Eram apenas análises de rotina ao sangue. Shelley Furer, então com 45 anos, sentia-se bem, saudável, com energia. Um indicador no hemograma, porém, alarmou o médico. «Encontraram algumas proteínas no meu sangue. É suposto ter zero, eu tinha 3,3», conta a norte-americana, seis anos após a «terrível descoberta».

Durante a conversa, via Skype, entre Lisboa e Minneapolis, no gelado e invernoso Minnesota (Estados Unidos), Shelley mantém-se tranquila e bem-disposta, mesmo ao recordar a confusão inicial da altura do diagnóstico, corria outubro de 2011. «A maioria das pessoas descobre que tem mieloma múltiplo [um cancro raro na medula óssea e especialmente agressivo, com uma esperança de vida de cerca de cinco anos] quando parte um osso ou tem uma pneumonia que não desaparece... No meu caso, foi apenas a presença de proteínas no sangue». Quando novas análises confirmaram o pior, Shelley manteve-se serena. «Pensei: “É perto de zero, não estou a perceber o alarme do médico”».

Ainda ninguém lhe dissera do que se tratava – apenas lhe deram um número de telefone para o qual tinha de ligar. Foi quando ouviu, do outro lado da linha, «Oncologia de Minnesota», que o seu mundo desabou. Sentiu-se perdida, desesperada. «Desliguei imediatamente! Ninguém me tinha falado em cancro… E eu sentia-me bem», recorda.

Recompôs-se, voltou a ligar e marcou uma consulta de oncologia. Na sala de espera, lembra-se de repetir para si mesma: «Não acredito que estou aqui, não acredito que estou aqui. Sinto-me bem, só tive uns resultados esquisitos nas análises…». Mas o inacreditável estava mesmo a acontecer.

Na clínica de oncologia de Minnesota, sucederam-se os exames, «20 ou mais raios X de corpo inteiro». Era outono e Shelley, casada há 26 anos com Virgil Petrie, mãe de dois filhos, um rapaz e uma rapariga, continuava a encarar serenamente o pesadelo anunciado: «Posso fazer um esqueleto com estas imagens. E podemos brincar com isto lá em casa, pendurá-lo no Halloween», lembra-se de pensar, enquanto se sujeitava a mais e mais exames. Até que os médicos começaram a recolher imagens do seu crânio. «Aí comecei a ficar preocupada».

Enquanto esperava pelo dia em que receberia os resultados, fez «uma pequena pesquisa» na Internet e percebeu, por fim, o pesadelo que enfrentava. «Tudo apontava para a possibilidade de estarmos a falar de mieloma múltiplo».

Nesta fase, Shelley encarava uma de duas possibilidades. A primeira: «Isto não é nada de especial, volte daqui a cinco anos e repetimos os testes». A segunda, pior: «Precisa de um transplante de células-tronco».

Sempre com o marido ao seu lado, obteve um terceiro veredicto, simultaneamente assustador e tranquilizante: «Era mieloma múltiplo assintomático, de alto risco. Estava em todo o lado, mas ainda não tinha feito qualquer estrago». O que significava que Shelley não tinha de ser internada para fazer um transplante de células-tronco. E isso deixou-a feliz. Mas tinha cancro.

«Como se conta aos filhos que temos cancro? E eu sentia-me bem! Fiquei devastada…». Neste momento da conversa, esta mulher loira, bem-disposta, combate as lágrimas. Embarga-se-lhe a voz. E continua a explicar como as pesquisas na Internet não a ajudaram a ter esperança. «Descobres que todos morrem em cinco anos. É aterrador». Shelley não queria perder as licenciaturas dos filhos Grace, então com 18 anos, e Robert, com 14. «Nem os casamentos, nem os netos». Não queria perder nada.

Virgil, o marido, não dominou o seu próprio medo de a perder. «Foi duro para ele. Quando se ouve a palavra cancro pensa-se em morte», diz Shelley. Mas nunca saiu do seu lado: acompanhou-a a todas as consultas e adaptou as rotinas da família à sua nova forma de vida.

Com a filha mais velha na faculdade, Shelley contou meia-verdade ao filho mais novo, Robert. «Disse-lhe que tinha um problema no sangue. Ele era adolescente, nem ligou». A filha reagiu de forma diferente. «A Grace ficou com um ar terrível, confuso, que dizia: “Isso é horrível e tu pareces mesmo feliz”. Eu estava feliz por não ter de ser internada, não ter de fazer o transplante.

Ela não quis saber o nome para não o 'googlar'. Achei muito autoprotector da sua parte, muito consciente».

Com o tempo, os filhos aperceberam-se do que se passava realmente. E Shelley começou a lutar para sobreviver. «Tomo medicação durante três semanas e paro uma». É assim há cinco anos e meio, altura em que aceitou participar num ensaio clínico sobre mieloma múltiplo. «Não se fala em cura no que diz respeito a este cancro». Aos 51 anos, Shelley continua uma mulher de riso fácil, com um bom humor contagiante apenas em gestão da doença». Ela gere-o, testando uma nova medicação.

Não é apenas por si que participa em ensaios clínicos: «Não conseguiria encarar alguém que fosse diagnosticado dentro de dez anos e saber que não fiz nada para ajudar a travar a doença», explica, simplesmente.

O seu contributo é especialmente importante devido ao caso ser tão raro. «O mieloma costumava ser tratado quando já tinha afetado algum órgão. E também não costuma aparecer em pessoas jovens, mulheres. O objetivo do ensaio clínico em que estou a participar é perceber se se vive mais tempo quando temos um diagnóstico precoce e começamos logo a tratá-lo».

Todos os meses, Shelley faz análises ao sangue para determinar os níveis de proteína. «Tornou-se rotina». Até agora o cancro continua apenas «a nadar» pelo corpo. «Mas está em todo o organismo. Na medula óssea, na corrente sanguínea. Só espero que continue assim».

O que mudou? «Deixei de poder fazer coisas à noite, sair com amigos». A fadiga é um dos efeitos colaterais da medicação. É visível quando está no final do ciclo da medicação experimental, explica. «As palavras saem mais lentamente, fico mais rabugenta, exausta. Há um motivo pelo qual se toma os medicamentos só durante três semanas».

Para viver, Sheley alterou o estilo de vida: a alimentação – «antes comia o que queria e gostava muito de doces», conta; começou a fazer ioga, exercício físico duas vezes por semana em aulas de grupo destinadas a pessoas com cancro. Quando não consegue ir, usa uma aplicação específica para sobreviventes de cancro que descobriu há algum tempo, a Thrivors, e vê online os exercícios que deve fazer nesse dia, tendo em conta o seu nível de dor e fadiga.

Passaram seis anos desde o diagnóstico. Aos 51, Shelley, continua a trabalhar a tempo inteiro. Sobreviveu para lá do expectável com qualidade de vida e conseguiu ver Grace concluir a licenciatura – «está a viver em Nova Iorque», conta, orgulhosa, e Robert entrar para a universidade, em Iowa.

Tem sonhos a longo prazo: «O tratamento funcionou até aqui, vai continuar». Quer viajar «muito» com os filhos e, quando envelhecer, ver os netos crescer. Entretanto, desfruta da vida com uma força extraordinária.

Texto de Sónia Balasteiro

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