Aos Retratos Contados, Justa Nobre falou do bom e do menos bom, numa vida cheia daquele brilho que vem de dentro, onde nenhuma circunstância pode esmorecer... Esta é a primeira parte da nossa saborosa conversa!
A sua família vem toda de Vale de Prados, em Macedo de Cavaleiros. Que recordações fortes tem ligadas a esse lugar?
Justa Nobre: Eu sou muito ligada aos afectos, à família. Muitas vezes estou a fazer coisas na cozinha e a lembrar-me dos pratos que as avós me ensinaram a fazer, que a mãe me ensinou a fazer, que as tias me ensinaram a fazer...sou uma mulher de família e tenho muita necessidade do aconchego dos meus. Eles não precisam de estar ao pé de mim, só preciso de sentir que eles me amam, que gostam de mim.
Quando vim para Lisboa, com 15 anos, eu tinha muitas saudades. Pensava muito na família, e só isso já ajudava a sentir-me bem. Mas tinha um ritual que se calhar era um pouco infantil: vinha à janela, olhava para a lua, e pensava assim: "se eles estiverem à janela, estão a ver a mesma lua que eu". A lua era a mesma e portanto sentia-me um bocadinho próxima deles. Mas também tive de crescer depressa!
Em todo o caso, sentir a família por perto sempre foi importante, e talvez por isso quando comecei a trabalhar em hotelaria eu tenha trazido o resto da família. Trouxe a minha irmã, depois veio o Beto, veio o Ilídio...
Que ordem é que ocupa a Justa na linha de sete irmãos?
J.N.: Sou a segunda! A primeira é a Guida, depois sou eu... Nós eramos 10, mas morreram 3 em bebé, senão eu seria a quarta.
Isso era uma coisa muito comum na época...
Claro com aquelas difterias, os miúdos faleciam...
(Nélson): Sim, a minha avó também teve 10 filhos e depois só ficaram uns 6.
J.N.: Penso que é por isto que eu trago sempre para a cozinha as minhas raízes: posso criar, posso inovar, mas está lá sempre aquele toquezinho do meu passado.
Então as memórias não são só as visuais, são também as gustativas, as olfactivas?
J.N.: Completamente, eu trouxe comigo as memórias gustativas, não só visuais, nem só sentimentais.
Se calhar é isso também um pouco da receita do Nobre, não é? Quando as pessoas se sentam à mesa, de alguma maneira todos sentimos que estamos a provar um bocadinho da nossa memória, dos nossos sabores?
J.N.: É, é isso mesmo que eu quero. Tenho muitos clientes que me dizem assim, quando comem um pastel de massa tenra: “Ai, Justa faz lembrar os pasteis da minha avó!” E eu: “Obrigada por me estar a comparar com a sua avó!” , “Não, Justa, não a quero ofender, é porque são caseiros!”…(risos)
É pela parte da tradição, não é?
J.N.: Claro, só que gosto de brincar com as pessoas… Tenho uma ligação muito familiar com os clientes, muito próxima. Mas sim, eu tenho uma cozinha de mãe, uma cozinha de casa, aquela cozinha de amor que se faz para a família. É isso que os meus clientes têm necessidade de comer, e cada vez mais porque as pessoas trabalham. Já não há aquela empregada que está lá em casa desde há 50 anos a saber fazer as nossas comidas. Mas as pessoas ainda têm na memória certos pratos, de quando eram crianças, e eu gostava que elas não se esquecessem. Para mim é um privilégio eu poder lembrar-lhes esses pratos, lembrar-lhes um empadão, um bom peixe assado... Mas se quiserem uma coisa mais moderna, sou uma cozinheira versátil!
(Nélson): Eu vim cá jantar uma vez e houve duas coisas que me marcaram: a Justa vir à mesa de todos os clientes - não é uma Chef que fique escondida na cozinha - e de perguntar se estava tudo bem, se identificávamos o que estava no prato. Comi uma sopa de santola e um bacalhau confitado, lembro-me muito bem.
J.N.: Eu uso muito os produtos da terra, e não só Trás-os-Montes, cozinho pratos de qualquer parte do país. Claro que tenho mais tendência para a minha região, mas gosto da cozinha alentejana, gosto da cozinha de todas as regiões de Portugal.
Mas então, os avós de ambos os lados eram todos ligados à lavoura?
J.N.: Sim, os meus avós maternos tinham uma quinta linda que se chamava Quinta ” Vale Meão” (não tem nada a ver com o Vale Meão do Douro), que depois foi vendida para fazerem uma barragem, eles tiveram de ceder os terrenos.
Há alguma receita que ainda hoje replique e que lhe tenha sido ensinada por alguém especial?
J.N.: As da tia Lucinda. Entre os 7 e os 14 anos vivi com uma tia numa aldeia ao lado, porque a minha tia não tinha filhos e as pessoas das aldeias tinham necessidade de ter uma criança em casa para dar um recado, para apoiar, e a minha tia pediu à minha mãe para ir eu. Estive lá 7 anos, fiz lá a escola, e aos fins-de-semana e nas férias ia à outra aldeia, para ao pé dos meus irmãos. A minha tia e o meu tio ensinaram-me a fazer pratos fabulosos, porque o meu tio também cozinhava bem. A tia Lucinda assava um cabrito como ninguém, fazia um rancho à moda do Porto - isso até era mais o meu tio - que ninguém fazia igual e eu aprendi a fazer essas coisas. Eu vinha da escola, destapava a panela, sabia provar e já dava a minha opinião. Em nova, a minha tia tinha cá estado em Lisboa e portanto à tradição tinha juntado algum requinte. Apresentava uma travessa sempre tão bonita! Infelizmente, hoje em dia a Tia Lucinda tem Alzheimer e está num lar, portanto já não me conhece...
Nós sempre tivemos uma tendência para os assados: acendia-se o forno de lenha, na Páscoa, nos casamentos, em qualquer festa, e a minha tia temperava aquelas carninhas muito bem temperadas e assava-as no forno. A minha mãe e as minhas avós também o faziam, por isso as festas da família eram sempre muito agradáveis. Da altura do fumeiro também tenho boas memórias: era no Inverno, nós vínhamos da escola e se elas estavam a fazer as linguiças ou as alheiras nós pedíamos um "chichinho" - era um bocadinho de carne - para elas nos porem na grelha, e assim iam enchendo o fumeiro, e grelhando carne para nós. Quando era na Páscoa faziam um folarzinho para cada um de nós, e quando coziam pão, um pãozinho para cada. Quando punham o fumeiro nas varas a secar todos nós tínhamos lá uma linguicinha, uma alheirinha que era nossa, e nós é que decidíamos quando é que devíamos comer! Chamávamos-lhe o "Reizinho" porque seria para comer no Dia de Reis, e quando nós decidíssemos que já estava seco ou quando a mãe dissesse, comíamos. Era uma maneira de nos mimarem, não havia dinheiro para brinquedos e nós divertíamo-nos tanto, tanto! Nós e os primos, como nós brincávamos! Havia sempre aquele carinho, o pai ia à feira e trazia um pião para os rapazes, trazia uma coisinha para nós, a mãe também - eramos tão mimadinhos, era tão bom…
Em criança já sonhava a vir ter uma vida relacionada com a cozinha?
J.N.: Quando eu vivi com a minha tia Lucinda ela era a enfermeira da aldeia. Era ela quem dava as injecções às pessoas naquelas caixas de inox e eu com 9 anos ajudava a minha tia a preparar as coisas: fervia a seringa e preparava as injecções. Sei preparar injecções oleosas, injecções com pó… Uma vez, um rapaz com dois metros de altura que estava a trabalhar comigo no “Iate Ben”, em Carcavelos, picou-se num dedo com um cherne, furou o dedo e ele desmaiou. Dei-lhe estalos até ele acordar, desinfectei e tratei, portanto sei que tenho sangue-frio para essas situações. Ou seja, eu queria ser cozinheira ou enfermeira, só que para ser enfermeira não tinha quem me pagasse os estudos. Depois casei cedo, com 19 anos... Ah, mas antes de casar estive 3 anos a tomar conta de uma miúda que tem precisamente a minha idade, a Xandra, e que tem uma paralisia cerebral. Estava numa cadeira de rodas e era preciso fazer-lhe tudo, dar-lhe a comida à boca, falar com ela, conversávamos imenso apesar dela não falar. Íamos para a Gulbenkian passear, íamos ao cinema. Mas não era só eu, tinha de haver sempre mais gente a ajudar porque eu quase uma menina, e estava a ser tão bem tratada como ela, a filha. Estive com ela 3 anos, e aprendi imenso.
E quando começou esse cuidado tinha que idade?
J.N.: Tinha 16, saí de lá aos 19 para casar. Ela é sobrinha do escritor Soeiro Pereira Gomes, que escreveu os “Esteiros” . Agora vem aqui ao restaurante com o irmão almoçar, que os pais entretanto já morreram. Gostavam muito de mim porque era como se eu completasse a Xandra: gargalhava, corria, brincava com ela, o que ela não dizia, dizia eu! Estou ligada de coração a esta família, quero sempre saber como é que ela está, se no Natal têm a ceia ou se a faço eu, para o irmão não estar a perder tanto tempo na cozinha. A mãe dela, a Madamme Bastos, era professora do Liceu Francês, e também me ensinou algumas coisas de culinária. Portanto acabei por aperfeiçoar a minha cozinha também com esta família.
Depois casei cedo: o Nobre era empregado de escritório numa empresa de automóveis muito grande, e logo a seguir ao 25 de Abril as coisas estavam mal e começaram a complicar-se ainda mais, começaram os ordenados em prestações… O chefe dele, que tinha um prédio ali na Alexandre Herculano, decidiu fazer um restaurante numa parte de casa, no 33 na Alexandre Herculano. (continua)
Este texto é escrito sem recurso ao Acordo Ortográfico
Comentários