O que não fizemos bem. Como é possível que 1/3 das vagas do concurso para formação especifica em Saude Pública tenham ficado por ocupar. Toquem os sinos. Toquem os sinos para transmitir o que nos vai na alma. Nós os médicos de Saúde Pública temos de refletir com humildade para perceber o que se passou. Para analisar o que se está a passar. Num primeiro momento acredito que iremos pensar em razões gerais que afetaram a nossa especialidade, mas também muitas outras, é certo. No entanto, é absolutamente necessário perceber o que se está a passar em relação à Saúde Pública.
Das razões externas à Saúde Pública atrevo-me a considerar todo a incerteza criada sobre o trabalho médico no Serviço Nacional de Saúde com as anacrónicas orientações sobre que serviços estão ou não estão abertos em que dias e horas. Fizemos crescer um monstro de oferta de serviços de urgências entre outros que foi muito útil para compor rendimentos e muito útil para as vitorias e perdas eleitorais resultado de formulações simplistas e de caráter imediato e com pouca visão em relação à geodemografia do país nomeadamente em termos de ganhos em mobilidade no território e no franco envelhecimento da população.
O que não fizemos bem na Saúde Pública.
É certo que a inabilidosa gestão política da Saúde Pública por parte do Ministério da Saúde tem uma enorme cota parte de responsabilidade. De facto, tivemos o azar de ter tido no ultimo ano uma liderança desajeitada. Uma reforma de Saúde Pública que não acontece, com elementos médicos demissionários de uma comissão mansa e de um ideário singular sobre a organização dos serviços de saúde pública (com pouco conhecimento e sem diálogo). Uma liderança sem alma e medrosa. Esta liderança raramente foi contrariada o que não ajuda no processo de descredibilização de uma Saúde Públia que se deseja forte, de serviço e de liderança. As incertezas certamente geraram múltiplas duvidas na opção de especialidade por parte dos nossos colegas. Por outro lado, foi-nos apresentado um desenho de Unidades Locais de Saúde dominado pela necessidade de financiamento de uma rede hospital criada por vontades populares e politicas e em muitos casos provida de irracionalidade (recordo bem que respondi em tribunal por defender o encerramento de maternidade em Lisboa quando se tinham renovado duas novas e criado uma outra, para além de oferta privada aumentada e um numero de nascimento mais reduzido – sobre isso vê-se o que se vê) em vez de um desenho de Unidades que tenha como base a resposta a necessidades de base geodemográfica do país (ex. áreas intermunicipais). Este desenho que poderia estimular escolhas na área de Saúde Pública também não aconteceu.
Da proposta de desenho das Unidades Locais de Saúde os médicos de Saúde Pública e os profissionais de Saúde Pública em geral têm sido pouco ambiciosos. Não tenhamos dúvidas que o conceito de Cuidados de Saúde Primários para a pratica de Saúde Pública em Unidades Locais de Saúde é limitativo. As palavras por nós ditas não ressoam e ficam muito aquém do que devemos reclamar. Com toda a sinceridade considero que são os médicos de Saúde Pública os melhores profissionais treinados para liderar essas mesmas Unidades pela simples razão que em relação à classe medica são os únicos com um bom treino em gestão e planeamento com base na evidencia das necessidades em saúde e em serviços de saúde proveniente num bom treino em epidemiologia comunitária (os epidemiologistas não são Saúde Pública!). Não que tenham de ser exclusivamente médicos e que os médicos de Saúde Pública os únicos dos médicos, mas muito me admiraria se não houver um número significativo de médicos de Saúde Pública a liderar as futuras Unidades, o que será um sinal da nossa fraqueza. Muitos de nós ficam reféns da perspetiva de uma Saúde Pública vocacionada para a Proteção da Saúde o que é relevante, mas curto. Por outro lado, o tempo da pandemia e o pós-pandemia fez surgir um numero muito considerável de autoproclamados profissionais de saúde pública, o que é verdade em relação a academismos e na comunicação, mas não (com algumas exceções) na implementação de práticas em Saúde Pública. É caso para dizer à Cardiologia o que é da Cardiologia e à Saúde Pública o que é da Saúde Pública.
O que estamos a fazer na academia que não motiva os estudantes a escolher Saúde Pública, o que estamos a fazer no Internato Médico para não atrair escolhas certas, o que está a fazer a Associação de Médicos de Saúde Pública que certamente não comunica suficientemente bem para todos, o que faz o Colégio de Saúde Pública da Ordem dos Médicos que aparentemente não é suficientemente forte para estabelecer as fronteiras da Saúde Pública em relação a outras especialidades (um dia será competência em vez de especialidade!), o que faz a recentemente criada Sociedade Portuguesa de Saúde Pública que poderia ter uma agenda sobre este assunto (porque não temos Saúde Pública como opção natural na escolha de especialidade médica).
Será que a Saúde Pública está a sofrer do seu recente sucesso como disciplina, mas não é entendida como uma área própria de estudo e de estudo médico em particular. Logo no inicio da pandemia designei “O Paradoxo de Saúde Pública” como resultado do facto das disciplinas clinicas irem ter vantagem sobre a Saúde Pública na perceção das pessoas em geral, na gestão da mesma e que seriam essas mesmas áreas a usufruírem de melhores investimentos. Parece que infelizmente acertei. Há uma enorme confusão sobre o que é Saúde Pública, o seu serviço às pessoas, famílias e comunidades, a sua prática na melhoria do Serviço Nacional de Saúde e o seu papel no Sistema de Saúde e na sociedade portuguesa.
Toquem os sinos. Temos de discutir as razões do insucesso deste concurso para a Saúde Pública encontrar as melhores soluções, perguntar aos que não escolheram porque não escolheram. Temos de rever curricula e formas nas Faculdades de Medicina, eventualmente rever o internato, comunicar melhor para estudantes e médicos, reclamar melhor posicionamento da Saúde Pública nas Unidades Locais de Saúde e outros posicionamentos no Sistema de Saúde, como por exemplo na área da regulação. É certo que somos poucos comparado com outras especialidades, mas esse facto não deverá demovermos de encontrar o espaço natural dos médicos de Saúde Pública como lideres na implementação de programas e em organizações de prestação de cuidados de saúde.
Não basta dizer é preciso ser.
Um Sistema de Saúde sem o exercício de Saúde Pública sem médicos de Saúde Pública será fraco na Proteção da Saúde, não será eficaz na Prevenção da Doença e pouco eficiente na área da Promoção da Saúde, para não falar na área da One Health e na Saúde Global. Um Sistema de Saúde sem os Serviços de Saúde Pública e seus profissionais é pouco efetivo e não interessa às populações.
Mas verdade seja dita. Sabemos bem que muitos dos que felizmente acolhemos para residir neste nosso amado país fazem-no pela segurança que o Sistema de Saúde lhes oferece em particular pelo Serviço Nacional de Saúde – um serviço que é amplamente generoso (possivelmente demasiado generoso visto que a palavra não tem pouca sonoridade na tomada de decisão política).
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