Em criança, por influência da mãe, Nuno Nepomuceno queria ser professor, profissão que chegou a ter durante 16 meses. A paixão pela escrita surgiu na adolescência. Em 2003, com 25 anos, começou a escrever "O espião português". O manuscrito foi rejeitado por todas as editoras portuguesas mas, em 2012, deu-lhe a vitória na primeira edição do concurso literário promovido pela Note!. A partir daí, nunca mais parou. Este fim de semana, ganhou (mais) uma distinção, a de melhor livro luso nos prémios Geeks d'Ouro.

Acaba de lançar um novo livro. Foi já escrito durante a pandemia? Se sim, este condicionamento que vivemos influenciou de alguma forma o seu processo de escrita? O seu estado de espírito não deveria ser o mesmo do que o dos processos de criação anteriores, presumo…

Sim, "O cardeal" foi quase todo trabalhado depois de a pandemia chegar à Europa, com exceção da pesquisa local, em Cambridge, onde a maior parte da ação decorre. Realizei-a ainda durante o outono de 2019, quando estive em Inglaterra a fazer uma sessão fotográfica de promoção ao livro que na, série Afonso Catalão, o antecede, "A morte do papa".

Sou naturalmente recatado e gosto de estar em casa. Logo, o facto de ter de ficar confinado acabou por não ser um problema, embora admita que este é, possivelmente, o meu thriller que apresenta uma narrativa mais intimista, o que poderá ter sido influenciado por isso. Costumo dizer que "O cardeal" é para ser lido durante o inverno, enroscado numa manta e com uma caneca de chocolate quente na mão.

Aposta numa forma de promoção dos seus livros diferente da da maioria dos escritores. Para além da criação de um microsite, chegou a vestir-se a rigor para promover "O cardeal". Foram suas estas ideias?

Tento acompanhar as tendências e evoluir, não só em termos narrativos, bem como na minha forma de comunicar com o leitor. Daí que, com o passar do tempo, tenha vindo a apresentar algumas iniciativas diferentes, que nem sempre foram planeadas, mas que surgiram de algo que o livro pediu, digamos assim, ou que me foi sugerido por outrem.

O microsite de "O cardeal" é algo que eu e a Cultura Editora já tínhamos ensaiado aquando do lançamento de "A morte do papa". Agora, limitámo-nos a aperfeiçoar um pouco o conceito, porque quisemos incluir a série de ficção em podcast que serviu de antevisão ao livro, "O assassino". Trata-se de uma tendência que vem de fora.

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No estrangeiro, a maioria dos grandes bestsellers tem um microsite. É um modo imediato de apresentar o livro, em vez de pedir ao leitor que navegue no site do escritor ou da editora. Vivemos num tempo em que as pessoas não gostam de pesquisar muito. A forma como a informação é apresentada faz a diferença. A ideia de me vestir de cardeal foi minha, mas mantivemos as fotografias por divulgar durante muito tempo. Eu achava que fazia sentido, dado o título do livro, mas o meu agente receava que alguém pudesse sentir-se ofendido por me ver caracterizado assim.

Por isso, fomos divulgando-as devagar, começando por algumas em que não se percebia que era eu, até nos acharmos seguros o suficiente para mostrar uma frontal, o que só aconteceu no dia em que o livro foi publicado. Felizmente, as impressões têm sido as melhores, muito devido ao talento de Marisa Martins, a fotógrafa que trabalhou connosco durante dois dias. O seu olhar especial deu uma grande elegância às imagens.

"O cardeal" é o quinto livro da série Afonso Catalão. A saga termina por aqui ou já está a pensar em formas de a perpetuar?

A série Afonso Catalão irá continuar, devendo regressar durante o primeiro semestre de 2022, embora sem nenhuma certeza absoluta. Sinto que já tenho bastante experiência e que as dificuldades normais, associadas à redação de um novo livro, como, por exemplo, os bloqueios e o cansaço, irão surgir, mas sei que serei capaz de as debelar com sucesso e cumprir com o prazo definido pela editora.

No entanto, o atual estado de emergência e as limitações impostas à venda de livros, se se prolongarem durante muito mais tempo, irão condicionar estes planos, uma vez que, neste momento, "O cardeal", por ter sido publicado um dia antes de entrarmos em novo confinamento, ainda é praticamente um inédito, porque não esteve sujeito à apreciação geral dos leitores que frequentam as livrarias. Será, por isso, necessário espaçar adequadamente os dois volumes.

O tipo de livros que escreve implica bastante pesquisa histórica. Como é que se costuma preparar?

Faço uma fusão entre a pesquisa local e a análise de artigos de imprensa ou a leitura de outros livros, conforme o que na altura me parecer mais adequado. Por exemplo, para escrever "A célula adormecida" fiz um arquivo de peças jornalísticas sobre o Estado Islâmico, entrevistei várias vezes o imã da mesquita central de Lisboa, convivi com a comunidade muçulmana da cidade em alguns dias de congregação.

Só depois é que visitei Istambul, na Turquia, um dos locais onde a ação decorre. No caso de "A última ceia", o antepenúltimo livro que publiquei, preocupei-me mais em ler sobre arte e sobre roubos de arte e só a seguir é que viajei para Londres, em Inglaterra, para entrevistar o diretor artístico da Academia Real das Artes. Em "O cardeal", o processo aconteceu um pouco ao contrário.

Primeiro fui a Cambridge, porque estava preocupado com a forma como iria gerir o espaço e, para isso, precisava de conhecer melhor a cidade, o rio, as pontes, as universidades e as lendas. Já em Portugal, consegui encontrar artigos de imprensa local sobre vários homicídios que aconteceram no condado de Cambridgeshire, eventos esses que serviram para me inspirar em alguns dos arcos narrativos do livro.

Está quase a fazer 10 anos que venceu o prémio que lhe deu visibilidade. Estava confiante que poderia ganhar ou foi uma surpresa?

Antes de concorrer, o livro já passara pelo processo convencional de submissão de manuscritos, tendo sido recusado por todas as editoras portuguesas. No entanto, nunca encarei esse facto como uma derrota. Na altura, as respostas pareceram-me sempre algo artificiais e, quando submeti "O espião português", sentia alguma esperança, pois acreditava que o livro tinha o que era necessário para se destacar no concurso.

Nuno Nepomuceno em entrevista exclusiva.

Hoje, essa obra conta com duas edições muito bem-sucedidas, em 2012 e 2015, estando a ser preparada uma nova, pela Cultura Editora. Eu comecei a escrever "O espião português" há 18 anos, em 2003, mas continua a ser uma fonte de motivação e orgulho, uma vez que tem revelado uma longevidade incomum.

A esta distância, como é que analisa a evolução do seu percurso e, já agora, do panorama literário português na última década?

Considero que a minha evolução tem sido positiva, pois comecei do zero. Antes de "O espião português" nunca publicara nada e nem sequer conhecia alguém que trabalhasse numa editora. Olhando para o futuro, creio que disponho de margem para crescer. Acho que existem mais livros dentro de mim para além da série Afonso Catalão ou de outros thrillers...

E no caso do panorama literário português?

Não vejo o panorama literário português com otimismo. No geral, as editoras continuam muito fechadas dentro de si mesmas e a nova geração de autores não só está a demorar tempo a surgir como parece pouco interessada em desenvolver um esforço sério nesse sentido.

Todos em Portugal querem ser o próximo José Saramago, mas lidam mal com as contrariedades, quando a vida da pessoa que tomam como exemplo foi repleta delas. Por vezes, talvez seja melhor aproveitar pequenas brechas. Eu continuo a ser dos poucos escritores de policiais em Portugal e consegui construir uma carreira.

Ser escritor era um sonho de criança ou, quando era mais pequeno, tinha outras pretensões? Como é que a escrita acabou por ganhar importância na sua vida?

Quando era criança, queria ser professor. Acho que foi por influência da minha mãe, cujo sonho era ter um filho com essa profissão, que essa pretensão surgiu. Acabei por me licenciar num curso de ensino, mas só exerci durante um ano e quatro meses, tendo depois ingressado noutra empresa, para a qual ainda trabalho atualmente. O desejo de escrever surgiu mais tarde, durante a adolescência.

Gostava de ler e comecei a sentir curiosidade sobre como seria se eu pudesse escrever a história, tomar decisões e tocar no imaginário das pessoas. No entanto, só posteriormente é que decidi tentar, porque primeiro quis ter a segurança e a estabilidade que uma profissão mais convencional pode proporcionar. Curiosamente, hoje em dia, o que me motiva mais ainda é esse anseio, o de poder criar um enredo.

A internacionalização é um dos seus planos? Tem atualmente em marcha algum plano nesse sentido?

Trata-se de um assunto que tem sido discutido entre mim e o meu agente, pois o género literário no qual me insiro parece ser perfeito para propiciar esse passo. De facto, já fizemos algumas tentativas, mas até à data ainda nenhuma se concretizou. O nosso maior entrave tem sido a língua. Existem poucos autores portugueses com traduções regulares, não havendo no mercado internacional uma curiosidade enorme sobre o que se escreve cá dentro.

Por outro lado, a concorrência é muito forte e as editoras internacionais preferem apostar em escritores do próprio país, porque lhes sairá sempre mais barato. Nesse aspeto, nós somos muito pouco protecionistas. Os leitores e as editoras portuguesas acolhem de braços abertos toda a ficção estrangeira, mas questionam a qualidade da portuguesa. Numa sessão de autógrafos já me perguntaram quem é que eu era para achar que podia escrever thrillers.

Estamos ainda no início de um novo ano. O que planeia fazer em 2021? Há novos projetos na forja ou não é homem de grandes planificações antecipadas?

Sou um homem de planos, listas e cadernos. Não consigo ter muita desordem à minha volta e, para me sentir bem, necessito frequentemente de colocar as ideias em papel. Para já, o meu projeto imediato é a reedição de "O espião português, que eu e a Cultura Editora esperamos apresentar ainda durante o primeiro semestre deste ano, se assim for permitido pela evolução da pandemia em Portugal e, consequentemente, do mercado livreiro. Tenho andado a reescrever o livro, um trabalho que está quase terminado.

Depois, irei regressar ao universo da série Afonso Catalão, para dar um sucessor a "O cardeal", tendo em mente o primeiro semestre do ano que vem. Pelo caminho, irei produzir a segunda temporada da série em ficção em podcast "O assassino", prevista para o outono. O ano de 2022 marcará o décimo aniversário da minha carreira, o que gostaria de assinalar de modo especial, provavelmente fechando-o com a publicação de "A espia do oriente" e "A hora solene", os outros dois volumes da trilogia Freelancer.