Retratos Contados (R.C.): Os Retratos Contados apresentam-se como um projeto único, diferenciador e inovador uma vez que nos focamos numa área diferente do habitual. O nosso objetivo é falar das ligações entre avós e netos, a importância dos avós na vida dos netos e vice-versa. O que é que achas de um projeto como este?

Manuel Marques (M.M.): Eu acho fantástico e ao mesmo tempo maravilhoso! Eu tive avós que foram determinantes para ser a pessoa que sou hoje. Os avós não têm a mesma responsabilidade dos pais. Portanto, a relação dos avós com os netos é uma coisa mais lúdica e educativa e ao mesmo tempo mais leve, mais divertida, com menos responsabilidade do que a educação que é transmitida pelos pais. Os meus avós, por exemplo, foram determinantes na minha educação, até em termos de carreira o meu avô Francisco foi quem mais me incentivou a seguir aquilo que eu gosto!

R.C.: Através deste site queremos ainda falar do envelhecimento ativo, do abandono dos idosos, dar a conhecer atividades para ser feitas pelos mais velhos… Quando olhas para o nosso país, como é que vês a população mais velha? Quando ouves num noticiário que mais um idoso foi abandonado, mais um idoso foi vítima de violência… Achas que deveria ser necessário uma revolução de valores?

M.M.: Eu não consigo perceber com esta distância, nem sou especialista … nem sei o que é que isso provocará. Vai provocar problemas com certeza na Segurança Social. Em termos de saúde, eu creio que os cuidados de saúde também melhoraram muito. Agora com outro problema grave, as pessoas mais novas não vão conseguir nem criar riqueza nem ter capacidade para tomar conta de todos os idosos e de todas as pessoas mais velhas. Isso é capaz de ser um grande problema. Essa coisa horrível do abandono de idosos em hospitais é cada vez mais normal.

R.C.: Que diferenças sentes entre os avós que vivem nos grandes centros urbanos e os outros que vivem em meios mais rurais?

M.M.: Eu tenho a sensação (se calhar estou errado), que no interior e nas aldeias é de certa forma mais fácil ser idoso do que numa grande cidade. Eu vejo os idosos em Lisboa completamente perdidos e nas aldeias como já são populações muito envelhecidas eles ajudam-se uns aos outros e aquilo funciona.  Têm as sociedades recreativas e têm entretenimento. Nas cidades vejo os idosos perdidos.

R.C.: Há uns anos atrás discutia-se muito o problema de ter a televisão ligada durante a hora das refeições, pois as pessoas não conversavam umas com as outras. Hoje, essa conversa está completamente desatualizada. As pessoas estão permanentemente ligadas à internet com os telefones de última geração e afins. Existe uma distância muito maior das pessoas mais velhas. Hoje não se conversa?

M.M.: Em minha casa é obrigatório desligarmos a televisão na hora do jantar. Isto porque temos de conversar quando estamos juntos à mesa. A minha filha mais velha tem 8 anos, esta geração inevitavelmente está agarrada às novas tecnologias. A hora das refeições é aquele momento que nós temos para conversar! Quando era criança, nós tínhamos a televisão ligada, mas depois também não tínhamos mais nada! Íamos brincar para a rua mas também tínhamos tempo de qualidade com os nossos pais e hoje em dia não é tanto assim! Portanto, tem de haver esse tipo de cedências.

R.C.: Qual foi a ligação que tiveste com os teus avós? Conheceste os avós e os bisavós, ou só os avós?

M.M.: Os meus bisavôs não conheci! Tive uma grande ligação com os meus avós maternos. Estes fizeram parte da minha educação, mesmo porque a minha mãe trabalhava, eu tinha as escolas perto da casa dos meus avós, ia lá almoçar e passava o dia inteiro na casa dos meus avós.

R.C.: Na zona de Setúbal?

M.M.: Exatamente! Os meus pais iam buscar-me ao fim do dia. Os meus avós tinham muito tempo e muita disponibilidade para mim e para minha irmã. Os trabalhos de casa eram feitos em casa dos meus avós. Portanto nesse sentido, os meus pais tinham menos uma preocupação… A minha avó era doméstica, mas o meu avô era um homem cheio de força e trabalhou praticamente até morrer. Também conduziu até morrer, embora só conduzisse em Setúbal. Mas o meu avô era uma força da natureza, era maravilhoso!

R.C.: E o relacionamento com os avós paternos?

M.M.: Os avós paternos viviam em Azeitão. Estavam mais próximos dos meus primos, filhos da minha tia que moravam lá perto.

R.C.: Hoje em dia o que recordas mais?

M.M.: Tenho recordações fantásticas do meu avô materno, por este ser uma força da natureza. Este meu avô viveu muito para os netos. Foi G.N.R., não tinha carta de condução, andava de mota e de bicicleta em Azeitão. Quando teve a primeira neta surgiu uma nova oportunidade de vida. Ele ia reformar-se da G.N.R. com uma reforma miserável e houve um primo nosso que lhe sugeriu dedicar-se à venda aos Seguros. Depois de reformado, teve uma segunda vida mesmo. Aos 50 e tal anos 60, tirou a carta de condução, dedicou-se aos Seguros e quando ia à GNR receber a reforma até se ria com o que recebia de lá, porque ele fez uma pasta de Seguros tão grande que ganhava imenso dinheiro.

Ele viveu muito para os netos ao mesmo tempo que tinha outras atividades. Aquilo foi uma força inacreditável. Este meu avô é o meu ídolo. O meu sentido de humor devo-o ao meu avô.

R.C.: Então e qual é que é a memória mais antiga que tens dos teus avós?

M.M.: A memória mais antiga que tenho do meu avô é na praia na Figueirinha, em Setúbal. O meu avô rodeava-se dos netos ao fim da tarde e era a hora das brincadeiras. O meu avô pegava em nós e atirava-nos para água, fazia-nos cambalhotas e enrolava-nos na toalha…. Coisas completamente doidas. Essa é a memória mais antiga que eu tenho.

R.C.: Esses netos, eras tu e a Ana?

M.M.: Era eu e a Ana, mais um primo, mais uma prima, mais duas primas…Eram cerca de 8 netos.

R.C.: Estavam frequentemente juntos?

M.M.: Sim. No Natal estávamos sempre juntos lá em casa dos meus avós.

R.C.: Quais as memórias mais fortes que tens dos teus avós?

M.M.: Houve uma vez, que eu me portei muito mal com o meu avô. Ele tinha a secretária onde tratava dos recibos dos Seguros, essa secretária tinha sempre um compartimento com moedas, eu ia lá tirar as moedas, outro compartimento com canetas e outro com clipes que ele chamava clipers, (ele nunca era capaz de dizer clipes , era clipers), e um dia  ele chegou lá e despejou uma caixa inteira de clipes novos e eu uni os clipes todos em colar, em cadeia, que ia do escritório até ao quintal, que era na outra extremidade da casa. O meu avô foi tirar e aquilo estava tudo enrolado. O meu avô não me disse nada… Esse episódio aconteceu perto do Natal.

No Natal o meu avô dava aos netos envelopes com dinheiro. Nesse Natal, deu-me um envelope vazio com uma cartinha a dizer: “As nossas contas estão feitas, lembras-te dos clipes?”. Mas depois, claro era brincadeira e deu-me o dinheiro.

R.C.: Sentes que o humor é uma herança que recebeste dos teus avós?

M.M.: Sim, completamente!

R.C.: O papel dos teus avós na tua vida, foi determinante para te tornares no homem que és hoje?

M.M.: Sim! O meu avô, em termos de disciplina, de trabalho e de luta. E a minha avó também! Foram dois lutadores.

O meu avô foi uma figura única! Era o mais novo de 8 irmãos. O meu bisavô morreu e ficou uma mãe sozinha a cuidar de 8 filhos. Eram pobres, viviam no Algarve e o meu avô andava de calções com uma corda atada à volta da cintura. O meu avô, dos 8 irmãos, era o mais velho e ajudou a mãe a criar aquela gente toda. Apesar de ser o mais velho dos irmãos, o meu avô já foi o ultimo a morrer e tratou deles todos.

R.C.: E esses valores vão passando de geração em geração?

M.M.: Sim, completamente. O meu avô dizia muitas vezes: “Não gostas da comida vai comer à pensão, se fosse no meu tempo até pedras comias”. Ouvi mensagens muito fortes que me foram dadas pelo meu avô. Ele não era uma pessoa que se vergava. O meu avô dizia: ”Eu não quero estar doente, eu no dia em que me sentir doente mato-me”. O meu avô era uma pessoa que fazia desporto de manhã, era muito ativo, conduzia e trabalhava… A última imagem que tenho do meu avô foi no hospital. Ele tinha caído no Natal, mas ainda estava muito bem de cabeça. Eu sabia que ele ia do hospital de Setúbal para o Otão que trata dos ossos e tinha que ser operado. Nunca esquecerei a imagem dele a despedir-se de mim e a ir para ambulância e depois não o vi mais… Recebi a notícia que ele tinha morrido pouco depois da operação. Eu não sei o que é que aconteceu, acho que a operação até tinha corrido bem mas, morreu no pós-operatório.

Eu não sei se o meu avô fez para lá alguma coisa … pensou “eu não vou andar mais”, mas ele era uma pessoa que não queria ficar doente e não queria sentir-se velho, nem nunca estar dependente de ninguém.

R.C.: Os teus avós chegaram a ver o sucesso em que te tornaste?

M.M.: Sim, sim, sim, sim. O meu avô chegou e vibrava imenso. Ficava muito feliz e dizia: “Ah grande sacaninha! Ah grande sacaninha”

R.C.: E era aquele avô que ia para café e dizia: “Ah são os meus netos! Estão na televisão”…

M.M.: Os meus avós tinham um orgulho imenso, mas não era só em mim e na minha irmã! Era nos netos todos, tinha um orgulho imenso. Os meus avós eram uma coisa impressionante.

R.C.: E guardavam revistas e outros artigos onde saiam informações sobre os netos?

M.M.: Sim guardavam tudo, guardavam tudo.

R.C.: Os teus avós tiveram o privilégio de acompanhar a tua carreira durante muito tempo?

M.M.: Sim, felizmente tive essa sorte durante bastante tempo. O meu avô morreu há dez anos e a minha avó morreu depois. Quando eu soube da notícia que a minha irmã ia entrar para a SIC fui eu a ligar para a minha avó e eu digo: “Avó a Ana entrou para SIC!” E a minha avó: “EIA!” Foi só assim.”EIA” e pronto! Mas era maravilhosa, mas vibrava, adorava, nunca não perdia os programas, assistia religiosamente a tudo, era maravilhosa.

R.C.: Mais recordações dos teus avós…

M.M.: A minha avó era muito calma e era o lado racional do meu avô. Era inteligentíssima. Foi ela quem me ensinou tudo na escola, os trabalhos de casa eram feitos com a minha avó. É uma pessoa que se estivesse estudado teria sido muito longe. As meninas não estudavam muito naquela altura… só que era duma inteligência extrema.

R.C.: O que é que mudou na vida dos teus pais, depois de se terem tornado avós?

M.M.: O meu pai seguiu o exemplo do meu avô e “herdou” a pasta de seguros que pertencia ao meu avô. O meu pai era genro deste meu avô, mas foi um filho para ele porque o meu avô tinha os filhos todos em Lisboa, só uma tia minha vivia em Setúbal. O meu pai é que tratou sempre do meu avô e ajudava-o nos seguros. Hoje em dia, o meu pai tem a mesma disponibilidade para os netos, que o meu avô tinha. Aliás para as netas, que os meus pais têm 4 netas, duas filhas minhas e as minhas sobrinhas gémeas, filhas da Ana.

R.R.: E vêem-se frequentemente?

M.M.: Sim, sim. Embora vivam em Setúbal, mas têm lá uns quartos para as netas, e vão com as quatro netas para a praia e são loucos pelas netas.

R.C.: Algumas características dos teus personagens são inspiração dos teus avós?

M.M.: O meu avô era quem eu caricaturava mais na família sem dúvida. O lado algarvio, aquela linguagem é o meu avô.

R.C.: Recordas frequentemente esse avô?

M.M.: Eu sonho muitas vezes com o meu avô, sonho e ainda acordo feliz de ter estado a falar com ele. O meu avó está muito presente em tudo o que eu faço na minha vida! É incrível!

R.C.: Falas dos teus avós, com a tua filha mais velha?

M.M.: Sim claro, falo muitos dos meus avós com a Inês. Dou exemplos do avô Chico muitas vezes e da minha avó. Ela ainda conheceu a bisavó. E claro que irei falar dos meus avós com a Elisa quando ela formais velha.

Um dos exemplos que costumo falar do meu avô é quando a minha filha não quer comer. “ Não te agrada a comida? Vai comer à pensão!” ou “Até comias pedras”. Dou-lhe sempre esse exemplo porque a vida não é fácil. Os meus avós não tiveram uma vida nada fácil.

R.C.: Ao mesmo tempo, antigamente a vida não era tão fácil, mas as pessoas eram muito mais próximas umas das outras nessa altura ou não?

M.M.: Sim eram. Se bem que no caso a minha avó era de Boliqueime, tinha muitas ajudas, muitas comadres. A minha bisavó, a mãe do meu avô e o meu bisavô viviam no campo, mesmo e eram um bocadinho isolados, portanto tinham de se ajudar uns aos outros.

Falar dos avós é uma coisa que dá para um dia inteiro de conversa. Isto aqui foi uma coisa muito abreviada da importância que os avós tiveram e da importância até que os nossos pais têm para os netos. Os meus pais também são loucos pelos netos e também lhes passam os valores.