais quando somos avós.

Como é que podemos aprender a ser bons pais?

Fazendo uma asneira, pelo menos, de oito em oito horas. Se dermos o melhor de nós, sem andarmos sempre presos a esta ideia de que temos de ser exemplares e, em vez disso, formos pais em modo de piloto automático, as asneiras nunca são tão grandes. Eu tenho uma fórmula que penso que é infalível para que hajam bons pais e que é a seguinte. O mais possível de colo, o mais possível de autonomia e o quanto baste de autoridade.

Quais as principais características desses pais?

Os bons pais são aqueles que tão depressa dão colo como a seguir são os donos da bola e depois pedem desculpa, mesmo que de uma forma atabalhoada, do género «E se fôssemos comer um gelado?». Esses são os bons pais e que, aliás, são potencialmente a esmagadora maioria dos pais de hoje. Não precisam de ser autoritários, mas não são seguramente anárquicos e bonzinhos.

Veja na página seguinte: O difícil que pode ser dosear a autoridade


Nem sempre é fácil dosear a autoridade...

Não, especialmente quando os adultos tiveram pais autoritários e querem poupar os filhos das experiências por que eles passaram. No entanto, a autoridade é um exercício de bondade e educar as crianças numa democracia de proletariado, em que elas mandam nos pais, é um mau trato como outro qualquer. Nessas circunstâncias, eu prefiro os pais que, depois de dizerem «não», reconhecem que foram exigentes demais e a seguir corrigem tudo isso.

O que mais o surpreendeu durante a produção de o «Livro de Reclamações das Crianças»?

As reclamações foram muito além daquilo que eu esperava. Mais sérias e de um rigor de pormenor, em relação às incongruências e às fragilidades das pessoas crescidas, que me comoveu. Uma das reclamações mais desconcertantes foi a de um menino que dizia que, às vezes, quando ele e a mãe se zangam e acabam por gritar muito um com o outro, a mãe fecha-o no quarto de castigo e ele não percebe por que é que ela fica do lado de fora.

Que outros erros detecta que os bons pais cometem?

Confundir a infância deles com a infância dos filhos e, por exemplo, no Natal oferecerem aos filhos o comboio eléctrico que nunca tiveram e que não tem nada a ver com os filhos mas apenas com os sonhos insatisfeitos da sua infância. Outras vezes, os pais fazem com os filhos as birras que nunca puderam fazer com os seus pais e esperam que as crianças sejam o pai ou a mãe extremosos que nunca tiverem. Estes são talvez os erros mais comuns, que estamos todos habilitados a cometer.

O excesso de peso e a obesidade infantil são outros desafios que se colocam hoje a muitos pais. Até que ponto é que os excessos alimentares das crianças têm uma base psicológica?

Os alimentos são por vezes o ansiolítico mais à mão. Quando a criança está zangada com o mundo é natural que, de repente, se lembre de comer compulsivamente.

Que problemas podem levar as crianças a refugiar-se na comida?

O facto de as empanturrarmos de horas de trabalho. Muitas vezes, as crianças levantam-se às sete horas da manhã, começam a trabalhar às oito e meia e só regressam a casa às oito e meia da noite. Entre escola, actividades extracurriculares e ateliers de tempos livres, elas estão 12 horas a trabalhar e, portanto, não é de espantar que algumas se tornem hiperactivas, tenham problemas alimentares ou défices de atenção.

Por vezes, os pais não têm alternativa...

Por vezes, mas nem sempre. Um dos slogans que tem muito sucesso entre os pais diz que «hoje a vida é muito difícil», mas não é bem assim. Hoje os pais têm máquina de lavar roupa, microondas e um sistema de saúde que, mau ou bom, não existia há duas gerações. O que às vezes está fora do sítio são as hierarquias. Primeiro o trabalho, depois os filhos e em terceiro lugar as relações amorosas. Quando as crianças chegam ao pé dos pais, ávidas de contar o dia e de trocarem mimos, os pais estão numa agitação tão grande que só falta um letreiro que avise «Perigo de explosão».

O que propõe então?

Proponho que os adultos invertam a hierarquia. Em primeiro lugar devem estar as relações amorosas (pais infelizes são sempre piores pais), em segundo lugar vem a relação com os filhos e em terceiro lugar, o trabalho. Se os pais puserem as hierarquias no sítio, as crianças não precisam de mais nada para serem felizes.

Veja na página seguinte: O que os pais podem fazer para tranquilizar as crianças

E como podem os pais acalmar as crianças?

O melhor ansiolítico para as crianças é o brincar. E, portanto, é obrigatório brincar todos os dias e não apenas ao fim-de-semana. Faz bem não só aos miúdos, como também aos adultos.

Acha que a agitação dos pais tem sempre influência nas crianças?

Não acho, tenho a certeza. Imagine um bebé cuja mãe o coloca a dormir sempre da mesma forma e que adormece sensivelmente à mesma hora todos os dias. Até que há um dia em que a mãe convida alguém para ir tomar um café lá a casa e, quase de propósito, o bebé parece ficar alerta. A mãe pensa algo como «Logo hoje que eu queria que ele adormecesse às oito horas como de costume». Se este comportamento do bebé tivesse uma legenda seria «Tu hoje não estás tão calma como de costume logo eu fico de olho em ti».

É possível controlar isto?

Nem sempre, especialmente quando há uma complexidade de fatores a desestabilizar a mãe (uma gravidez indesejada, uma relação conturbada ou complicações da própria gestação). Os problemas nem sempre se resolvem, como que por magia, com uma gravidez. Pelo contrário, o nascimento de um bebé traz para o centro das atenções muitas coisas que a mãe foi varrendo para debaixo do tapete. Felizmente, os bebés são muito terapêuticos e quando as mães não têm uma desarrumação tão grande dentro delas, um recém-nascido pode pôr tudo mais ou menos no lugar e facilmente um bebé em fúria se transforma num anjo.

Como é que os pais podem lidar com a insegurança nas ruas sem obrigar os filhos a viver numa redoma?

Estando atentos. Os nossos antepassados conviveram com tiranossauros. A única diferença é que estes eram verdes e tinham pele de réptil. Agora os tiranossauros são muito parecidos connosco e, às vezes, até são da nossa família. À parte disso, não vale a pena imaginarmos que hoje existem mais perigos do que antigamente. Apenas estamos mais conscientes dos riscos.

Acha que os pais exageram na proteção dos filhos?

Sim. Há mães que se desdobram numa correria sem sentido, como se as crianças não pudessem andar dois quarteirões para ir para a escola e tivessem que estar sob um estado de protecção sem fim.

Veja na página seguinte: Como serão os adultos do futuro

De que forma esse comportamento pode ser negativo para a criança?

Há sempre um dia em que os pais não vão estar presentes o que, se tudo correr bem, será quando os filhos entram no ensino superior. São justamente esses miúdos que, quando têm um primeiro incidente, caem verticalmente. Devia ser proibida a entrada na universidade a todos os estudantes que não tiveram, pelo menos, uma negativa na vida. É preciso errar para crescer!

Olhando para as crianças de hoje que adultos serão no futuro?

É preciso sublinhar que, apesar de tudo o que aqui foi dito, nós estamos a ser melhores pais do que os nossos pais foram. Por sua vez, os nossos filhos vão ser melhores do que nós e quem vai estar com sorte são os nossos netos e assim sucessivamente.

O perfil de Eduardo Sá

Eduardo Sá Psicólogo, psicanalista e professor na Universidade de Coimbra e no Instituto Superior de Psicologia Aplicada, em Lisboa. Diretor da Clínica Bebés & Crescidos, colabora regularmente na imprensa, nomeadamente na revista Pais & Filhos e na Antena 1. Publicou, pela Oficina do Livro, várias obras sobre educação e desenvolvimento infantil, nomeadamente «A Vida Não se Aprende nos Livros», «Tudo o Que o Amor Não É», «Chega-te a Mim e Deixa-te Estar» e, mais recentemente, «Más Maneiras de Sermos Bons Pais». Autor do programa «Livro de Reclamações », emitido na SIC, é casado e tem quatro filhos.

Texto: Vanda Oliveira