A psoríase é conhecida como “a doença dos três nãos”, porque não mata, não tem cura e não contagia. “O envolvimento cutâneo é a ponta do icebergue” desta doença, que afeta mais de 250 mil portugueses e cerca de 125 milhões de pessoas em todo o mundo, segundo o Dr. Paulo Morais, dermatologista no Hospital Trofa Saúde Alfena. O médico falou-nos das comorbilidades associadas à psoríase, do impacto na qualidade de vida dos doentes, que se faz sentir a nível físico, emocional, social, profissional e económico, e do tratamento, que deve ser individualizado. “É essencial considerar os diferentes domínios da doença psoriática na seleção da terapêutica, devendo o tratamento cobrir ao máximo o espectro da doença e ser direcionado tanto à inflamação cutânea como à sistémica”, explicou Paulo Morais.
HealthNews (HN)- O que é a psoríase?
Paulo Morais (PM)- A psoríase é uma doença inflamatória crónica e sistémica, imuno-mediada, potencialmente grave e incapacitante, mas não infeciosa. Em função de seu caráter sistémico, as suas manifestações podem ir muito além das lesões cutâneas que a tornam tão evidente. Como é característico de muitas doenças crónicas, cursa com fases de agudização (surtos) e períodos de melhoria ou remissão. É conhecida como a “doença dos três nãos”: não mata, não tem cura e não contagia.
Afeta ambos os sexos de igual forma e, embora se possa manifestar em qualquer idade, a maioria dos casos ocorre entre os 15 e os 30 anos, sendo também comum entre os 50 e os 60 anos de idade. Afeta mais de 250 mil portugueses e cerca de 125 milhões de pessoas em todo o mundo.
A variante mais comum, a psoríase em placas, manifesta-se por placas eritematosas e descamativas, envolvendo preferencialmente os cotovelos, joelhos, região lombo-sagrada e couro cabeludo, associando-se frequentemente a prurido e escoriações resultantes do ato de coçar. Existem, no entanto, outras formas de psoríase: gutata ou em gotas, inversa ou flexural, pustulosa, eritrodérmica e artropática (artrite psoriática).
HN- Além dos problemas na pele, como é afetada a saúde dos doentes?
PM- O envolvimento cutâneo é a ponta do icebergue da doença psoriática. Efetivamente, a componente cutânea, o envolvimento articular, as doenças concomitantes (ou comorbilidades) e a eventual toxicidade das medicações utilizadas impactam negativamente a saúde global do doente, fazendo com que a psoríase tenha um efeito nocivo na qualidade de vida comparável ao de doenças como a diabetes, depressão, doença cardíaca isquémica e cancro.
Este impacto na qualidade de vida faz sentir-se tanto a nível físico como emocional, social, profissional e económico. A nível físico, a doença origina sintomas como o prurido, o ardor, a sensação de desconforto, a dor na pele e nas articulações e a incapacidade funcional. A nível psicoemocional, podem ser notórios sintomas de ansiedade, raiva, frustração, baixa autoestima, inibição, constrangimento, tristeza, solidão, depressão e maior frequência de ideação suicida. A nível interpessoal, sexual e social, foca-se a estigmatização, a discriminação, o isolamento, a rejeição social, a menor tendência para procurar relacionamentos, a disfunção sexual e a diminuição da participação em atividades desportivas e sociais. A nível profissional, está demonstrado que a psoríase contribui para absentismo laboral, afeta as oportunidades de emprego e as perspetivas de carreira e associa-se a menor produtividade. Do ponto de vista económico, é de prever que a psoríase se associe a avultadas despesas pagas pelos doentes (consultas, tratamentos, produtos para cuidado da pele) e a sobrecarga financeira para o sistema de saúde.
HN- Quais as comorbilidades que mais agravam a condição destes doentes?
PM- Atualmente é amplamente reconhecido que a psoríase não é apenas uma doença de pele. Trata-se de uma doença sistémica, associada a comorbilidades cardiometabólicas (diabetes mellitus, resistência à insulina, obesidade, hipertensão arterial, dislipidemia, síndrome metabólica), psiquiátricas (como depressão e ansiedade), artrite psoriática, doença inflamatória intestinal, uveíte, esteatose hepática não alcoólica, além da maior prevalência de hábitos tabágicos e alcoólicos. A inflamação sistémica crónica presente na psoríase tem sido sugerida como um fator de risco independente para as comorbilidades cardiovasculares e para o aparecimento de aterosclerose precoce (calcificação coronária, disfunção endotelial, espessamento da camada íntima-média das carótidas). O risco superior de eventos cardiovasculares (enfarte agudo do miocárdio e acidente vascular cerebral), comparativamente à população geral, traduz-se em consequente aumento da mortalidade e uma diminuição da esperança média de vida em cerca de 5-6 anos.
Por conseguinte, é crucial que o dermatologista reconheça precocemente estas comorbilidades, que podem ter um impacto significativo na sobrevida dos doentes e influenciar as opções terapêuticas.
HN- As comorbilidades associadas à psoríase verificam-se em grupos de doentes particulares?
PM- Os doentes com psoríase moderada a grave têm maior prevalência de comorbilidades e maior risco de doença cardiovascular major. Este aumento de doença cardiovascular poderá resultar de múltiplos mecanismos. Por um lado, a elevada incidência de vários fatores de risco cardiovascular, como obesidade, hipertensão, dislipidemia e diabetes (provavelmente geneticamente relacionada); por outro, a inflamação sistémica existente na psoríase que promove uma aterosclerose precoce.
Foi constatado que doentes jovens (< 30 anos) com psoríase grave têm um risco aumentado de enfarte agudo do miocárdio e que doentes com menos de 50 anos e psoríase grave têm risco acrescido de acidente vascular cerebral. Como é expectável, este subgrupo de doentes tende a ter uma esperança de vida encurtada.
HN- O tratamento varia consoante as comorbilidades associadas à psoríase?
PM- A chave para o sucesso terapêutico passa pela individualização do tratamento, tendo em conta fatores como a extensão da doença, idade, sexo, recursos disponíveis, capacidade de adesão, preferência do doente e, efetivamente, as comorbilidades associadas. Para uma abordagem eficaz da psoríase é essencial considerar os diferentes domínios da doença psoriática na seleção da terapêutica, devendo o tratamento cobrir ao máximo o espectro da doença e ser direcionado tanto à inflamação cutânea como à sistémica. Assim, esta abordagem deverá ter em conta não apenas a componente cutânea, mas também a presença de lesões ungueais, artrite periférica, envolvimento do esqueleto axial, entesite, dactilite, doença inflamatória intestinal, uveíte e outras eventuais condições associadas à doença que podem impactar a seleção do tratamento e a monitorização a efetuar. Num exemplo prático, a presença de psoríase em placas e queixas articulares exigirá um fármaco sistémico que seja eficaz nestas duas manifestações da doença, distinta da abordagem caso o envolvimento fosse exclusivamente cutâneo. Noutro exemplo, se num doente psoriático e hipertenso a utilização de acitretina oral se adequa e a ciclosporina se contraindica, no doente psoriático com disfunção hepática inverte-se a recomendação terapêutica.
HN- Considera que os profissionais de saúde e a população em geral encaram a psoríase como mais do que uma doença de pele?
PM- Para o dermatologista é atualmente claro que a doença psoriática é uma patologia que não se restringe à pele e que se associa a múltiplas comorbilidades. Esta constatação pode não ser do conhecimento da maioria dos clínicos que não lidam diariamente com a doença, nem dos doentes, para quem muitas vezes a única manifestação visível são as lesões cutâneas. É por isso de suma importância que se encare a psoríase como uma doença multidimensional, se aumente a consciencialização para a psoríase e suas comorbilidades e se aborde o doente psoriático numa perspetiva holística e multidisciplinar.
Entrevista de Rita Antunes
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