A veia provocadora ajudou-a a criar o título, a impulsividade deu-lhe a coragem para escrever, e o tempo as ferramentas para revelar até os seus mais dolorosos segredos... E assim nasceu o novo livro de Luísa Castel-Branco, 'O Amor É Uma Invenção dos Pobres'.

Naquela que é a segunda obra de uma trilogia autobiográfica, a escritora fez uma longa viagem ao passado. Num caminho sinuoso que durou mais de três anos, teve de encontrar forças para recordar os maus-tratos psicológicos na infância, a traição, a mentira e, pela primeira vez, confessar que foi vítima de abusos.

Dias após o lançamento do livro e a viver ainda um turbilhão de emoções, Luísa Castel-Branco apresentou em entrevista ao Fama ao Minuto a sua autobiografia, revelou-nos o porquê das revelações que faz e falou-nos de amor... 'a invenção' que é aos 68 anos das mais bonitas certezas da sua vida.

Luísa, começo por perguntar-lhe, o amor é mesmo 'uma invenção dos pobres'?

Não, não é. Esse título resolvi colocá-lo por provocação. A invenção do amor tem a ver com o amor/ casamento, a união das pessoas, e quando pensei sobre isso verifiquei que as relações só começaram a ter o padrão que temos hoje no final do século XIX, princípio do século XX, quando as pessoas começaram a ter uma vida melhor. Antes disso, os pobres casavam-se para sobrevivência e os ricos para aumentarem as terras.

O casamento era quase um negócio.

Era. Neste livro disserto um pouco sobre a invenção do amor e do casamento na sociedade. Escolhi este título porque achei que era bom deixar as pessoas com essa dúvida, para lerem o livro e saberem se é ou não uma invenção.

E porquê a vontade de fazer esta provocação?

Tem muito que ver comigo, sou muito provocadora.

Escrevi uma primeira parte e depois parei, eu não me dava autorização de escrever tudo o que está ali e que não é do conhecimento de ninguémAcha que conseguiu no livro dar uma resposta concreta a essa dúvida que quis deixar no título?

Acho que sim, até porque falo sobre o meu pai e a minha mãe e de como era a vida no tempo deles - Portugal no fim dos anos 1940/50 -, o livro permite perceber como era o país nessa altura.

Luísa Castel-Branco na apresentação do livro 'O Amor É Uma Invenção dos Pobres'© El Corte Inglés

Passou algum tempo desde o lançamento da primeira parte da sua trilogia autobiográfica. Quanto tempo levou até concluir este segundo livro?

Demorei muito tempo, mas mesmo muito tempo. Demorei mais de três anos. Escrevi uma primeira parte e depois parei, eu não me dava autorização de escrever tudo o que está ali e que não é do conhecimento de ninguém. Depois acabei por conseguir escrever e a partir daí foi fácil.

Teve vontade de desistir durante esse processo?

Imensas vezes, imensas vezes.

Ao contar aos meus filhos e ao meu marido, acabei por também contar aos portugueses. É um embate muito grande

E o que lhe deu força para continuar?

Tinha um acordo com o editor e ele teve uma infinita paciência para esperar por mim. Foi-me sempre acalentando e dizendo que era capaz, e foi isso que aconteceu. Acabei por desbloquear, decidi contar aquilo que ninguém sabia que tinha acontecido comigo e a partir daí foi muito mais fácil. Se não tivesse o Rui Couceiro a ir vendo o que escrevia, a ir dizendo que eu era capaz e que podia demorar o tempo que precisasse, ia mesmo desistir. Assim, não desisti.

Revisitar momentos marcantes do nosso passado pode ser libertador, mas ao mesmo tempo doloroso. Conseguiu sentir esta mistura de sentimentos durante o processo de escrita?

Foi muito doloroso e em certos aspetos foi libertador. Foi a primeira vez que de alguma forma fiz as pazes com as memórias do meu pai e da minha mãe. Em relação ao resto, ainda não foi libertador. Passei a minha vida toda sem contar às pessoas o que tinha acontecido e ao contar aos que me são chegados, aos meus filhos e ao meu marido, acabei por também contar aos portugueses. É um embate muito grande. Ainda estou a passar pelo processo de deglutir isto tudo, acho que a liberdade vem a seguir.

Custou-me falar sobre os abusos porque a verdade é que cheguei aos 68 anos sem nunca ter verbalizado issoA relação algo conturbada com os seus pais, de quem fala no livro, ficou completamente resolvida e 'arrumada' na sua cabeça?

Ficou, ficou.

Conseguiu perdoar-lhes aquilo que correu menos bem?

Fez-me muito bem falar sobre a vida dos meus pais, pessoas que naquela geração não tiveram infância absolutamente nenhuma. A minha mãe começou a trabalhar com 11 anos e o meu pai pouco mais velho. Às tantas, não podes pedir às pessoas aquilo que elas nem sabem o que é. Sim, apaziguei completamente. Já devia ter feito isto antes, mas provavelmente não tinha maturidade suficiente para fazer.

O que me aconteceu foi determinante para a formação da minha personalidade. Foi por isso que parei o livro e estive mais de um ano sem conseguir escreverDe todas as revelações que a Luísa faz neste livro, qual foi aquela que mais lhe custou?

Os abusos [sexuais]. Os abusos porque, embora seja muito estúpido, a verdade é que cheguei aos 68 anos sem nunca ter verbalizado isso, a não ser em terapia. Foi muito complicado para mim falar com as pessoas. E está a ser complicado, dar entrevistas… É um processo complicado.

Decidiu fazê-lo agora porque achou que essas memórias eram imprescindíveis neste livro?

Decidi escrever porque olhando para mim, para quem fui na minha juventude e no caminho que fiz até agora, cheguei à conclusão que, quer eu quisesse quer não, não podia dissociar as coisas. Era impossível. O que me aconteceu foi determinante para a formação da minha personalidade. Foi por isso que parei o livro e estive mais de um ano sem conseguir escrever, porque não queria escrever e por outro lado percebi que, por mais voltas que desse, não conseguia explicar verdadeiramente quem era a não ser que falasse sobre isso.

Ter vivido esses momentos marcantes transformaram-na na mulher que é hoje?

Completamente, hoje talvez seja a minha melhor fase em relação a isso. Estou numa fase diferente, mas durante a minha vida até chegar a esta terceira idade, ou à idade madura como se diz agora, marcou-me definitivamente.

Ver o meu filho atropelado foi o pior momento de todos

Acredita que ao falar publicamente sobre o tema pode ajudar outras pessoas que passaram pelo mesmo?

Acho que sim, tenho recebido muitas e muitas mensagens de pessoas a dizerem-me exatamente isso: que passaram pelo mesmo e nunca conseguiram falar, e que partilham o mesmo sentimento.

Esse era um dos seus objetivos ao falar sobre o tema, ajudar outras pessoas?

Era. Era explicar às pessoas que nunca é tarde para confrontarmos os nossos próprios fantasmas.

Há um outro episódio marcante na vida da Luísa que acabou por não ser lembrado neste livro, o momento em que o seu filho António foi atropelado em criança e quase morreu.

Acho que no meu subconsciente nem queria pensar nisso e só me lembrei, só me veio à memoria, quando estava sozinha e já tinha entregado o livro. De repente, estava a fazer uma introspeção e a pensar em qual tinha sido o pior momento da minha vida e, sem dúvida nenhuma, ver o meu filho atropelado foi o pior momento de todos.

A minha falta de bom senso permitiu-me aceitar desafios que uma pessoa minimamente sensata não aceitaria

Esse momento também já está resolvido dentro de si?

Não vai nunca ficar resolvido. Só de pensar nisso fico com calores. É uma estupidez, porque graças a Deus ele sobreviveu, ótimo, sem nada, mas aquele carro... Nunca tirei a carta de condução, tenho medo de carros. A altura de um Alfa Romeo é tão pequenina, bater numa criança e passar-lhe por cima... Ele é que atropelou o carro, pôs-se à frente. Foi de tal forma que todas as pessoas que ali estavam, ninguém se lembrou de ir ver debaixo do carro como é que ele estava. Naqueles segundos, pensei que era impossível que ele saísse dali. O espanto de todos nós foi quando ele saiu pela parte da frente do carro.

É por causa de episódios como esse que diz que é uma mulher de sorte?

Acho que sim, acho que Deus esteve por mim muitas vezes ao longo da minha vida. A minha falta de bom senso, por um lado, permitiu-me aceitar desafios que uma pessoa minimamente sensata não aceitaria, falarei sobre isso no terceiro livro que faz parte desta trilogia, mas não tenho sensatez absolutamente nenhuma. Quando Deus estava a distribuir a sensatez decidiu dar-me apenas pernas, tenho umas pernas que nunca mais acabam [risos].

A minha filha Inês podia não existir por uma décima de segundo

Outro dos temas fortes de que fala neste livro é o facto de ter decidido fazer um aborto quando estava grávida da sua filha, Inês Castelo-Branco. A Inês era ainda muito novinha quando a Luísa lhe contou que quis tomar esta decisão. Por que motivo resolveu fazê-lo nesse momento?

Porque achei que a minha filha tinha de perceber o poder que as mulheres têm. Porque é efetivamente um poder de vida ou de morte, e isso obriga-nos a ser muito, muito responsáveis. Há pessoas que fizeram abortos porque tiveram de fazer, outras optaram por fazê-lo, cada pessoa é que sabe. Agora, quando estiveste a milímetros de destruir uma vida e depois tens essa vida ao teu lado, tão preciosa, essa noção é muito grande. É muito pungente. Na verdade, ela podia não existir por uma décima de segundo.

A Inês foi, curiosamente, a escolhida para ler o seu livro em primeira mão.

Sim, sim.

Este livro desmistifica várias coisas, uma delas as pessoas acharem sempre que sou muito forte

A opinião dela podia ter mudado alguma coisa?

Podia. Falo do fim do meu casamento, do pai dos meus filhos e falo sobre eles. Se houvesse alguma coisa que ela achasse que devia mudar, eu mudaria. Ela é muito sensata, graças a Deus, não sai nada, nada a mim.

E a opinião final dela surpreendeu-a?

Não. Fiquei muito nervosa à espera da opinião, na verdade. Confio muito nela e no bom senso dela, muito, muito, muito. Tanto podia cair para um lado como para o outro. Se ela me telefonasse a dizer: não concordo com isto ou aquilo, era um trabalhão mas eu iria fazer. E o Rui Couceiro, o meu editor, sabia perfeitamente disso.

Qual tem sido o feedback de quem já leu o livro?

O feedback do público tem sido muito bom, muito bom mesmo. Creio que este livro desmistifica várias coisas, uma delas as pessoas acharem sempre que sou muito forte, que tenho uma personalidade muito forte, e não tenho. A verdade é que acabo por lidar com os meus fantasmas e os meus problemas com uma grande dose de inconsciência, que não recomendo a ninguém, mas que por outro lado me deu a hipótese de abraçar projetos ao longo da minha vida. Não pensei que era capaz de tudo, tinha mesmo de ser capaz de tudo. O que é uma grande diferença. Em relação aos meus filhos, por exemplo, sempre achei que eles podem rigorosamente tudo desde que queiram, sou 100% positiva em relação a eles. É a única coisa na vida com a qual sou positiva, e agora com os netos igual.

Tenho o privilégio de os meus filhos reconhecerem a minha luta para os educar, para os sustentar

A Luísa é uma mãe e avó babada e já a ouvi dizer que é uma cuidadora nata, até mesmo com os amigos.

É verdade, sou sim senhora.

Sente que recebe de igual modo o cuidado que dá aos outros?

Recebo, recebo e tenho mais é que estar muito agradecida. Recebo do homem que amo e com quem vivo há 27 anos e recebo, sem dúvida nenhuma, dos meus filhos. Tenho o privilégio de os meus filhos reconhecerem a minha luta para os educar, para os sustentar, e o reconhecimento deles ser permanente. São sempre preocupados em que nada me falte e tudo me corra bem. Acho que há em Portugal inteiro tantas e tantas mães sozinhas que fazem isso pelos filhos e não têm reconhecimento, tenho muito que estar agradecida. Mais uma vez, acho que Deus esteve por mim. Deus, o anjo da guarda, o universo, o que lhe quiserem chamar.

Não é difícil perceber que a maternidade foi uma das grandes conquistas da sua vida.

Sim, queria muito ser mãe e educar filhos. Foi, e é, o meu primeiro sonho realizado e o mais importante de todos.

E não deixa de ser curioso que tivesse esse desejo tão forte de ser mãe, mesmo não tendo tido uma infância plenamente feliz.

É verdade. Mas é curioso porque era muito pequena e dizia a mim mesma: quando tiver filhos não faço isto, quando tiver filhos não vou dizer isto. Era uma coisa permanente em mim. A vida realmente tem coisas muito estranhas. Quando os meus filhos nasceram, com todos os erros que cometi, sabia exatamente aquilo que não queria fazer e o quanto era importante para mim concretizar neles tudo o que não tinha tido. E eduquei-os de uma forma sui generis, e com muitas, muitas críticas. Eduquei-os à minha maneira.

Segue-se o terceiro e último livro da sua trilogia autobiográfica. Já começou a escrevê-lo?

Já comecei a fazer na minha cabeça, que é onde todos começam. Começo todas as noites a acordar e a pensar no livro. Já sei como vai começar… E vai ser mais um livro controverso, sem dúvida nenhuma. Tenho de ter, mais uma vez, cuidado quando o escrever, mas este não vai demorar tanto tempo.

O terceiro livro vai falar sobre a sua 'chegada' à televisão?

Este segundo livro termina na data em que reencontrei o Francisco [Colaço, atual companheiro], que conhecia desde os 18 anos. O terceiro vai falar a partir daí, até aos dias de hoje.

E podemos esperar novas revelações?

Sim, não tenha dúvidas. A vida é uma surpresa.

Proponho que terminemos esta conversa voltando ao início, ao título que nos fala sobre o amor. Para si, ao longo da vida, o amor foi tendo diferentes significados?

Sim, teve sempre significado diferentes, excetuando o amor pelos meus filhos. Antes de os ter, depois de os ter... O amor pelos filhos ultrapassa toda a espécie de amor e é o único que não tem contabilidade, é uma coisa que está dentro de ti e que até ao fim da tua vida está lá para o bem e para o mal. No meu caso, tem sido um privilégio ser mãe destes três seres humanos [António, Gonçalo e Inês].

O que é para si o amor hoje, aos 68 anos?

Uma coisa muito boa. O facto de amar um homem e sentir-me amada é maravilhoso, o facto de ter uma família que amo e que me ama é maravilhoso... Esta fase da minha vida talvez seja a mais pacífica de todas as que tive.

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